PRIMEIRA PARTE
O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
18. Graças do sacrifício dos escravos no Caribe nasceram a máquina de James Watt e os canhões de Washington
Che Guevara dizia que o subdesenvolvimento é um anão de
cabeça grande e pança inchada: suas pernas fracas e seus
braços curtos não se harmonizam com o resto do corpo.
Havana resplandecia, zumbiam os cadilaques em suas
suntuárias avenidas, e no maior cabaré do mundo, ao ritmo
de Lecuona, ondulavam as mais formosas vedetes;
enquanto isso, nos campos cubanos apenas um em cada
dez trabalhadores rurais tomava leite, apenas 4 por cento
comia carne, e segundo o Conselho Nacional de Economia,
três quintas partes dos trabalhadores rurais recebiam
salários três ou quatro vezes inferiores ao custo de vida.
Mas o açúcar não produziu apenas anões. Também
produziu gigantes, ou pelo menos contribuiu intensamente
para o crescimento deles. O açúcar do trópico latino
americano deu grande impulso à acumulação de capitais
para o desenvolvimento industrial da Inglaterra, França,
Holanda e também Estados Unidos, ao mesmo tempo em
que mutilou a economia do nordeste do Brasil e das ilhas do
Caribe, e selou a ruína histórica da África. O comércio
triangular entre Europa, África e América teve por viga
mestra o tráfico de escravos com destino às plantações de
açúcar. “A história de um grão de açúcar é toda uma lição
de economia política, de política e também de moral”, dizia
Augusto Cochin.
As tribos da África ocidental viviam lutando entre si para
aumentar, com os prisioneiros de guerra, suas reservas de
escravos. Pertenciam aos domínios coloniais de Portugal,
mas os portugueses, na época do auge do tráfico, não
tinham navios nem artigos industriais para oferecer, e se
tornaram meros intermediários entre os capitães negreiros
de outras potências e os régulos africanos. A Inglaterra, até
quando deixou de lhe convir, foi a grande campeã da
compra e venda de carne humana. Os holandeses, no
entanto, tinham mais tradição no negócio, pois Carlos V lhes
concedera o monopólio do transporte de negros para a
América, antes que a Inglaterra obtivesse o direito de
introduzir escravos em colônias alheias. Quanto à França,
Luis XIV, o Rei Sol, compartilhava com o rei da Espanha a
metade dos lucros da Companhia da Guiné, formada em
1701 com o fim de traficar escravos para a América, e seu
ministro Colbert, artífice da industrialização francesa, tinha
motivos para afirmar que o tráfico negreiro era
“recomendável para o progresso da marinha mercante
nacional”
[1].
Adam Smith dizia que o descobrimento da América
tinha “elevado o sistema mercantil a um grau de esplendor
e glória que, de outro modo, ele não teria alcançado
jamais”. Segundo Sergio Bagú, o mais formidável motor de
acumulação de capital mercantil europeu foi a escravatura
americana; esse capital, por sua vez, significou “a pedra
fundamental sobre a qual foi construído o gigantesco capital
industrial dos tempos contemporâneos”
[2]. A ressurreição
da escravatura greco-romana no Novo Mundo teve
propriedades milagrosas: multiplicou navios, fábricas,
ferrovias e bancos de países que não faziam parte da
origem e tampouco do destino dos escravos que cruzavam
o Atlântico, com exceção dos Estados Unidos. Entre os
albores do século XVI e a agonia do século XIX, vários
milhões de africanos – não se sabe quantos – atravessaram
o oceano; sabe-se, sim, que foram muito mais numerosos
do que os imigrantes brancos provenientes da Europa,
embora, claro, muito menos foram os que sobreviveram. Do
Potomac ao rio da Prata, os escravos construíram as casas
de seus amos, derrubaram as matas, cortaram e moeram
cana-de-açúcar, plantaram algodão, cultivaram cacau,
colheram café e tabaco e rastrearam os leitos dos rios em
busca de ouro. A quantas Hiroshimas equivalem seus
sucessivos extermínios? Como dizia um plantador inglês da
Jamaica, “é mais fácil comprar negros do que criá-los”. Caio
Prado calcula que, até princípios do século XIX, tenham
chegado ao Brasil entre 5 e 6 milhões de africanos; Cuba já
era então um mercado de escravos tão grande quanto tinha
sido antes todo o hemisfério ocidental
[3].
Por volta de 1562, o capitão John Hawkins arrebatou de
contrabando 300 negros da Guiné portuguesa. A rainha
Elizabeth ficou furiosa: “Esta aventura clama por vingança
dos céus”, sentenciou. Mas Hawkins lhe contou que obtivera
no Caribe, em troca dos escravos, um carregamento de
açúcar e peles, pérolas e gengibre. Além de perdoar o
pirata, a rainha tornou-se sua sócia comercial. Um século
depois, o duque de York imprimia com ferro em brasa suas
iniciais, DY, na nádega ou no peito dos três mil negros que
anualmente sua empresa conduzia para as “ilhas do
açúcar”. A Real Companhia Africana, entre cujos acionistas
figurava o rei Carlos II, dava 300 por cento de dividendos,
ainda que, dos 70 mil escravos que embarcou entre 1680 e
1688, apenas 46 mil tivessem sobrevivido à travessia.
Durante a viagem, inúmeros africanos morriam, vítimas de
epidemias ou de desnutrição, ou se suicidavam negando-se
a comer, enforcando-se em suas correntes ou lançando-se
no oceano eriçado de barbatanas de tubarões. Lentamente,
mas com firmeza, a Inglaterra ia quebrando a hegemonia
holandesa no tráfico de escravos. A South Sea Company foi
a principal usufrutuária dos privilégios concedidos pela
Espanha aos ingleses, e nela estiveram envolvidos os mais
proeminentes personagens da política e das finanças
britânicas; o negócio, brilhante como nenhum outro,
enlouqueceu a bolsa de valores de Londres e desencadeou
uma frenética especulação.
O transporte de escravos elevou Bristol, sede de
estaleiros, à condição de segunda cidade da Inglaterra, e
tornou Liverpool o maior porto do mundo. Partiam os navios
com os porões carregados de armas, tecidos, gim, rum,
quinquilharias e vidros coloridos, que se constituiriam no
meio de pagamento da mercadoria humana na África, e esta
serviria para pagar o açúcar, o algodão, o café e o cacau
das plantações coloniais da América. Os ingleses impunham
seu reinado nos mares. Em fins do século XVIII, a África e o
Caribe davam trabalho a 180 mil operários têxteis em
Manchester; de Scheffield provinham as facas, e de Birmingham 150 mil mosquetões por ano
[4]. Os caciques
africanos recebiam as mercadorias da indústria britânica e
entregavam os carregamentos de escravos aos capitães
negreiros. Dispunham assim de novas armas e abundante
aguardente para empreender as próximas caçadas nas
aldeias. Também proporcionavam marfins, ceras e azeite de
palmeira. Muitos escravos provinham da selva e nunca
tinham visto o mar; confundiam os rugidos do oceano com
os de alguma fera submersa que os espreitava para devorá-los, ou acreditavam, segundo testemunho de um traficante
da época – e de certo modo não se enganavam –, que “iam
ser levados como carneiros para o matadouro, sendo sua
carne muito apreciada pelos europeus”
[5]. De quase nada
valiam os látegos de sete tiras de couro para conter o
desespero suicida dos africanos.
Os “fardos” que sobreviviam à fome, às enfermidades e
ao amontoamento da travessia eram exibidos em andrajos,
pura pele e ossos, em praça pública, depois de desfilar
pelas ruas coloniais ao som de gaitas. Os que chegavam ao
Caribe demasiadamente fracos eram internados em
depósitos para engordar antes da exposição aos olhos dos
compradores; os enfermos eram deixados no cais para
morrer. Os escravos eram vendidos a dinheiro vivo ou por
meio de promissórias com três anos de prazo. Os navios
partiam de regresso a Liverpool levando diversos produtos
tropicais: no início do século XVIII, três quartas partes do
algodão fiado pela indústria têxtil inglesa provinha das
Antilhas, embora a Georgia e a Louisiana logo se tornassem
suas principais fontes; em meados do século, havia 120
refinarias de açúcar na Inglaterra.
Um inglês, naquela época, podia viver com seis libras
ao ano; os mercadores de escravos de Liverpool auferiam
lucros anuais de mais de 1.100 libras, contando
exclusivamente com dinheiro obtido no Caribe e sem somar
os ganhos do comércio adicional. Dez grandes empresas
controlavam dois terços do tráfico. Liverpool inaugurou um
novo sistema de molhes; cada vez mais navios eram
construídos, maiores e com maior calado. Os ourives
ofereciam “cadeados e coleiras de prata para negros e
cachorros”, as damas elegantes se pavoneavam em público
acompanhadas de um macaco vestido de gibão bordado e
de um menino escravo com turbante e bombachas de seda.
Um economista, na época, descrevia o tráfico de escravos
como “o princípio básico e fundamental de todo o resto;
como o principal acionamento da máquina que põe em
movimento cada roda de engrenagem”. Propagavam-se os
bancos em Liverpool, Manchester, Bristol, Londres e
Glasgow; a empresa de seguros Lloyd’s acumulava lucros
segurando escravos, navios e plantações. Desde muito cedo
os anúncios da London Gazette indicavam que os escravos
fugidos deviam ser devolvidos à Lloyd’s. Com fundos do
comércio negreiro foi construída a grande ferrovia do oeste
e nasceram novas fábricas em Gales. O capital acumulado
no comércio triangular – manufaturas, escravos, açúcar
tornou possível a invenção da máquina a vapor. James Watt
foi subvencionado por mercadores que assim fizeram sua
fortuna, Eric Williams o afirma em sua documentada obra
sobre o tema.
No princípio do século XIX, a Grã-Bretanha se tornou a
principal incentivadora da campanha antiescravagista. A
indústria inglesa já necessitava de mercados internacionais
com maior poder aquisitivo, o que obrigava à propagação
do regime de salários. De resto, ao estabelecer-se o salário
nas colônias inglesas do Caribe, o açúcar brasileiro,
produzido com mão de obra escrava, recuperava vantagens
por seus baixos custos comparativos
[6]. A armada britânica
lançava-se ao assalto dos navios negreiros, mas o tráfico
continuava crescendo para abastecer Cuba e Brasil. Antes
que os botes ingleses chegassem aos navios piratas, os
escravos eram lançados ao mar: a bordo, os ingleses só
encontravam o cheiro, as caldeiras quentes e um capitão
sorridente na coberta. A repressão ao tráfico elevou os
preços e aumentou enormemente os lucros. Em meados do
século, os traficantes davam um fuzil velho por cada
escravo vigoroso que tiravam da África, para logo vendê-lo
em Cuba por 600 dólares. As pequenas ilhas do Caribe foram infinitamente mais
importantes para a Inglaterra do que suas colônias no norte. Barbados, Jamaica e Montserrat eram proibidos de fabricar
uma agulha ou uma ferradura por conta própria. Muito
diferente era a situação da Nova Inglaterra, e isto facilitou
seu
desenvolvimento
econômico
e
também sua
independência política.
O tráfico de negros para a Nova Inglaterra, por certo,
originou grande parte do capital que facilitou a revolução
industrial nos Estados Unidos da América. Em meados do
século XVIII, os navios negreiros do norte carregavam barris
de rum em Boston, Newport e Providence e os levavam às
costas da África, onde os trocavam por escravos; vendiam
os escravos no Caribe e ali carregavam melaço para
Massachusetts, onde era destilado e convertido em rum,
para fechar o ciclo. O melhor rum das Antilhas, o West
Indian Rum, não era fabricado nas Antilhas. Com capitais
obtidos no tráfico de escravos, os irmãos Brown, de
Providence, instalaram um forno de fundição que abasteceu
de canhões o general George Washington na guerra da
independência
[7]. As plantações açucareiras do Caribe,
condenadas como estavam à monocultura da cana, não só
podem ser consideradas o centro dinâmico do
desenvolvimento das “treze colônias”, pelo alento que o
tráfico de negros deu à indústria naval e às destilarias da
Nova Inglaterra; elas também se constituíram no grande
mercado para o desenvolvimento das exportações de
víveres, madeiras e implementos diversos destinados aos
engenhos, com o qual davam viabilidade econômica à
economia granjeira e precocemente manufatureira do
Atlântico norte. Os navios fabricados nos estaleiros dos
colonos do norte levavam para o Caribe, em grande escala,
peixes defumados, aveia, grãos, feijões, farinha, manteiga,
queijo, cebolas, cavalos e bois, velas e sabões, tecidos,
tábuas de pinho, carvalho e cedro para as caixas de açúcar
(Cuba contou com a primeira serra a vapor que chegou à
América hispânica, mas não tinha madeira para cortar),
aduelas, arcos, aros, argolas e pregos.
Assim se transfundia o sangue por todos esses
processos. Desenvolviam-se os países desenvolvidos de
nossos dias e se subdesenvolviam os subdesenvolvidos.
continua na página 136...
____________________
____________________
Febre do Ouro, Febre da Prata
O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
Primeira Parte: Graças do sacrifício dos escravos no Caribe(6)
__________________
[1] CAPITÁN, L. & LORIN, Henri. El trabajo en América, antes y después de
Colón. Buenos Aires, 1948.
[2] AGÚ, op. cit.
[3] MANNIX, Daniel P. & COWLEY, M. Historia de la trata de negros. Madrid,
1962.
[4] WILLIAMS, Eric. Capitalism and Slavery. Chapel Hill, North Carolina, 1944.
[5] MANNIX & COULEY, op. cit.
[6] A primeira lei que proibiu expressamente a escravatura no Brasil não foi
brasileira. Foi, e não por acaso, inglesa. O parlamento britânico a votou em 8 de
agosto de 1845. PEREIRA, Osny Duarte. Quem faz as leis no Brasil? Rio de
Janeiro, 1963.
[7] MANNIX & COWLEY, op. cit.
Nenhum comentário:
Postar um comentário