terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: Graças do sacrifício dos escravos no Caribe(6)

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas

     18. Graças do sacrifício dos escravos no Caribe nasceram a máquina de James Watt e os canhões de Washington
          Che Guevara dizia que o subdesenvolvimento é um anão de cabeça grande e pança inchada: suas pernas fracas e seus braços curtos não se harmonizam com o resto do corpo. Havana resplandecia, zumbiam os cadilaques em suas suntuárias avenidas, e no maior cabaré do mundo, ao ritmo de Lecuona, ondulavam as mais formosas vedetes; enquanto isso, nos campos cubanos apenas um em cada dez trabalhadores rurais tomava leite, apenas 4 por cento comia carne, e segundo o Conselho Nacional de Economia, três quintas partes dos trabalhadores rurais recebiam salários três ou quatro vezes inferiores ao custo de vida.
     Mas o açúcar não produziu apenas anões. Também produziu gigantes, ou pelo menos contribuiu intensamente para o crescimento deles. O açúcar do trópico latino americano deu grande impulso à acumulação de capitais para o desenvolvimento industrial da Inglaterra, França, Holanda e também Estados Unidos, ao mesmo tempo em que mutilou a economia do nordeste do Brasil e das ilhas do Caribe, e selou a ruína histórica da África. O comércio triangular entre Europa, África e América teve por viga mestra o tráfico de escravos com destino às plantações de açúcar. “A história de um grão de açúcar é toda uma lição de economia política, de política e também de moral”, dizia Augusto Cochin.
     As tribos da África ocidental viviam lutando entre si para aumentar, com os prisioneiros de guerra, suas reservas de escravos. Pertenciam aos domínios coloniais de Portugal, mas os portugueses, na época do auge do tráfico, não tinham navios nem artigos industriais para oferecer, e se tornaram meros intermediários entre os capitães negreiros de outras potências e os régulos africanos. A Inglaterra, até quando deixou de lhe convir, foi a grande campeã da compra e venda de carne humana. Os holandeses, no entanto, tinham mais tradição no negócio, pois Carlos V lhes concedera o monopólio do transporte de negros para a América, antes que a Inglaterra obtivesse o direito de introduzir escravos em colônias alheias. Quanto à França, Luis XIV, o Rei Sol, compartilhava com o rei da Espanha a metade dos lucros da Companhia da Guiné, formada em 1701 com o fim de traficar escravos para a América, e seu ministro Colbert, artífice da industrialização francesa, tinha motivos para afirmar que o tráfico negreiro era “recomendável para o progresso da marinha mercante nacional” [1].
     Adam Smith dizia que o descobrimento da América tinha “elevado o sistema mercantil a um grau de esplendor e glória que, de outro modo, ele não teria alcançado jamais”. Segundo Sergio Bagú, o mais formidável motor de acumulação de capital mercantil europeu foi a escravatura americana; esse capital, por sua vez, significou “a pedra fundamental sobre a qual foi construído o gigantesco capital industrial dos tempos contemporâneos” [2]. A ressurreição da escravatura greco-romana no Novo Mundo teve propriedades milagrosas: multiplicou navios, fábricas, ferrovias e bancos de países que não faziam parte da origem e tampouco do destino dos escravos que cruzavam o Atlântico, com exceção dos Estados Unidos. Entre os albores do século XVI e a agonia do século XIX, vários milhões de africanos – não se sabe quantos – atravessaram o oceano; sabe-se, sim, que foram muito mais numerosos do que os imigrantes brancos provenientes da Europa, embora, claro, muito menos foram os que sobreviveram. Do Potomac ao rio da Prata, os escravos construíram as casas de seus amos, derrubaram as matas, cortaram e moeram cana-de-açúcar, plantaram algodão, cultivaram cacau, colheram café e tabaco e rastrearam os leitos dos rios em busca de ouro. A quantas Hiroshimas equivalem seus sucessivos extermínios? Como dizia um plantador inglês da Jamaica, “é mais fácil comprar negros do que criá-los”. Caio Prado calcula que, até princípios do século XIX, tenham chegado ao Brasil entre 5 e 6 milhões de africanos; Cuba já era então um mercado de escravos tão grande quanto tinha sido antes todo o hemisfério ocidental [3].
     Por volta de 1562, o capitão John Hawkins arrebatou de contrabando 300 negros da Guiné portuguesa. A rainha Elizabeth ficou furiosa: “Esta aventura clama por vingança dos céus”, sentenciou. Mas Hawkins lhe contou que obtivera no Caribe, em troca dos escravos, um carregamento de açúcar e peles, pérolas e gengibre. Além de perdoar o pirata, a rainha tornou-se sua sócia comercial. Um século depois, o duque de York imprimia com ferro em brasa suas iniciais, DY, na nádega ou no peito dos três mil negros que anualmente sua empresa conduzia para as “ilhas do açúcar”. A Real Companhia Africana, entre cujos acionistas figurava o rei Carlos II, dava 300 por cento de dividendos, ainda que, dos 70 mil escravos que embarcou entre 1680 e 1688, apenas 46 mil tivessem sobrevivido à travessia. Durante a viagem, inúmeros africanos morriam, vítimas de epidemias ou de desnutrição, ou se suicidavam negando-se a comer, enforcando-se em suas correntes ou lançando-se no oceano eriçado de barbatanas de tubarões. Lentamente, mas com firmeza, a Inglaterra ia quebrando a hegemonia holandesa no tráfico de escravos. A South Sea Company foi a principal usufrutuária dos privilégios concedidos pela Espanha aos ingleses, e nela estiveram envolvidos os mais proeminentes personagens da política e das finanças britânicas; o negócio, brilhante como nenhum outro, enlouqueceu a bolsa de valores de Londres e desencadeou uma frenética especulação.
     O transporte de escravos elevou Bristol, sede de estaleiros, à condição de segunda cidade da Inglaterra, e tornou Liverpool o maior porto do mundo. Partiam os navios com os porões carregados de armas, tecidos, gim, rum, quinquilharias e vidros coloridos, que se constituiriam no meio de pagamento da mercadoria humana na África, e esta serviria para pagar o açúcar, o algodão, o café e o cacau das plantações coloniais da América. Os ingleses impunham seu reinado nos mares. Em fins do século XVIII, a África e o Caribe davam trabalho a 180 mil operários têxteis em Manchester; de Scheffield provinham as facas, e de Birmingham 150 mil mosquetões por ano [4]. Os caciques africanos recebiam as mercadorias da indústria britânica e entregavam os carregamentos de escravos aos capitães negreiros. Dispunham assim de novas armas e abundante aguardente para empreender as próximas caçadas nas aldeias. Também proporcionavam marfins, ceras e azeite de palmeira. Muitos escravos provinham da selva e nunca tinham visto o mar; confundiam os rugidos do oceano com os de alguma fera submersa que os espreitava para devorá-los, ou acreditavam, segundo testemunho de um traficante da época – e de certo modo não se enganavam –, que “iam ser levados como carneiros para o matadouro, sendo sua carne muito apreciada pelos europeus” [5]. De quase nada valiam os látegos de sete tiras de couro para conter o desespero suicida dos africanos.
     Os “fardos” que sobreviviam à fome, às enfermidades e ao amontoamento da travessia eram exibidos em andrajos, pura pele e ossos, em praça pública, depois de desfilar pelas ruas coloniais ao som de gaitas. Os que chegavam ao Caribe demasiadamente fracos eram internados em depósitos para engordar antes da exposição aos olhos dos compradores; os enfermos eram deixados no cais para morrer. Os escravos eram vendidos a dinheiro vivo ou por meio de promissórias com três anos de prazo. Os navios partiam de regresso a Liverpool levando diversos produtos tropicais: no início do século XVIII, três quartas partes do algodão fiado pela indústria têxtil inglesa provinha das Antilhas, embora a Georgia e a Louisiana logo se tornassem suas principais fontes; em meados do século, havia 120 refinarias de açúcar na Inglaterra.
     Um inglês, naquela época, podia viver com seis libras ao ano; os mercadores de escravos de Liverpool auferiam lucros anuais de mais de 1.100 libras, contando exclusivamente com dinheiro obtido no Caribe e sem somar os ganhos do comércio adicional. Dez grandes empresas controlavam dois terços do tráfico. Liverpool inaugurou um novo sistema de molhes; cada vez mais navios eram construídos, maiores e com maior calado. Os ourives ofereciam “cadeados e coleiras de prata para negros e cachorros”, as damas elegantes se pavoneavam em público acompanhadas de um macaco vestido de gibão bordado e de um menino escravo com turbante e bombachas de seda. Um economista, na época, descrevia o tráfico de escravos como “o princípio básico e fundamental de todo o resto; como o principal acionamento da máquina que põe em movimento cada roda de engrenagem”. Propagavam-se os bancos em Liverpool, Manchester, Bristol, Londres e Glasgow; a empresa de seguros Lloyd’s acumulava lucros segurando escravos, navios e plantações. Desde muito cedo os anúncios da London Gazette indicavam que os escravos fugidos deviam ser devolvidos à Lloyd’s. Com fundos do comércio negreiro foi construída a grande ferrovia do oeste e nasceram novas fábricas em Gales. O capital acumulado no comércio triangular – manufaturas, escravos, açúcar tornou possível a invenção da máquina a vapor. James Watt foi subvencionado por mercadores que assim fizeram sua fortuna, Eric Williams o afirma em sua documentada obra sobre o tema.
     No princípio do século XIX, a Grã-Bretanha se tornou a principal incentivadora da campanha antiescravagista. A indústria inglesa já necessitava de mercados internacionais com maior poder aquisitivo, o que obrigava à propagação do regime de salários. De resto, ao estabelecer-se o salário nas colônias inglesas do Caribe, o açúcar brasileiro, produzido com mão de obra escrava, recuperava vantagens por seus baixos custos comparativos [6]. A armada britânica lançava-se ao assalto dos navios negreiros, mas o tráfico continuava crescendo para abastecer Cuba e Brasil. Antes que os botes ingleses chegassem aos navios piratas, os escravos eram lançados ao mar: a bordo, os ingleses só encontravam o cheiro, as caldeiras quentes e um capitão sorridente na coberta. A repressão ao tráfico elevou os preços e aumentou enormemente os lucros. Em meados do século, os traficantes davam um fuzil velho por cada escravo vigoroso que tiravam da África, para logo vendê-lo em Cuba por 600 dólares.
     As pequenas ilhas do Caribe foram infinitamente mais importantes para a Inglaterra do que suas colônias no norte. Barbados, Jamaica e Montserrat eram proibidos de fabricar uma agulha ou uma ferradura por conta própria. Muito diferente era a situação da Nova Inglaterra, e isto facilitou seu desenvolvimento econômico e também sua independência política.
     O tráfico de negros para a Nova Inglaterra, por certo, originou grande parte do capital que facilitou a revolução industrial nos Estados Unidos da América. Em meados do século XVIII, os navios negreiros do norte carregavam barris de rum em Boston, Newport e Providence e os levavam às costas da África, onde os trocavam por escravos; vendiam os escravos no Caribe e ali carregavam melaço para Massachusetts, onde era destilado e convertido em rum, para fechar o ciclo. O melhor rum das Antilhas, o West Indian Rum, não era fabricado nas Antilhas. Com capitais obtidos no tráfico de escravos, os irmãos Brown, de Providence, instalaram um forno de fundição que abasteceu de canhões o general George Washington na guerra da independência [7]. As plantações açucareiras do Caribe, condenadas como estavam à monocultura da cana, não só podem ser consideradas o centro dinâmico do desenvolvimento das “treze colônias”, pelo alento que o tráfico de negros deu à indústria naval e às destilarias da Nova Inglaterra; elas também se constituíram no grande mercado para o desenvolvimento das exportações de víveres, madeiras e implementos diversos destinados aos engenhos, com o qual davam viabilidade econômica à economia granjeira e precocemente manufatureira do Atlântico norte. Os navios fabricados nos estaleiros dos colonos do norte levavam para o Caribe, em grande escala, peixes defumados, aveia, grãos, feijões, farinha, manteiga, queijo, cebolas, cavalos e bois, velas e sabões, tecidos, tábuas de pinho, carvalho e cedro para as caixas de açúcar (Cuba contou com a primeira serra a vapor que chegou à América hispânica, mas não tinha madeira para cortar), aduelas, arcos, aros, argolas e pregos.
     Assim se transfundia o sangue por todos esses processos. Desenvolviam-se os países desenvolvidos de nossos dias e se subdesenvolviam os subdesenvolvidos.

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
Primeira Parte: Graças do sacrifício dos escravos no Caribe(6)
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[1] CAPITÁN, L. & LORIN, Henri. El trabajo en América, antes y después de Colón. Buenos Aires, 1948.
[2]  AGÚ, op. cit.
[3] MANNIX, Daniel P. & COWLEY, M. Historia de la trata de negros. Madrid, 1962.
[4] WILLIAMS, Eric. Capitalism and Slavery. Chapel Hill, North Carolina, 1944.
[5] MANNIX & COULEY, op. cit.
[6] A primeira lei que proibiu expressamente a escravatura no Brasil não foi brasileira. Foi, e não por acaso, inglesa. O parlamento britânico a votou em 8 de agosto de 1845. PEREIRA, Osny Duarte. Quem faz as leis no Brasil? Rio de Janeiro, 1963.
[7] MANNIX & COWLEY, op. cit

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