Hannah Arendt
Parte III
TOTALITARISMO
Os homens normais não sabem que tudo é possível.
David Rousset
2 - A Organização Totalitária
continuando...
Se a importância das formações paramilitares para os movimentos totalitários não reside no seu
duvidoso valor militar, também não reside inteiramente na sua falsa imitação do Exército
regular. Como formações de elite, são mais nitidamente separadas do mundo externo do que
qualquer outro grupo. Os nazistas cedo compreenderam a íntima relação entre a militância total
e a separação total da normalidade; as tropas de assalto nunca eram enviadas a serviço para as
suas comunidades de origem e os oficiais ativos da SA, no estágio anterior ao poder, e os da SS,
já sob o regime nazista, eram tão móveis e tão frequentemente substituídos que simplesmente
não podiam habituar-se ou deitar raízes em nenhuma parte do mundo comum.[80] Eram
organizados segundo o modelo das gangues de criminosos e usados para o assassinato
organizado.[81] Esses assassinatos eram perpetrados publicamente e oficialmente confessados pela
alta hierarquia nazista, de modo que essa franca cumplicidade quase impossibilitava aos
membros deixarem o movimento, mesmo sob o governo não-totalitário e mesmo que não
fossem ameaçados, como realmente o eram, por seus antigos camaradas. A esse respeito, a
função das formações de elite é exatamente oposta àquela das organizações de vanguarda:
enquanto as últimas emprestam ao movimento um ar de respeitabilidade e inspiram confiança,
as primeiras, disseminando a cumplicidade, fazem com que cada membro do partido sinta que
abandonou para sempre o mundo normal onde o assassinato é colocado fora da lei, e que será
responsabilizado por todos os crimes da elite.[82] Consegue-se isto ainda no estágio anterior ao
poder, quando a liderança sistematicamente assume responsabilidade por todos os crimes e não
deixa dúvida de que foram cometidos para o bem final do movimento.
A criação de condições artificiais de guerra civil, através das quais os nazistas exerceram
chantagem até subir ao poder, não pretende apenas provocar desordens. Para o movimento, a
violência organizada é o mais eficaz dos muros protetores que cercam o seu mundo fictício, cuja
"realidade" é comprovada quando um membro receia mais abandonar o movimento do que as consequências da sua
cumplicidade em atos ilegais, e se sente mais seguro como membro do que como oponente.
Esse sentimento de segurança, resultante da violência organizada com a qual as formações de
elite protegem os membros do partido contra o mundo exterior, é tão importante para a
integridade do mundo fictício da organização quanto o medo do seu terrorismo.
No centro, do movimento, como o motor que o aciona, senta-se o Líder. Separa-o da formação
de elite um círculo interno de iniciados que o envolvem numa aura de impenetrável mistério
correspondente à sua "preponderância inatingível".[83] Sua posição dentro desse círculo íntimo
depende da habilidade com que arma intrigas entre os membros e efetua constantes mudanças
de pessoal. Deve a liderança mais à sua extrema capacidade de manobrar as lutas intestinas do
partido pelo poder do que a qualidades demagógicas ou burocrático organizacionais. Difere do
antigo tipo de ditador por não precisar vencer por meio da simples violência. Hitler não
necessitou nem da SA nem da SS para assegurar a sua posição como líder do movimento
nazista; pelo contrário, Rõhm, o chefe da SA, que podia contar com a lealdade da SA em
relação à sua pessoa, era um dos inimigos de Hitler dentro do partido. Stálin venceu Trótski, que
não somente tinha muito maior poder de atração sobre as massas, mas que, ainda como chefe do
Exército Vermelho, detinha em suas mãos o maior potencial de poder da Rússia soviética na
época.[84] E não era Stálin, mas Trótski, o maior talento organizacional, o burocrata mais capaz da
Revolução Russa.[85] Por outro lado, tanto Hitler como Stálin eram mestres em detalhes e, nos
estágios iniciais de suas carreiras, dedicaram-se quase exclusivamente a questões de pessoal, de
modo que, alguns anos depois, quase todo homem importante no partido devia a eles a sua
posição.[86]
Tais capacidades pessoais, no entanto, embora sejam um pré-requisito absoluto para os
primeiros estágios da carreira, e mesmo mais tarde estejam longe de serem insignificantes, já não são decisivas a partir do momento em que o movimento totalitário
se consolida, em que se estabelece o princípio de que "o desejo do Führer é a lei do Partido", e toda a
hierarquia partidária está eficazmente treinada para o único fim de transmitir rapidamente o desejo do
Líder a todos os escalões. A essa altura, o Líder torna-se insubstituível, porque toda a complicada
estrutura do movimento perderia a sua raison d'être sem as suas ordens. Agora, a despeito das eternas
cabalas do círculo íntimo e das infindáveis mudanças de pessoal, com as tremendas acumulações de ódio,
amargura e ressentimento pessoal que acarretam, a posição do Líder pode repousar em segurança contra
as caóticas revoluções palacianas — não devido aos seus dons superiores, a respeito dos quais os homens
dos círculos íntimos geralmente não têm ilusões, mas graças à sincera e sensata convicção desses homens
de que, sem ele, todo o movimento iria imediatamente por água abaixo.
A suprema tarefa do Líder é personificar a dupla função que caracteriza cada camada do movimento —
agir como a defesa mágica do movimento contra o mundo exterior e, ao mesmo tempo, ser a ponte direta
através da qual o movimento se liga a esse mundo. O Líder representa o movimento de um modo
totalmente diferente de todos os líderes de partidos comuns, já que proclama a sua responsabilidade
pessoal por todos os atos, proezas e crimes cometidos por qualquer membro ou funcionário em sua
qualidade oficial. Essa responsabilidade total é o aspecto organizacional mais importante do chamado
princípio de liderança, segundo o qual cada funcionário não é apenas designado pelo ' Líder, mas é a sua
própria encarnação viva, e toda ordem emana supostamente dessa única fonte onipresente. Essa completa
identificação do Líder com todo sub líder nomeado por ele e esse monopólio de responsabilidade
centralizado por tudo o que foi, está sendo ou virá a ser feito são também os limites mais visíveis da
grande diferença entre o líder totalitário e o ditador ou déspota comum. Um tirano jamais se identificaria
com os seus subordinados, e muito menos com cada um dos seus atos;[87] poderia usá-los como bodes
expiatórios, deixando, com prazer, que fossem criticados para colocar-se a salvo da ira do povo, mas
sempre manteria uma distância absoluta de todos os seus subordinados e súditos. O Líder, ao contrário,
não pode tolerar críticas aos seus subordinados, uma vez que todos agem em seu nome; se deseja corrigir
os próprios erros, tem que liquidar aqueles que os cometerem por ele; se deseja inculpar a outros por esses
erros, tem de matá-los. Pois, nessa estrutura organizacional, o erro só pode ser uma fraude: o Líder estava
sendo representado por um impostor.[88]
Essa responsabilidade total por tudo o que o movimento faz e essa identificação total com cada um dos
funcionários têm a consequência muito prática de que ninguém se vê numa situação em que tem de se
responsabilizar por suas ações ou explicar os motivos que levaram a elas. Uma vez que o Líder monopoliza o direito e a possibilidade de explicação, ele é, para o mundo exterior, à única pessoa que sabe o
que está fazendo, isto é, o único representante do movimento com quem ainda é possível conversar em
termos não-totalitários e que,-em caso de censura ou de oposição, não dirá: não me pergunte, pergunte ao
Líder. Estando no centro do movimento, o Líder pode agir como se estivesse acima dele. Ê, portanto,
perfeitamente compreensível (embora perfeitamente fútil) que pessoas de fora depositem, muitas vezes,
suas esperanças numa conversa pessoal com o próprio Líder, quando têm de tratar com movimentos ou
governos totalitários. O verdadeiro mistério do Líder totalitário reside na organização que lhe permite
assumir a responsabilidade total por todos os crimes cometidos pelas formações de elite e, ao mesmo
tempo, adotar a honesta e inocente respeitabilidade do mais ingênuo simpatizante.[89]
Os movimentos totalitários têm sido chamados de "sociedades secretas. montadas à luz do dia".[90]
Realmente, embora pouco se saiba quanto à estrutura sociológica e à história mais recente das sociedades secretas, a estrutura dos movimentos,
sem precedentes quando comparada com partidos e facções, lembra-nos em primeiro lugar
certas características dessas sociedades.[91] As sociedades secretas formam também hierarquias de
acordo com o grau de "iniciação", regulam a vida dos seus membros segundo um pressuposto
secreto e fictício que faz com que cada coisa pareça ser outra coisa diferente; adotam uma
estratégia de mentiras coerentes para iludir as massas de fora, não iniciadas; exigem obediência
irrestrita dos seus membros, que são mantidos coesos pela fidelidade a um líder frequentemente
desconhecido e sempre misterioso, rodeado, ou supostamente rodeado, por um pequeno círculo
de iniciados; e estes, por sua vez, são rodeados por semi iniciados que constituem uma espécie
de "amortecedor" contra o mundo profano e hostil.[92] Os movimentos totalitários têm ainda em
comum com as sociedades secretas a divisão dicotômica do mundo entre "irmãos jurados de
sangue" e uma massa indistinta e inarticulada de inimigos jurados.[93] Essa distinção, baseada na
absoluta hostilidade contra o mundo que os rodeia, é muito diferente da tendência dos partidos
comuns de dividir o povo entre os que pertencem e os que não pertencem à organização. Os partidos e as sociedades abertas, geralmente, só consideram inimigos aqueles que se lhes opõem
expressamente, enquanto o princípio das sociedades secretas sempre foi que "aquele que não
estiver expressamente incluído, está excluído".[94] Esse princípio esotérico parece inteiramente
inadequado a organizações de massa; contudo, os nazistas ofereciam aos seus membros pelo
menos o equivalente psicológico do ritual de iniciação das sociedades secretas quando, em lugar
de simplesmente excluírem os judeus da organização, exigiam prova de ascendência não
judaiçar dos seus membros, estabelecendo um complicado mecanismo para esclarecer a obscura
origem genética de 80 milhões de alemães. O resultado foi uma comédia, e uma comédia cara,
quando 80 milhões de alemães saíram à cata de avós judeus; mas aqueles que passavam a prova
sentiam pertencer a um grupo de incluídos que se destacava contra uma multidão imaginária de
inelegíveis. O mesmo princípio é aplicado no movimento bolchevista, através de repetidos
expurgos no partido que inspiram em todos os que sobram uma reafirmação da sua inclusão.
Talvez a mais clara semelhança entre as sociedades secretas e os movimentos totalitários esteja
na importância do ritual. As marchas na praça Vermelha em Moscou são, nesse ponto, tão
típicas quanto as pomposas formalidades do nazismo do tempo de Nurembergue. No centro do
ritual nazista estava a chamada "bandeira de sangue", e no centro do ritual bolchevista está o
corpo mumificado de Lênin, ambos impregnando a cerimônia com um forte elemento de
idolatria. Essa idolatria não prova a existência de tendências pseudo religiosas ou heréticas que
muitos querem ver nos movimentos totalitários. Os "ídolos" são simples truques
organizacionais, muito praticados nas sociedades secretas, que também forçavam os seus
membros a guardar segredo por medo e respeito a símbolos assustadores. As pessoas unem-se
mais firmemente através da experiência partilhada de um ritual secreto do que pela simples
admissão ao conhecimento do segredo. O fato de que o segredo dos movimentos totalitários é
exibido em plena luz do dia não muda necessariamente a natureza da experiência.[95]
Naturalmente, essas semelhanças não são acidentais; não podem ser explicadas simplesmente
pelo fato de que tanto Hitler como Stálin haviam sido membros de sociedades secretas antes de
se tornarem líderes totalitários — Hitler no serviço secreto do Reichswehr e Stálin na
conspiração do partido bolchevista. São, até certo ponto, resultado natural da ficção conspiratória do totalitarismo, cujas organizações
são supostamente criadas para combater as sociedades secretas — a sociedade secreta dos judeus ou a
sociedade dos conspiradores trotskistas. O que é notável nas organizações totalitárias é que saibam
adotar expedientes organizacionais das sociedades secretas sem jamais manter em segredo seu próprio
objetivo. Que os nazistas queriam conquistar o mundo, deportar todos os que fossem "racialmente
estrangeiros" e exterminar todos os que tivessem "herança biológica inferior", que os bolchevistas lutam
pela revolução mundial — nada disso jamais foi segredo; pelo contrário, esses objetivos sempre fizeram
parte da sua propaganda. Em outras palavras, os movimentos totalitários imitam todos os acessórios das
sociedades secretas, mas esvaziam-nas do único elemento que poderia justificar os seus métodos: a
necessidade de manter segredo.
Nisso, como em tantos outros aspectos, o nazismo e o bolchevismo chegaram ao mesmo resultado
organizacional a partir de origens históricas muito diferentes. Os nazistas começaram com a ficção de
uma conspiração e imitaram, mais ou menos conscientemente, o modelo da sociedade secreta dos sábios
do Sião, enquanto os bolchevistas vieram de um partido revolucionário, cujo objetivo era a ditadura de
um só partido, atravessaram a fase em que o partido ficava "inteiramente acima e separado de tudo", até o
instante em que o Politburo do partido ficou "inteiramente acima e separado de tudo";[96] finalmente, Stálin
impôs a essa estrutura partidária as rígidas normas totalitárias do seu setor conspirativo, e somente então
descobriu a necessidade de uma ficção central para manter na organização de massa a férrea disciplina de
uma organização secreta. A evolução nazista pode ser mais lógica, mais coerente consigo mesma, mas a
história do partido bolchevista é um exemplo melhor da natureza essencialmente fictícia do totalitarismo,
precisamente porque as fictícias conspirações globais, contra as quais e de acordo com as quais a
conspiração bolchevista supostamente se organizou, não foram ideologicamente fixadas. Mudaram — dos
trotskistas para as trezentas famílias, depois para os vários "imperialismos" e, mais recentemente, para o
"cosmopolitismo sem raízes" — e foram ajustadas à realidade política segundo as necessidades do
momento; mas nunca e em nenhuma das mais diversas circunstâncias pôde o bolchevismo passar sem
algum tipo de ficção.
Os meios pelos quais Stálin transformou a ditadura unipartidária russa em regime totalitário e os partidos
comunistas revolucionários de todo o mundo em movimentos totalitários foram a liquidação das facções
divergentes, a abolição da democracia interna do partido e a transformação dos partidos comunistas
nacionais em ramificações do Comintern dirigidas a partir de Moscou. As sociedades secretas em geral, e
o aparelho conspirativo dos partidos revolucionários em particular, sempre foram caracterizados pela
ausência de facções, pela supressão de opiniões dissidentes e pela absoluta centralização do comando. Todas essas medidas têm a óbvia finalidade utilitária de proteger os membros contra a
perseguição e a sociedade contra a traição; a obediência total exigida de cada membro e o poder absoluto
nas mãos do chefe foram apenas subprodutos inevitáveis de necessidades práticas. O problema, porém, é
que os conspiradores têm uma tendência, compreensível aliás, de julgar como mais eficazes na política os
métodos das sociedades conspirativas e de supor que, se esses métodos puderem ser aplicados
abertamente com o apoio dos instrumentos de violência de toda uma nação, as possibilidades de acúmulo
de poder tornam-se infinitas.[97] O setor conspirativo de um partido revolucionário pode, enquanto o
próprio partido ainda está intacto, ser equiparado ao Exército dentro de uma estrutura política intacta;
embora as suas próprias regras de conduta sejam radicalmente diferentes das regras do corpo civil, o
Exército serve ao corpo político e permanece sujeito e controlado por ele. Da mesma forma que o perigo
de uma ditadura militar surge quando o Exército já não quer servir mas dominar o corpo político, também
o perigo do totalitarismo surge quando o setor conspirativo do partido revolucionário se emancipa do
controle do partido e aspira à liderança. Foi isso o que aconteceu aos partidos comunistas sob o regime de
Stálin. Os métodos de Stálin sempre foram típicos de um homem proveniente do setor conspirativo do
partido: a devoção ao detalhe, a ênfase quanto ao lado pessoal da política, a crueldade no uso e na
liquidação de companheiros e amigos. Quem mais o apoiou na luta pela sucessão após a morte de Lenin
foi a polícia secreta[98] que, na época, já era uma das mais importantes e poderosas seções do partido.[99] Nada mais natural que as simpatias da Cheka [a polícia secreta da URSS] pendessem a favor do
representante da seção conspirativa, do homem que já a encarava como uma espécie de sociedade secreta
e que, portanto, provavelmente lhe preservaria e até acrescentaria os privilégios.
A tomada dos partidos comunistas pelos setores conspirativos foi, porém, apenas o primeiro passo da sua
transformação em movimento totalitário. Não bastava que a polícia secreta da Rússia e os seus agentes
nos partidos comunistas do exterior desempenhassem no movimento o mesmo papel das formações de
elite criadas pelos nazistas sob forma de tropas paramilitares. Os próprios partidos tinham de ser
transformados, para que o domínio da polícia secreta permanecesse seguro. A liquidação das facções e da
democracia interna do partido foi, consequentemente, acompanhada na Rússia pela admissão, como membros, de grandes massas politicamente deseducadas e "neutras", manobra que foi
rapidamente seguida pelos partidos comunistas no estrangeiro depois que a Frente Popular a
adotou na França.
O totalitarismo nazista começou com uma organização de massa que foi apenas gradualmente
dominada pelas formações de elite, enquanto os bolchevistas começaram com formações de
elite e organizaram as massas de acordo com elas. Em ambos os casos ò resultado foi idêntico.
Além disso, os nazistas, em virtude da tradição e preconceitos militaristas, moldaram
inicialmente suas formações de elite segundo o padrão do Exército, enquanto os bolchevistas
desde o início outorgaram à polícia secreta o direito de exercer o poder supremo. Contudo,
bastaram poucos anos para que também essa diferença desaparecesse: o chefe da SS tornou-se
chefe da polícia secreta, e as formações da SS foram gradualmente incorporadas ao antigo
pessoal da Gestapo ao qual iriam substituir, embora esse pessoal já fosse constituído de nazistas
dignos de confiança.[100]
continua página 430...
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Parte III Totalitarismo (O Movimento Totalitário - {2b} A Organização Totalitária)
_________________[80] As unidades da Caveira da SS eram submetidas às seguintes regras: 1. Nenhuma unidade é convocada para
serviço em seu distrito natal. 2. Toda unidade é transferida após três semanas de serviço. 3. Os membros nunca
devem ser enviados às ruas sozinhos, nem devem jamais exibir em público sua insígnia da Caveira. Ver "Secret
speech by Himmler to the German Army General Staff 1938" (o discurso foi proferido em 1937) em- Nazi
conspiracy, IV, 616. Publicado também pelo American Committee for Anti-Nazi Literature.
[81] Heinrich Himmler, "Die Schutzstaffel ais antibolschewistische Kampforganisation" [A SS como organização de
luta antibolchevista], em Aus dem Schwarzen Korps, n? 3, 1936, disse publicamente: "Sei que existem pessoas na
Alemanha que sentem náuseas quando veem este dólmã negro. Compreendemos isto, e não esperamos que muita
gente goste de nós".
[82] Em seus discursos para a SS, Himmler sempre acentuava os crimes cometidos, mencionando a sua gravidade.
Diria, por exemplo, acerca da liquidação dos judeus: "Desejo também falar-vos de um assunto muito grave. Entre
nós, ele pode ser mencionado francamente, mas nunca o mencionaremos em público". Sobre a liquidação dos
intelectuais poloneses: "(...) deveis ser informados disto, e também esquecê-lo imediatamente (...)" (Nazi conspiracy,
IV, 558 e 553, respectivamente). Goebbels, op. cit., p. 266, observa no mesmo tom: "No tocante à questão judaica,
especialmente, tomamos uma posição da qual não é possível recuar. (...) A experiência nos ensina que um movimento
e um povo que queimou as suas pontes luta com determinação muito maior que aqueles que ainda podem recuar".
[83] Souvarine, op. cit., p. 648. A maneira como os movimentos totalitários mantiveram absolutamente secreta a vida
privada dos seus líderes (Hitler e Stálin) contrasta com a importância que as democracias veem na divulgação da vida
privada de presidentes, reis, primeiros-ministros etc. Os métodos totalitários não permitem uma identificação baseada
na convicção de que mesmo o mais importante dos homens é apenas um ser humano.
Souvarine, op. cit., cita os rótulos mais frequentemente usados para descrever Stálin: "Stálin, o misterioso morador do
Kremlin"; "Stálin, personalidade impenetrável"; "Stálin, a Esfinge Comunista"; "Stálin, o Enigma"; o "mistério
insolúvel" etc.
[84] "Se [Trótski] houvesse preferido montar um coup d'état militar, teria possivelmente derrotado os triúnviros. Mas
deixou o cargo sem fazer a menor tentativa de chamar em sua defesa o exército que havia criado e comandado
durante sete anos" (Isaac Deutscher, op. cit., p. 297).
[85] O Comissariado da Guerra, sob Trótski, "era uma instituição [tão] modelar" que Trótski era procurado sempre
que havia desordem nos outros ministérios. Souvarine, op. cit., p. 288.
[86] As circunstâncias da morte de Stálin parecem contradizer a infalibilidade desses métodos. É muito possível que
Stálin, o qual, antes de morrer, sem dúvida planejava outro expurgo geral, tenha sido morto por alguns elementos do
seu séquito devido ao fato de que ninguém mais se sentia seguro — mas isto nunca pôde ser provado. O fato é que os
sucessores de Stálin — seus acólitos, sem dúvida, mas, talvez, dentro dos critérios acima, seus assassinos — desfizeram-se depois do único
homem que, entre eles, detinha o poder suficiente para eliminá-los. [Trata-se de Beria, o todo-poderoso chefe da
polícia secreta da URSS. (N. E.)].
[87] Hitler telegrafou pessoalmente aos assassinos da SA assumindo a responsabilidade pelo assassinato de Potempa,
embora provavelmente nada tivesse a ver com ele. O que importava, no caso, era estabelecer um princípio de
identificação ou, nas palavras dos nazistas, "a lealdade mútua do Líder e do povo" na qual "se baseava o Reich"
(Hans Frank, op. cit.).
[88] "Uma das principais características de Stálin (...) é jogar sistematicamente os seus crimes e malfeitorias, bem
como os seus erros políticos (...) nos ombros daqueles que ele planeja desacreditar e arruinar" (Souvarine, op. cit., p. 655). É óbvio que um líder totalitário pode escolher livremente quem
ele deseja que assuma a culpa dos seus erros, uma vez que todos os atos conhecidos pelos sublíderes são inspirados
por ele, de modo que qualquer pessoa pode ser forçada a assumir o papel de impostor.
[89] Já ficou provado, por meio de numerosos documentos, que era o próprio Hitler — e não Himmler, nem
Bormann, nem Goebbels — quem sempre tomava a iniciativa das medidas realmente "radicais"; que essas medidas
eram sempre mais radicais que aquelas propostas por seus seguidores imediatos; que até mesmo Himmler ficou
horrorizado quando recebeu a incumbência da "solução final" da questão judaica. E tampouco merece alguma fé a
lenda de que Stálin era mais moderado que as facções esquerdistas do partido bolchevista. É importante lembrar que
os líderes totalitários procuram invariavelmente parecer mais moderados para o mundo exterior, e que o seu principal
papel — que é o de impelir para frente o movimento a qualquer preço, e de acelerá-lo, e não retardá-lo — é sempre cuidadosamente oculto. Ver, por exemplo, o memorando do almirante Erich Raeder, "My relationship to Adolf Hitler
and to the Party", em Nazi conspiracy, VIII, 707 ss: "Quando surgiram informações e boatos acerca de medidas
radicais do Partido e da Gestapo, era possível chegar-se à conclusão, pela conduta do Führer, de que essas medidas
não haviam sido ordenadas pelo próprio Führer. (...) Em anos subsequentes, cheguei gradualmente à conclusão de
que o próprio Führer sempre se inclinava pela solução mais radical, sem deixar que ninguém o percebesse".
Na luta intrapartidária que precedeu a subida ao poder absoluto, Stálin sempre teve o cuidado de assumir a pose do
"homem do meio-termo" (ver Deutscher, op. cit., pp. 295 ss); embora certamente não fosse nenhum "homem afeito a
acomodações", nunca abandonou inteiramente esse papel. Quando, por exemplo, um jornalista estrangeiro lhe
indagou, em 1936, acerca dos objetivos de revolução mundial do movimento comunista, ele respondeu: "Nunca
tivemos tais planos e intenções. (...) Trata-se de um mal-entendido. (...) Um mal-entendido cômico, ou, antes, tragicômico" (Deutscher, op. cit., p. 422).
[90] Ver Alexandre Koyré, "The political function of the modern lie", em Contemporary Jewish Record, junho de
1945.
Hitler, op. cit., livro II, capitulo ix, discute longamente os prós e contras das sociedades secretas como modelos para
os movimentos totalitários. Na verdade, as considerações que ele faz levam-no à conclusão de Koyré de que é preciso adotar os princípios das sociedades secretas sem o seu sigilo e instalá-las "à
plena luz do dia". No estágio anterior à tomada do poder, os nazistas nada mantinham em segredo. Foi somente durante a
guerra, quando o regime nazista se tornou inteiramente totalitarizado e a liderança do partido se viu cercada por todos os
lados pela hierarquia militar, da qual dependia para a condução da guerra, que as formações de elite receberam instruções
perfeitamente claras para manterem absolutamente secreto tudo o que dissesse respeito à "solução final", isto é, o
extermínio em massa dos judeus. Foi também por essa época que Hitler passou a agir como chefe de um bando de
conspiradores, mas não sem anunciar e divulgar pessoalmente esse fato com bastante clareza. No decorrer de uma reunião
com o Estado-Maior, em maio de 1939, Hitler estabeleceu as seguintes normas, que parecem haver sido copiadas de uma
cartilha de sociedades secretas: "1. Nenhuma informação será dada a quem não precisa saber. 2. Ninguém deve saber mais
do que precisa. 3. Ninguém deve saber antes do tempo necessário" (citadas por Heinz Holldack, Was wirklich geschah [O que
realmente aconteceu], 1949, p. 378).
[91] A análise que fazemos a seguir acompanha de perto "Sociology of secrecy and of secret societies", de Georg Simmel, em
The American Journal of Sociology, vol. XI, n? 4, janeiro de 1906, que constitui o capítulo v de sua Soziologie, Leipzig, 1908,
da qual alguns trechos foram traduzidos por Kurt Wolff, sob o título The sociology of Georg Simmel, 1950.
[92] "Exatamente pelo fato de que os graus inferiores da sociedade constituem uma transição mediatória para o verdadeiro
centro do segredo, permitem a compreensão gradual da esfera de repulsa em torno do mesmo, o que proporciona uma
proteção mais segura do que adviria da aspereza de uma posição radical, fosse de fora ou de dentro" (ibid., p. 489).
[93] As expressões "irmãos jurados", "camaradas jurados", "comunidade jurada" etc. são repetidas ad nauseam em toda a
literatura nazista, em parte devido à atração que tinham para o romantismo juvenil muito comum no movimento da
juventude alemã. Foi principalmente Himmler quem usou essas expressões com um sentido mais definido, introduzindo-as
na "senha central" da SS ("Unimo-nos assim e marchamos para um futuro distante segundo as leis imutáveis, como uma
classe nacional-socialista de homens nórdicos e comunidade jurada das suas tribos [Sippen]." Ver D'Alquen, op. cit.) e lhes
deu o expressivo significado de "absoluta hostilidade" contra todos os outros (ver Simmel, op. cit., p. 489): "Assim, quando a
massa da humanidade de 1 a 1,5 bilhão [sic!] se unir contra nós, o povo alemão (...)". Ver o discurso de Himmler na reunião
dos generais da SS em Posen (atual Poznan, Polônia), a 4 de outubro de 1943, Nazi conspiracy, IV, 558.
[94] Simmel, op. cit., p. 490. Esse princípio, como tantos outros, foi adotado pelos nazistas após cuidadoso estudo das
implicações dos "Protocolos dos sábios do Sião". Hitler dizia já em 1922: "'[Os homens da Direita] ainda não
compreenderam que não é necessário ser inimigo dos judeus para que um dia(...) acabem na forca. (...) Basta (...) não ser
judeu: com isso se vai parar na forca" (Hitler's speeches, p. 12). Na época, ninguém podia imaginar que esse tipo de
propaganda realmente significava que, um dia, não seria necessário ser um inimigo dos nazistas para ser levado à forca;
bastaria ser um judeu ou, finalmente, membro de algum outro povo, para ser declarado "racialmente inapto" à vida por
alguma Comissão de Saúde. Himmler acreditava e pregava que toda a SS se baseava no princípio de que "devemos ser
honestos, decentes, leais e amigos com os membros do nosso próprio sangue, e com ninguém mais" (op. cit., loc. cit.).
[95] Simmel, op. cit., pp. 480-1.
[96] Souvarine, op. cit., p. 319, adota uma expressão de Bukharín.
[97] Souvarine, op. cit., p. 113, menciona que Stálin "sempre se impressionava com aqueles que eram bem-sucedidos
'nos negócios'. Via a política como um 'negócio' que exigia destreza".
[98] Nas lutas intrapartidárias dos anos 20, "os colaboradores da GPU eram, quase sem exceção, fanáticos seguidores
de Stálin. Os serviços da GPU naquela época eram os baluartes da secção stalinista" (Ciliga, op. cit., p. 48).
Souvarine, op. cit., p. 289, relata que, mesmo antes, Stálin havia "continuado a ação policial que havia iniciado
durante a Guerra Civil" e havia sido representante do Politburo na GPU.
[99] Imediatamente após a guerra civil na Rússia, o Pravda afirmava que "a fórmula 'Todo o poder aos Sovietes'
havia sido substituída por 'Todo o poder à Cheka'. (...) O fim das hostilidades armadas reduziu o controle militar (...)
mas deixou uma Cheka ramificada, que se aperfeiçoava através da simplificação operacional" (Souvarine, op. cit., p.
251).
[100] A Gestapo [Geheime Staatspolizei: Polícia Secreta do Estado] foi instituída por Gõring em 1933: Himmlerfoi nomeado
chefe da Gestapo em 1934 e passou imediatamente a substituir o seu pessoal por homens da SS; no fim da guerra, 75% dos
agentes da Gestapo eram homens da SS. Deve-se considerar também que as unidades da SS eram particularmente
qualificadas para esse tipo de trabalho, uma vez que Himmler as havia organizado, mesmo na fase anterior ao poder, para
tarefas de espionagem entre membros do partido (Heiden, op. cit., p. 308). Quanto à história da Gestapo, ver Giles, op. cit., e
também Nazi conspiracy, vol. II, capítulo xii.
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