Capítulo 4
continuando...
Felizmente para Orlando — embora a princípio decepcionante — que assim fosse, pois ela agora começava a conviver mais com os homens de gênio. Eles não eram tão diferentes de nós, como se poderia supor. Addison, Pope, Swift gostavam de chá — ela descobriu. Gostavam de caramanchões. Colecionavam pequenos pedaços de vidro colorido. Adoravam grutas. Não detestavam honrarias. Apreciavam elogios. Um dia usavam ternos cor de ameixa, e no outro cinzentos. O sr. Swift tinha uma bonita bengala de junco. O sr. Addison perfumava seus lenços. O sr. Pope sofria de dor de cabeça. Um pouco de mexerico não os contrariava. Nem deixavam de ser ciumentos. (Estamos anotando algumas reflexões que ocorreram a Orlando desordenadamente.) A princípio ela se aborrecia consigo mesma por observar tais ninharias e mantinha um livro para escrever o que eles dissessem de memorável, mas a página permanecia vazia. Mesmo assim, entusiasmou-se e começou a rasgar os convites para as grandes reuniões; mantinha as tardes livres; começou a viver na expectativa da visita do sr. Pope, do sr. Addison, do sr. Swift — e assim por diante. Se o leitor quiser consultar O rapto da madeixa, O espectador, As viagens de Gulliver, compreenderá precisamente o que significam essas misteriosas palavras. Na verdade, biógrafos e críticos poderiam poupar seu trabalho se os leitores seguissem este conselho. Pois, quando lemos:
Se a Ninfa quebrar a lei de Diana,
Ou lascar o frágil jarro de porcelana,
Ou manchar sua honra ou seu novo brocado,
Esquecer a oração ou faltar à mascarada.
Perder o coração ou o colar num baile,
— sabemos, como se o escutássemos, como a língua do sr. Pope vibrava como a de um camaleão, como seus olhos brilhavam, como sua mão tremia, como ele amava, como mentia, como sofria. Em síntese, todos os segredos da alma de um escritor, todas as experiências de sua vida, todas as qualidades de seu espírito estão expressos em suas obras, e mesmo assim precisamos de críticos para explicar uns e de biógrafos para expor outros. A única explicação para esse monstruoso crescimento é que as pessoas estão enfadadas.
Assim, depois de lermos uma ou duas páginas do Rapto da madeixa, sabemos exatamente por que Orlando estava tão alegre e assustada, e com as faces e os olhos tão brilhantes naquela tarde.
A sra. Nelly bateu então à porta para dizer que o sr. Addison desejava ver a sua senhora. Com isso, o sr. Pope se levantou com um sorriso enviesado, despediu-se e partiu manquejando. O sr. Addison entrou. Enquanto ele se senta, vamos ler a seguinte passagem do Espectador:
Considero a mulher um animal belo e romântico, que pode ser adornado com peles e plumas, pérolas e diamantes, metais e sedas. O lince lançara sua pele a seus pés para lhe fazer uma peliça; o pavão, o papagaio e o cisne contribuirão para o seu regalo; o mar será explorado por suas conchas e as rochas por suas gemas, e todas as partes da natureza fornecerão quotas para o embelezamento da criatura que é a sua obra suprema. Tudo isso eu perdoo, mas, quanto à saia de que venho falando, não posso nem quero aprovar.
Mantemos este cavalheiro, de tricórnio e tudo na palma da mão. Olhemos uma vez mais pelo cristal. Não se vê claramente até a prega de sua meia? Não estão expostos para nós cada ondulação e cada curva de seu talento, e sua bondade, e sua timidez, e sua urbanidade, e o fato de vir a casar com uma condessa e por fim morrer muito respeitavelmente? Tudo isso é claro. E, quando o sr. Addison acabou a sua fala, ouviu-se uma tremenda pancada à porta, e o sr. Swift, que tinha maneiras autoritárias, entrou sem ser anunciado. Um momento, onde estão As viagens de Gulliver? Aqui estão! Vamos ler um trecho da Viagem a Houyhnhnms:
Gozei perfeita Saúde de Corpo e Tranquilidade de Espírito; não encontrei a Traição nem a Inconstância de um Amigo, nem as Injúrias de um Inimigo secreto ou declarado. Não tive ocasião de subornar, adular ou alcovitar para obter Favor de qualquer grande Homem nem de seu Favorito. Não necessitei de nenhuma Trincheira contra Fraude ou Opressão; aqui não havia Médico para destruir o meu Corpo nem Advogado para arruinar minha Fortuna; nem Informante de Aluguel para vigiar minhas Palavras e Ações, nem para forjar Acusações contra mim; aqui não havia Zombadores, Censores, Caluniadores, Ladrões, Salteadores, Assaltantes, Juízes, Cafetinas, Bufões, Jogadores, Políticos, Talentos, Faladores, Rabugentos e Cansativos...
Mas para, para tua saraivada férrea de palavras, ou seremos esfolados vivos e tu também! Nada pode ser mais óbvio do que este homem violento. Ele é tão grosseiro e ao mesmo tempo tão límpido; tão brutal e tão bondoso; despreza o mundo inteiro, embora fale com uma menina em linguagem infantil, e morrerá num manicômio — quem duvida?
Assim, Orlando servia chá para todos; e às vezes, quando o tempo estava bom, levava-os consigo para o campo e oferecia-lhes banquetes régios no Salão Redondo, onde pendurara todos os seus retratos em círculo, de modo que o sr. Pope não pudesse dizer que o sr. Addison vinha antes dele, ou vice-versa. Eles eram muito talentosos, também (mas o talento está todo em seus livros), e ensinavam-lhe a parte mais importante do estilo, que é o curso natural da voz que fala — uma qualidade que ninguém sem tê-la ouvido pode imitar, nem mesmo Greene, com toda a sua habilidade; pois nasce do ar e quebra-se como uma onda sobre a mobília, rola e desaparece, e não é para ser recapturada nunca, menos ainda por aqueles que tentam, aguçando os ouvidos meio século depois. Eles lhe ensinaram isso simplesmente pela cadência de suas vozes ao falar; de modo que seu estilo mudou um pouco, e ela escreveu alguns versos agradáveis e talentosos e alguns personagens em prosa. E assim ela esbanjou o seu vinho com eles, colocou dinheiro sob seus pratos ao jantar — que guardavam muito cordialmente — e aceitou suas dedicatórias, e sentiu-se altamente honrada com a troca.
Assim passava o tempo, e Orlando frequentemente dizia para si mesma, com ênfase que podia parecer talvez um pouco suspeita para o ouvinte: “Por minha alma, que vida é esta!” (pois ela ainda estava à procura desse artigo). Mas as circunstâncias logo forçaram-na a considerar o assunto mais minuciosamente.
Um dia estava servindo chá para o sr. Pope, que — como qualquer pessoa pode inferir dos versos citados acima — a observava com olhos brilhantes, sentado enroscado numa cadeira ao seu lado.
“Senhor”, pensou enquanto erguia a pinça de açúcar, “como as mulheres dos tempos futuros me invejarão! E no entanto”, fez uma pausa, pois o sr. Pope precisava de sua atenção. E no entanto — vamos completar o pensamento para ela — quando alguém diz: “como o futuro me invejará” é razoável dizer que se sente extremamente desconfortável no presente. Seria esta vida tão excitante, tão lisonjeira, tão gloriosa quanto parece na obra do escritor de memórias? Por um lado, Orlando positivamente detestava chá; por outro, o intelecto, divino como é, e todo adorável, tem o hábito de se alojar nas carcaças mais cheias de sementes e frequentemente — ai de nós — age como um canibal entre as outras faculdades, de modo que muitas vezes, quando o Espírito é grande, o Coração, os Sentidos, a Magnanimidade, a Caridade, a Tolerância, a Bondade e o resto dificilmente encontram espaço para respirar. Por isso a alta conta que os poetas têm de si mesmos; por isso a baixa conta que têm dos outros; por isso as inimizades, injúrias, invejas e ofensas em que estão constantemente envolvidos; por isso a volubilidade que se permitem; por isso a avidez com que demandam simpatia; tudo isso, pode-se murmurar desde que os intelectuais não nos ouçam, tornando o servir o chá uma ocupação mais arriscada e mais árdua do que geralmente se imagina. Acrescente-se a isso (e de novo murmuramos para que as mulheres não nos ouçam) que há um pequeno segredo que os homens compartilham entre si; Lorde Chesterfield murmurou a seu filho com as mais severas recomendações de segredo “As mulheres são apenas crianças grandes... Um homem inteligente apenas se diverte com elas, brinca com elas, agrada-as e elogia-as”, e, como as crianças sempre ouvem aquilo que não devem, e às vezes crescem e podem deixar escapar algo, toda a cerimônia de servir o chá é curiosa. Uma mulher sabe bem disso, embora um gênio lhe envie seus poemas, elogie seu julgamento, solicite sua crítica e tome o seu chá, isso de modo algum significa que ele respeite suas opiniões, admire sua compreensão ou recuse, embora o espadim lhe seja negado, trespassá-la com sua pena. Tudo isso, por mais baixo que murmuremos, pode transpirar; de modo que, mesmo com uma jarra de creme suspensa e as pinças de açúcar estendidas, as senhoras podem se sentir cansadas, olhar um pouco pela janela, bocejar um pouco, e deixar o açúcar cair com um grande ploc — como Orlando fez agora — no chá do sr. Pope. Nunca houve um mortal tão pronto a suspeitar de um insulto nem tão rápido em vingá-lo como o sr. Pope. Virou-se para Orlando e presenteou-a imediatamente com um esboço imperfeito de um famoso verso dos “Retratos de Mulheres”. Muito polimento lhe foi dado posteriormente, mas mesmo no original era bastante ferino. Orlando recebeu com uma reverência. O sr. Pope partiu, com uma mesura. Orlando — para refrescar as faces, pois se sentia como se o homenzinho tivesse batido nela — vagou pelo bosque de nogueiras, ao fundo do jardim. Em breve a brisa fresca produziu seus efeitos. Para seu espanto, descobriu que se sentia grandemente aliviada de estar só. Contemplou os alegres barcos de carga subindo o rio. Sem dúvida, a visão recordou-lhe um ou dois acontecimentos de sua vida passada. Sentou-se em profunda meditação sob um lindo salgueiro. Ali ficou sentada até que as estrelas surgissem no céu. Então levantou-se, voltou e entrou na casa, onde dirigiu-se para o seu quarto e fechou a porta. Em seguida abriu um armário onde ainda se encontravam muitas roupas que havia usado quando era um rapaz da moda e dentre elas escolheu um traje de veludo preto ricamente bordado com renda veneziana. Estava um pouco fora de moda, na verdade, mas caiu-lhe perfeitamente, e, nele vestida, parecia a própria imagem de um nobre Lorde. Deu uma ou duas voltas diante do espelho para se certificar de que suas saias não tinham prejudicado a desenvoltura das pernas e então saiu secretamente da casa.
Era uma linda noite do início de abril. Miríades de estrelas, misturando-se com a luz da lua em forma de foice, ainda reforçada pelos lampiões de rua, produziam uma luz infinitamente favorável à fisionomia humana e à arquitetura do sr. Wren. Todas as coisas apareciam com o seu mais suave aspecto e, quando estavam prestes a se dissolver, uma gota de prata as reavivava e animava. Assim é que deveria ser a conversação, pensou Orlando (permitindo-se sonhos absurdos); deveria ser a sociedade, deveria ser a amizade, deveria ser o amor. Pois — os céus saberão por quê —, quando perdemos a fé nas relações humanas, a disposição casual de celeiros e de árvores ou de montes de feno e de um vagão se nos apresenta como um tão perfeito símbolo do inatingível que recomeçamos a procurar.
Entrava em Leicester Square enquanto fazia estas observações. Os prédios tinham uma simetria formal e etérea, que não possuem durante o dia. A abóbada celeste parecia ter sido muito cuidadosamente lavada, para completar o perfil dos telhados e das chaminés. Uma jovem tristemente sentada sob um plátano no meio da praça, com um braço caído para um lado e o outro repousando no colo, parecia a própria imagem da graça, da simplicidade e da desolação. Orlando deu uma barretada com o chapéu, como um galanteador corteja uma dama da moda num lugar público. A jovem ergueu a cabeça. Era belíssima. A jovem ergueu os olhos. Orlando viu neles um brilho, tal como às vezes se vê nos bules de chá, mas raramente num rosto humano. Através desse brilho de prata a jovem fitou-o (pois para ela era um homem) suplicante, esperançosa, trêmula, medrosa. Levantou-se; aceitou o seu braço. Pois — precisamos esclarecer? — ela era da tribo que todas as noites lustra sua mercadoria e arruma-a no balcão, à espera do melhor freguês. Conduziu Orlando ao quarto que lhe servia de alojamento, em Gerrard Street. Senti-la apoiada levemente, embora suplicante, em seu braço despertou em Orlando todos os sentimentos próprios de um homem. Olhava, sentia, falava como homem. Contudo, tendo sido ultimamente ela própria mulher, suspeitava que a timidez da moça, e suas respostas hesitantes, e seu desajeitamento com a chave na fechadura e com a dobra do seu casaco, e a languidez de sua mão, tudo isso fosse para agradar a sua masculinidade. Subiram, e o trabalho que a pobre criatura tivera para decorar o seu quarto e esconder o fato de que não possuía outro não enganou Orlando por um momento sequer. A decepção provocava-lhe desprezo; a verdade provocava-lhe compaixão. Uma coisa insinuando-se através da outra deu origem à mais estranha mistura de sentimentos, de modo que não sabia se ria ou se chorava. Enquanto isso, Nell, que era o nome da moça, desabotoou as luvas; cuidadosamente escondeu o polegar da mão esquerda, que estava descosturado; depois, esgueirou-se por trás de um biombo, onde talvez coloriu as faces, arrumou as roupas, colocou um outro lenço ao redor do pescoço, tagarelando o tempo todo como fazem as mulheres para distrair seus amantes, embora Orlando pudesse jurar pelo tom de sua voz, que seus pensamentos estavam noutro lugar. Quando tudo estava pronto reapareceu preparada — mas aí Orlando não pôde mais suportar. Num estranho acesso de raiva, alegria e piedade, arrancou todos os disfarces e admitiu que era uma mulher.
continua pag 87...
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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.
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Leia também:
Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando...
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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (a) ... Com alguns guinéus
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Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (d) ... Orlando atirou a segunda meia
[1] Em francês no original: mot, palavra, dito de espírito. (N.E.)
[2] Estes ditos são conhecidos demais para requererem repetição, e, além disso, são todos
encontrados nas suas obras completas. (N.A.)