terça-feira, 23 de setembro de 2025

Émile Zola - Germinal: Segunda Parte - (III.b) Ao voltar para casa

 Germinal


Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Segunda Parte

III
 .

      Ao voltar para casa, a mulher de Maheu deu de cara com a vizinha que não queria encontrar e que tinha saído ao ver que passava o Dr. Vanderhaghen, médico da companhia, homenzinho apressado, cheio de trabalho, que dava consultas caminhando.

— Doutor — disse a mulher de Levaque —, não estou dormindo mais, tenho dores por todo o corpo... O senhor tinha que tratar disso...

     Ele tratava todas elas por tu. Respondeu sem parar:
 
— Deixa-me em paz! Tu bebes muito café. 
— E o meu marido, doutor? — exclamou por sua vez a mulher de Maheu. 
— O senhor devia vê-lo. Continua com aquelas dores nas pernas. 
— Porque tu o cansas demais... Sai do caminho.

     As duas mulheres ficaram plantadas no meio da calçada sem saber o que fazer, enquanto o doutor se afastava a passos rápidos. 

— Entra — disse a Levaque, depois de trocar com a vizinha um encolher de ombros desesperado. — Temos novidades... E tomas um cafezinho comigo, acabo de fazê-lo.

     A outra, que procurava escapar, não resistiu à tentação. Por que não? Mas somente uma gota, para não lhe fazer desfeita... E entrou. 
     A sala era negra de sujeira, o chão e as paredes manchados de gordura, o guarda-comida e a mesa lambuzados de imundície; o mau cheiro, típico da casa que quase nunca é limpa, dava engulhos.
     Perto do fogo, com os cotovelos sobre a mesa, o nariz enfiado no prato, Bouteloup, de aparência jovem para os seus trinta e cinco anos, dava cabo de um resto de cozido com a pachorra de movimentos inerente àquele tipo de homem, grande e calmo. Em pé, encostado nele, encontrava-se Achille, o filho mais velho de Philomène, já com seus três anos, olhando-o com o jeito suplicante e mudo dos animais famintos. O homem, cheio de ternura sob a espessa barba trigueira, metia-lhe de vez em quando um naco de carne na boca.

— Espera, vou adoçá-lo — disse a dona da casa, pondo açúcar preto na cafeteira.

     Era uma mulher horrível, seis anos mais velha que ele, gasta, com os seios batendo na barriga e a barriga chegando até as coxas, com um carão achatado, de cabelos grisalhos, sempre despenteada. Ele dormia com ela com toda a naturalidade, sem a examinar mais do que a sopa que lhe era servida e onde encontrava fios de cabelo, e do que a cama onde os lençóis só eram mudados de três em três meses. Era pensão realmente completa, incluía até sexo... O marido gostava de dizer que o bom entendimento nos negócios faz os bons amigos. 

— Queria te dizer — continuou ela — que viram ontem à noite a mulher de Pierron vagando pelas bandas dos Bas-de-Soie. O homem, tu sabes quem, estava esperando atrás da loja do Rasseneur; depois saíram juntos pela margem do canal. Que tal essa? Uma mulher casada... 
— Ora! — respondeu a outra. — Antes de casar com ela, Pierron dava coelhos de presente ao contramestre, agora lhe empresta a mulher, sai mais barato.

     Bouteloup deu uma gargalhada e enfiou um pedaço de miolo de pão embebido em molho na boca de Achille. 
     As duas mulheres continuaram a massacrar a esposa de Pierron: uma sirigaita que não era mais bonita do que as outras, mas vivia cuidando da pele, lavando-se, passando pomadas... Enfim, isso era da conta do marido, que parecia gostar desses requintes. Havia homens tão ambiciosos que eram capazes de limpar os sapatos dos chefes só para os ouvirem dizer obrigado. Estavam nesse ponto quando foram interrompidas pela chegada de uma vizinha trazendo ao colo uma menina de nove meses, Désirée, a filha mais nova de Philomène; esta, que almoçava no trabalho, pedira que lhe levassem a criancinha até lá, diariamente, para amamentá-la, sentada por uns minutos sobre o carvão. 

— Não posso largar a minha um momento, começa logo a berrar... — disse a mulher de Maheu, olhando para Estelle, que dormia em seus braços.

     Não conseguiu, porém, evitar a intimação que lia já há algum tempo nos olhos da outra e exclamou: 

— Quando é que a gente vai resolver esse problema?

     A princípio, as duas mães, implicitamente, tinham concordado em não apressar o casamento. Se a mãe de Zacharie queria receber durante o maior espaço de tempo possível as quinzenas do filho, a mãe de Philomène, só de pensar em largar as da filha, ficava uma fera. Nada a apressava, preferira mesmo cuidar do menino, isso enquanto havia um só; mas quando ele começou a crescer e a comer pão, e quando veio outro filho, achou-se prejudicada e tornou-se partidária fervorosa do casamento, disposta a não mais gastar do que era seu com os outros. 

— Zacharie já está resolvido — continuou ela, implacável. — Agora só resta casar. Então, para quando? 
— Deixemos isso para melhores dias — respondeu a mulher de Maheu embaraçada. — Esse assunto me irrita. Como se tivessem de esperar pelo casamento para andarem juntos... Palavra de honra, eu estrangulava Catherine se soubesse que ela deu um mau passo!

     A mulher de Levaque deu de ombros. 

— É melhor não jurares, ela fará exatamente como as outras. Bouteloup, com a tranquilidade de um homem que está em sua casa, começou a revirar o guarda-comida à procura de pão. Legumes para a sopa de Levaque, batatas e alhos esparramavam-se numa ponta da mesa, meio descascados, tomados e abandonados dez vezes, por entre mexericos contínuos. A mulher começou a descascá-los de novo, quando voltou a largá-los para correr à janela. 
— Que é isso? Ah! é a Sra. Hennebeau com outras pessoas. Entraram na casa do Pierron.

     Imediatamente ambas voltaram a cair sobre a outra. Claro! Isso não podia faltar: bastava a companhia querer mostrar o conjunto habitacional a estranhos, era logo para a casa dela que iam, por ser limpa. Sem dúvida não contavam aos visitantes seus amores com o capataz. Pode-se muito bem ser asseada quando se tem amantes que ganham três mil francos, belas casas, aquecimento, não contando os presentes... Limpa por fora, suja por dentro, essa era a verdade. E, durante todo o tempo em que as visitas estiveram na casa defronte, não pararam de tagarelar. 

— Já estão saindo — disse a mulher de Levaque. — Estão inspecionando... Olha, minha cara, parece que vão para a tua casa.

     A outra ficou amedrontada: teria Alzire limpado a mesa? E a sopa que também não estava pronta! Balbuciou um "até logo" e saiu correndo, entrando em casa sem olhar para os lados.
      Felizmente estava tudo muito limpo. Vendo que sua mãe não voltava, Alzire, muito séria, amarrou um pano na cintura e começou a fazer a sopa. Arrancara os últimos alhos do jardim, colhera cebolas e limpava com muito cuidado os legumes, enquanto no fogo, num caldeirão enorme, aquecia a água para o banho dos homens, quando viessem. Por acaso, Henri e Lénore não estavam brigando, ocupados em rasgar um almanaque velho. O velho Boa-Morte fumava silenciosamente o cachimbo.
     A mulher ainda estava esbaforida quando bateram. 

— Podemos entrar, boa mulher?

     Alta, loura, um pouco pesada na maturidade soberba dos quarenta, a Sra. Hennebeau sorria com esforço, querendo ser amável, sem querer deixar transparecer que temia sujar a roupa de seda cor de bronze, protegida por um manto de veludo preto. 

— Entrem, entrem — repetia ela a seus convidados. — Não incomodam ninguém... Como é asseada também, não é? Esta boa mulher tem sete filhos. Todas as nossas casas são assim. Como já lhes disse, a companhia aluga a casa a seis francos por mês. Uma sala grande no térreo, dois quartos em cima, uma adega e jardim.

     O senhor condecorado e a senhora de capa de peles, que tinham chegado de manhã pelo trem de Paris, abriam muito os olhos, não sabiam o que dizer, pasmados ante aquelas coisas que escapavam à sua compreensão. 

— E jardim... — repetiu a senhora. — Poder-se-ia viver aqui, é encantador. 
— A quantidade de carvão que lhes damos é muito mais do que precisam — continuou a Sra. Hennebeau. — Recebem visita do médico duas vezes por semana, e, quando estão velhos, recebem uma aposentadoria, apesar de não se fazer desconto algum nos salários. 
— Um paraíso! Uma verdadeira Terra da Promissão! — murmurou o homem, maravilhado.

     A mulher de Maheu precipitou-se para oferecer cadeiras, que as outras não aceitaram. 
     A Sra. Hennebeau já estava ficando cansada; a princípio sentira-se bem naquele papel de mostrar bichos, distraída por um instante no tédio do seu exílio, mas já estava cheia de repugnância pelo cheiro enjoativo de miséria, não obstante a limpeza das casas escolhidas onde ela se arriscava a entrar. Na verdade, repetia apenas pedaços de frases que ouvira, pois jamais se preocupara muito com todos esses operários que trabalhavam e sofriam perto dela. 

— Que crianças lindas! — murmurou a senhora, que as achava horríveis, com aquelas enormes cabeças de cabelo cor de palha.

     E a dona da casa teve de dizer a idade delas; fizeram-lhe igualmente perguntas sobre Estelle, por delicadeza. O velho Boa-Morte, respeitosamente, retirara o cachimbo da boca, mas nem por isso deixou de chamar a atenção, tão estragado estava pelos quarenta anos que passara no fundo da mina, as pernas endurecidas, só pele e osso, a face terrosa. E, como o acometesse um violento ataque de tosse, preferiu sair para cuspir fora, com medo de que seu escarro preto fosse assustar aquela gente.
     Alzire foi muito festejada. Que bonita dona-de-casa, com o seu avental! Deram os parabéns à mãe por ter uma filha como aquela, já tão esperta para a idade. Mas ninguém falou sobre a sua corcova, apenas olhares de uma compaixão cheia de asco voltavam sempre a cair sobre o pobre ser enfermo. 

— Agora — concluiu a Sra. Hennebeau —, se lhes perguntarem sobre nossas aldeias de mineiros, lá em Paris, já podem responder. Sempre esta calma, costumes patriarcais, todos felizes e saudáveis, um lugar para onde deviam vir descansar um pouco, onde há ar puro e tranquilidade. 
— É maravilhoso, maravilhoso! — exclamou o homem, numa demonstração final de entusiasmo.

     E saíram com aquele ar satisfeito de quem sai de um circo onde se exibem fenômenos. A mulher de Maheu acompanhou-os até a porta e ali ficou enquanto eles se afastavam devagar, falando alto. As ruas estavam movimentadas, tiveram de defrontar grupos de mulheres atraídas pelo boato da sua visita, que fora espalhado de casa em casa.
      Justamente defronte de sua porta, a mulher de Levaque acabava de deter a de Pierron, excitada com a visita. Ambas fingiam uma surpresa maldosa. Como é? Essa gente não saía mais da casa dos Maheu? Francamente, como é que aguentavam! 

— Sempre sem dinheiro, apesar de tudo o que ganham... Claro, com os vícios que têm! 
— Acabo de saber que ela foi mendigar hoje de manhã na porta dos burgueses da Piolaine, e que o Maigrat, que não queria vender-lhe mais nada, acabou voltando atrás e vendeu-lhe pão. Mas já sabemos como é que Maigrat cobra... 
— Não, mas não ela! Também, precisava ter estômago... É a Catherine que Maigrat quer. 
— Ah! escuta: sabes que ela teve a audácia de me dizer há pouco que estrangularia a Catherine se esta fizesse qualquer bobagem? Como se o latagão do Chaval já não tivesse há muito tempo dado um jeito nela, lá no galpão...
— Psiu! Aí vêm eles.

      As duas mulheres adotaram então um ar despreocupado, sem mostras de curiosidade, contentando-se em espiar os visitantes pelo rabo do olho. Em seguida, chamaram com um aceno enérgico a outra, que ainda trazia Estelle ao colo. E as três, imóveis, ficaram contemplando as costas bem vestidas da Sra. Hennebeau, que se afastava com seus convidados. Quando estes iam já a uns trinta passos, o falatório recomeçou com violência redobrada. 

— Esses vestidos valem talvez mais do que elas. 
— Ah! claro... Não conheço a outra, mas essa daqui não vale quatro soldos, grande como é. Contam cada história... 
— Hem? Que histórias? 
— Que ela teria muitos homens, ora! Para começar, o engenheiro... 
— Aquele magricela? Não, é muito pequeno, ela o perderia entre os lençóis. 
— E o que é que tem, se ela gosta? Eu, quando vejo uma mulher assim, sempre fazendo caras de enjoo, de nariz torcido, fico logo desconfiada. Olha como ela rebola o traseiro, como que para nos rebaixar. Então isso se faz?

     Os visitantes continuavam no mesmo passo lento, conversando, quando uma caleça apareceu, indo estacionar defronte à igreja. Saltou dela um homem dos seus quarenta e oito anos, apertado numa sobrecasaca preta, bem moreno, de semblante autoritário e correto. 

— O marido! — murmurou a mulher de Levaque, baixando a voz como se ele pudesse ouvi-la, presa do medo hierárquico que o diretor inspirava aos seus dez mil operários. — Mas não é que esse homem tem mesmo cara de cornudo!

      Agora toda a aldeia estava na rua. A curiosidade das mulheres continuava a aumentar, os grupos aproximavam-se, fundiam-se em turba, enquanto bandos de crianças ranhentas se espalhavam pelas calçadas, com ar atônito. Até o professor, com seu rosto pálido, espiou por um instante por trás da sebe da escola. No meio do jardim, o homem que capinava parou de trabalhar e ali ficou, com o pé na enxada e os olhos arregalados. E o murmúrio dos cochichos foi crescendo pouco a pouco, como um ruído de matraca, semelhante a um pé-de-vento em folhas secas.
     O falatório maior era justamente em frente à casa de Levaque; primeiro aproximaram-se duas mulheres, depois dez, em seguida vinte. Prudentemente, a mulher de Pierron se calara: havia muitos ouvidos; a mulher de Maheu, uma das mais espertas, contentava-se em olhar, e, para acalmar Estelle, que acordara aos gritos, puxou para fora o seu seio enorme de vaca leiteira, que pendia flácido, como que alongado pela força de manancial do seu leite. Quando o Sr. Hennebeau acomodou as senhoras na carruagem que partiu em direção a Marchiennes, houve uma última explosão de loquacidade, todas as mulheres gesticularam, falando umas no rosto das outras, mais parecendo um formigueiro em pânico.
      Nisso, bateram três horas. Os operários do desaterro, Bouteloup e os demais, partiram para a mina. De repente, de uma esquina da igreja, começaram a surgir os primeiros mineiros que voltavam rosto preto, roupas encharcadas, braços cruzados e dorso arqueado' Houve então uma debandada entre as mulheres, todas corriam todas voltavam para os trabalhos caseiros que haviam esquecido de tanto dar com a língua nos dentes e tomar café. E não se ouviu mais que a exclamação irritada, cheia de ameaças:

— Ah, meu Deus! E a sopa, e a sopa, que ainda não está pronta!

continua na página 95...
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Segunda Parte - (III.b) Ao voltar para casa
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.

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