quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Espumas Flutuantes - Prólogo

Castro Alves

À memória de Meu Pai, 
de Minha Mãe 
e de Meu Irmão 
O. D. C. 

PRÓLOGO

     Era por uma dessas tardes, em que o azul do céu oriental — é pálido e saudoso, em que o rumor do vento nas vergas — é monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio — é queixoso e tétrico.
     Das bandas do Ocidente o sol se atufava nos mares “como um brigue em chamas”... e daquele vasto incêndio do crepúsculo alastrava-se a cabeça loura das ondas.
     Além... os cerros de granito dessa formosa terra da Guanabara, vacilantes, a lutarem com a onda invasora de azul, que descia das alturas... recortavam-se indecisos na penumbra do horizonte.
     Longe, inda mais longe... os cimos fantásticos da serra dos Órgãos embebiam-se na distância, sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.
     Só e triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos aquele esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à forma vacilante das montanhas — derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade.
     É que lá, dessas terras do Sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos, o viço de todas as ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças de glória e de futuro:... é que dessas terras do Sul, onde eu penetrara “como o moço Rafael subindo as escadas do Vaticano;”... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por única ambição — a esperança de repouso em minha pátria.
     Foi então que, em face destas duas tristezas — a noite que descia dos céus, — a solidão que subia do oceano —, recordei-me de vós, ó meus amigos!
     E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra hospitaleira, onde vagara; nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e cantara...
     Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!... Vós bem sabeis quanto sois efêmeros... — passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no escuro esquecimento.
     E quando — comediantes do infinito — vos obumbrais nos bastidores do abismo, o que resta de vós?

— Uma esteira de espumas... — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. — Um punhado de versos... — espumas flutuantes no dorso fero da vida!...

     E o que são na verdade estes meus cantos?...
     Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa — este sopro do alto; do coração — este pélago da alma.
     E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebentaram ao estalar fatídico do látego da desgraça.
     E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico do entusiasmo — estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!
     Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos! — efêmeros filhos de minh’alma — levar uma lembrança de mim às vossas plagas!...
 São Salvador, fevereiro de 1870 
 Antônio de Castro Alves 

DEDICATÓRIA

A pomba d’aliança o voo espraia 
 Na superfície azul do mar imenso, 
 Rente... rente da espuma já desmaia 
 Medindo a curva do horizonte extenso... 
 Mas um disco se avista ao longe... 
A praia Rasga nitente o nevoeiro denso!... 
 Ó pouso! ó monte! ó ramo de oliveira! 
 Ninho amigo da pomba forasteira!... 

Assim, meu pobre livro as asas larga 
 Neste oceano sem fim, sombrio, eterno... 
 O mar atira-lhe a saliva amarga, 
 O céu lhe atira o temporal de inverno... 
 O triste verga a tão pesada carga! 
 Quem abre ao triste um coração paterno?... 
 É tão bom ter por árvore — uns carinhos! 
 É tão bom de uns afetos — fazer ninhos! 

Pobre órfão! Vagando nos espaços 
 Embalde às solidões mandas um grito! 
 Que importa? De uma cruz ao longe os braços 
 Vejo abrirem-se ao mísero precito... 
 Os túmulos dos teus dão-te regaços! 
 Ama-te a sombra do salgueiro aflito... 
 Vai, pois, meu livro! e como louro agreste 
 Traz-me no bico um ramo de... cipreste! 
      
Bahia, janeiro de 1870 

O LIVRO E A AMÉRICA
Ao Grêmio Literário 

Talhado para as grandezas, 
 Pra crescer, criar, subir, 
 O Novo Mundo nos músculos 
 Sente a seiva do porvir. 
 — Estatuário de colossos — 
 Cansado d’outros esboços 
 Disse um dia Jeová: 
 “Vai, Colombo, abre a cortina 
“Da minha eterna oficina... 
 “Tira a América de lá.”

Molhado inda do dilúvio, 
 Qual Tritão descomunal, 
 O continente desperta 
 No concerto universal. 
 Dos oceanos em tropa 
 Um — traz-lhe as artes da Europa, 
 Outro — as bagas de Ceilão... 
 E os Andes petrificados, 
 Como braços levantados, 
 Lhe apontam para a amplidão.  

Olhando em torno então brada: 
 “Tudo marcha!... Ó grande Deus! 
 “As cataratas — pra terra, 
 “As estrelas — para os céus. 
 “Lá, do pólo sobre as plagas, 
 “O seu rebanho de vagas 
 “Vai o mar apascentar... 
 “Eu quero marchar com os ventos, 
 “Com os mundos... co’os firmamentos!!!” 
 E Deus responde — “Marchar!” 

“Marchar!... Mas como?... Da Grécia 
 Nos dóricos Partenons 
 A mil deuses levantando 
 Mil marmóreos Panteons?... 
 Marchar co’a espada de Roma 
 — Leoa de ruiva coma 
 De presa enorme no chão, 
 Saciando o ódio profundo... 
 — Com as garras nas mãos do mundo, 
 — Com os dentes no coração?...  

“Marchar!... Mas como a Alemanha 
 Na tirania feudal, 
 Levantando uma montanha 
 Em cada uma catedral?... 
 Não!... Nem templos feitos de ossos, 
 Nem gládios a cavar fossos 
 São degraus do progredir... 
 Lá brada César morrendo: 
 “No pugilato tremendo 
 “Quem sempre vence é o porvir!”

Filhos do sec’lo das luzes! 
 Filhos da Grande nação! 
 Quando ante Deus vos mostrardes, 
 Tereis um livro na mão: 
 O livro — esse audaz guerreiro 
 Que conquista o mundo inteiro 
 Sem nunca ter Waterloo... 
 Éolo de pensamentos, 
 Que abrira a gruta dos ventos 
 Donde a Igualdade voou!... 

Por uma fatalidade 
 Dessas que descem de além, 
 O séc’lo, que viu Colombo, 
 Viu Guttenberg também. 
 Quando no tosco estaleiro 
 Da Alemanha o velho obreiro 
 A ave da imprensa gerou... 
 O Genovês salta os mares... 
 Busca um ninho entre os palmares 
 E a pátria da imprensa achou... 

Por isso na impaciência 
 Desta sede de saber, 
 Como as aves do deserto — 
 As almas buscam beber... 
 Oh! bendito o que semeia 
 Livros... livros à mão cheia... 
 E manda o povo pensar! 
 O livro caindo n’alma 
 É gérmen — que faz a palma, 
 É chuva — que faz o mar. 

Vós, que o templo das ideias 
 Largo — abris às multidões, 
 Pra o batismo luminoso 
 Das grandes revoluções, 
 Agora que o trem de ferro  
Acorda o tigre no cerro 
 E espanta os caboc’los nus, 
 Fazei desse “rei dos ventos” 
 — Ginete dos pensamentos, 
 — Arauto da grande luz!...

Bravo! a quem salva o futuro 
 Fecundando a multidão!... 
 Num poema amortalhada 
 Nunca morre uma nação. 
 Como Goëthe moribundo 
 Brada “Luz!” o Novo Mundo 
 Num brado de Briareu... 
 Luz! pois, no vale e na serra... 
 Que, se a luz rola na terra, 
 Deus colhe gênios no céu!... 
Bahia 

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Prólogo / 
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Antônio Frederico de Castro Alves - foi um poeta, dramaturgo e advogado brasileiro, considerado o principal representante da terceira geração do romantismo no Brasil. Ficou conhecido por seus poemas abolicionistas, que renderam-lhe a alcunha de "poeta dos escravos".
Nascimento: 14 de março de 1847, Castro Alves, Bahia - Falecimento: 6 de julho de 1871, Salvador, Bahia. 
Influenciado por: Gonçalves Dias, Lord Byron, Victor Hugo, 
Formação: Faculdade de Direito do Recife | FDR, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) 
Pais: Clélia Brasília da Silva Castro, Antônio José Alves
Irmãos: Adelaide Alves, Cassiano José Alves
O “poeta dos escravos” foi um poeta sensível aos graves problemas sociais do seu tempo. Expressou sua indignação contra as tiranias e denunciou a opressão do povo.
A poesia abolicionista é sua melhor realização nessa linha, denunciando energicamente a crueldade da escravidão e clamando pela liberdade. Seu poema abolicionista mais famoso é “O Navio Negreiro”.

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