quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - Paris estudado na sua mais tênue parcela / XI - Escarnecer, reinar

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Primeiro — Paris estudado na sua mais tênue parcela

XI - Escarnecer, reinar
     
      Paris não tem limites. Nunca nenhuma outra cidade possuiu este domínio, que às vezes escarnece dos que subjuga. «Para vos agradar, ó Afenienses!» exclamava Alexandre.
     Paris dá mais do que leis, dá a moda. Paris dá mais do que a moda, dá a rotina. Pode ser estúpido, se lhe aprouver, e às vezes assim faz; então o Universo torna-se estúpido como ele; depois acorda, esfrega os olhos e diz: «Que estúpido eu sou!» e desata a rir na cara do gênero humano.
     Que maravilhosa cidade! Como causa estranheza que este grandioso e este burlesco se deem juntos, que toda esta majestade não seja destruída por esta paródia, e que a mesma boca sopre hoje na trombeta do juízo final e amanhã na gaita de palha!
     Paris possui uma jovialidade soberana. A sua alegria é como o raio, a sua força empunha o cetro. O furacão com que o abala irrompe às vezes duma careta. As suas explosões, as suas batalhas, as suas obras-primas, as suas maravilhas, as suas epopeias chegam ao cabo do universo, do mesmo modo que os seus despropósitos. O seu riso é uma cratera que arroja lava por toda a terra. As suas graçolas são centelhas. Impõe aos povos tanto as suas caricaturas como o seu ideal; os monumentos mais altos da civilização humana sofrem as suas ironias e prestam a sua eternidade às bufonearias dele. É sublime aquela cidade; tem um maravilhoso 14 de Julho, que liberta o globo; faz prestar o juramento da pela a todas as nações; a sua noite de 4 de Agosto dissolve em três horas mil anos de feudalismo; faz da sua lógica o músculo da vontade unânime; multiplica-se sob todas as formas do sublime; inunda com o seu clarão Washington, Kosciusko, Bolivar, Botzaris, Riego, Bem, Manin, Lopez, John Brown, Garibaldi; está em toda a parte onde arde a labareda do futuro; em Boston em 1779, na ilha de Leão em 1820, em Pesth em 1848, em Palermo em 1860; segreda a poderosa senha «Liberdade» ao ouvido dos abolicionistas americanos, reunidos na barca de Harper’s Ferry, e ao dos patriotas de Ancona, reunidos à noite em Archi, defronte da estalagem de Gozzi, à beira mar; cria Canáris, Quiroga Pisacano; derrama pela terra o sublime; impelido pelo seu sopro, morreu Byron em Missolonghi e Mazet em Barcelona; é tribuno aos pés de Mirabeau e cratera aos pés de Robespierre; os livros dele, o seu teatro, a sua arte, ciência, literatura e filosofia, são os manuais do género humano; possui Pascal, Regnier, Corneille, Jean Jacques; Voltaire para todos os minutos, Molière para todos os séculos; faz falar a sua língua à boca universal e essa língua torna-se verbo; acende em todos os espíritos a ideia do progresso; os dogmas libertadores que se produzem no seu seio, tornam-se constante defesa das gerações, e é com a alma dos seus pensadores e poetas que desde 1789 se têm formado todos os heróis de todos os povos; não obstante isso, não deixa de garotar, e esse génio extraordinário chamado Paris, ao mesmo tempo que transfigura o mundo com a sua luz, pinta com carvão o nariz de Bouginier na parede do templo de Theseu e escreve nas pirâmides — Credevitle Ladrão. Paris tem sempre os dentes à mostra; quando não está agastado, ri.
      Eis o que é Paris. As nuvens de fumo que saem dos seus telhados são as ideias do Universo. Montão de barro e pedra, se assim o querem, mas, apesar de tudo, ente moral. É mais do que grande, é imenso. Porquê? Porque tem ousadia.
     Ousadia: sem ela não há progresso.
      Todas as conquistas sublimes são mais ou menos o prémio da ousadia. Para que a revolução se consumasse, não bastou que Montesquieu a pressentisse, que a pregasse Diderot, que a anunciasse Beaumarchais, que a calculasse Condorcet, que a preparasse Arouet, que a premeditasse Rousseau, foi necessário que Danton ousasse meter-lhe ombros.
     O grito — Audácia! — é um Fiat Lux. É preciso, para que o género humano caminhe para diante, que lhe venham sempre de cima sublimes lições de valor. As temeridades arrebatam a história e são uma das grandes luzes do homem. A aurora tem ousadia quando desponta. Tentar, arrostar, persistir, perseverar, ser fiel a si próprio, arcar com o destino, maravilhar a catástrofe, mostrando-lhe o pouco susto que nos causa, ora afrontar a injustiça do poder, ora insultar a ebriedade da vitória, eis o exemplo de que necessitam os povos e a luz que os eletriza. O mesmo clarão formidável sai do facho de Prometeu e do cachimbo de Cambronne.

continua na página 447...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Primeiro - XI - Escarnecer, reinar 
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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