David Hume
Seção X
DOS MILAGRES[1]
PRIMEIRA PARTE
.
Nada é tão convincente como um argumento decisivo deste gênero que, pelo menos,
deve reduzir ao silêncio o fanatismo e a superstição mais arrogantes e livrar-nos de suas
impertinentes solicitações. Congratulo-me por ter descoberto um argumento de natureza
análoga que, se é legítimo, servirá de obstáculo eterno, junto aos sábios e doutos, a toda
espécie de ilusão supersticiosa e, por conseguinte, será de utilidade enquanto existir o mundo.
Porque presumo que em todos os tempos da história sagrada e profana[3] encontrar-se-ão
relatos de prodígios e de milagres.
Embora a experiência seja o nosso único guia no raciocínio sobre as questões de fato,
deve-se reconhecer que este guia não é totalmente infalível e que, em alguns casos, pode
conduzir-nos a erros. Uma pessoa que esperasse em nosso clima melhor tempo durante uma
semana de junho do que uma de dezembro, raciocinaria corretamente de acordo com a
experiência; todavia é também verdade que ela pode ver-se equivocada acerca do evento. E,
não obstante, podemos observar que, em tal caso, não teria nenhum motivo para queixar-se
da experiência, visto que ela nos informa, comumente e por antecipação, da incerteza,
mediante a oposição de eventos que poderíamos apreender através de uma observação
diligente. Todos os efeitos não resultam com a mesma segurança das supostas causas. Alguns
eventos se encontram em todos os países e em todas as épocas em conjunção constante;
outros, contudo, têm sido mais variáveis e às vezes têm decepcionado nossas expectativas; de
modo que, em nossos raciocínios acerca das questões de fato, há todos os graus imagináveis
de certeza, desde a mais alta certeza até as formas mais inferiores da certeza moral.
Um homem sábio,[4] portanto, torna sua crença proporcional à evidência. Nas conclusões
que se baseiam numa experiência infalível, espera o evento com o máximo grau de segurança
e considera a experiência passada uma prova completa da existência futura deste evento. Em
outros casos, procede com mais precaução; pesa as experiências contrárias; considera qual
dos lados está apoiado por maior número de experiências; é para este lado que se inclina, com
dúvida e hesitação; e quando finalmente estabelece seu juízo a evidência não ultrapassa o que
denominamos propriamente de probabilidade. Toda probabilidade, portanto, supõe uma
oposição de experiências e de observações, na qual um dos lados sobrepuja o outro e produz
um grau de evidência proporcional à superioridade. Cem casos ou experiências de um lado e
cinquenta do outro fornecem uma expectativa duvidosa de qualquer evento; contudo, cem
experiências uniformes, com apenas uma que é contraditória, engendram racionalmente um
grau bastante alto de segurança. Em todos os casos, devemos contrabalançar as experiências
opostas, se são opostas, e subtrair os números menores dos maiores a fim de conhecer a força
exata da evidência superior.
Aplicando estes princípios a um caso particular, constatamos que não há espécie de
raciocínio mais comum, mais útil e mesmo mais necessário à vida humana que o derivado do
depoimento humano, dos relatos das testemunhas oculares e dos expectadores. Negar-se-ia,
talvez, que esta espécie de raciocínio se funda na relação de causa e efeito. Não discutirei
sobre a terminologia. Será suficiente notar, contudo, que nossa segurança em qualquer
argumento deste gênero não deriva de outro princípio senão da constatação da veracidade do
testemunho humano e da conformidade usual dos fatos com os relatos das testemunhas.
Como um princípio geral diz que em nenhum objeto se pode descobrir uma conexão, e que
todas as inferências que podemos tirar de um para o outro se baseiam unicamente em nossa
experiência de sua conjunção constante e regular, é evidente que não devemos fazer uma
exceção deste princípio em favor do testemunho humano, cuja conexão com qualquer evento
em si mesmo parece mui pouco necessária como qualquer outra.[5] Se a memória não fosse até
certo grau tenaz, se os homens não tivessem geralmente inclinação para a verdade e princípio
de probidade, se não fossem sensíveis à vergonha quando se descobrem suas mentiras; se a
experiência, digo eu, não revelasse que essas qualidades são inerentes à natureza humana,
não depositaríamos jamais a menor confiança no testemunho humano. Um homem que delira
ou que é conhecido por sua falsidade e sua vilania não tem nenhuma espécie de autoridade
para nós.
Como o depoimento que deriva das testemunhas e do testemunho humano se funda
sobre a experiência passada, varia com a experiência e se considera ou uma prova ou uma
probabilidade, conforme se tem verificado constante ou variável a conjunção entre um
gênero particular do relato e um gênero do objeto. Devem-se, portanto, levar em consideração
numerosas circunstâncias em todos os julgamentos deste gênero; e a última regra que nos
permite decidir em todas as discussões que podem nascer a respeito deste tema deriva sempre
da experiência e da observação. Se esta experiência não é inteiramente uniforme em um dos
dois lados, gerará uma inevitável contradição em nossos juízos, cujos argumentos apresentam
a mesma oposição e destruição mútua como em qualquer outro gênero de evidência.
Frequentemente duvidamos dos relatos de outrem. Contrabalançamos as circunstâncias
opostas originárias de alguma dúvida ou incerteza; e quando descobrimos uma superioridade
a favor de um lado, inclinamo-nos para ele, porém com segurança diminuída em proporção à
força de seu antagonista.[6]
Esta contradição da evidência no caso presente pode derivar de diferentes causas: da
oposição de testemunhos contrários, do caráter ou do número de testemunhas, da maneira
como eles produzem seus testemunhos, ou da união de todas essas circunstâncias.
Suspeitamos de uma questão de fato quando as testemunhas se contradizem entre si, quando
são poucas e de caráter duvidoso, quando têm algum interesse pessoal naquilo que afirmam,
quando enunciam seu testemunho com hesitação ou, pelo contrário, com afirmações mui
violentas. Há muitos outros aspectos do mesmo gênero que podem diminuir ou destruir a
força de qualquer argumento derivado do testemunho humano.
Suponha, por exemplo, que o fato que o testemunho tenta estabelecer tem de algo
extraordinário e de maravilhoso; neste caso, a evidência que resulta do testemunho admite
uma diminuição maior ou menor em proporção ao fato que é mais ou menos invulgar. A
razão que nos leva a dar algum crédito às testemunhas e aos historiadores não deriva de
nenhuma conexão que percebemos a priori entre o testemunho e a realidade, mas do fato de
estarmos acostumados a encontrar uma conformidade entre eles. Contudo, quando o fato
testificado é tal que raramente caiu sob nossa observação, produz-se então um conflito entre
duas experiências opostas, em que uma destrói a outra em proporção de sua força, e a
experiência superior apenas pode agir sobre o espírito com a força que lhe resta. E
precisamente este mesmo princípio da experiência que nos fornece certo grau de segurança
sobre o depoimento das testemunhas, e que nos dá também, neste caso, outro grau de
segurança contra o fato que tentam estabelecer; e desta contradição surge necessariamente um
contrapeso e uma destruição recíproca da crença e da autoridade.
Não acreditaria numa tal história mesmo se Catão ma contasse, era um dito proverbial
em Roma, inclusive durante a vida deste filósofo patriota.[7] Admitia-se, pois, que a
incredibilidade de um fato poderia invalidar tão grande autoridade.
O príncipe hindu que inicialmente se recusou a acreditar nos relatos sobre os efeitos da
escarcha raciocinou corretamente, pois, como é natural, necessitar-se-ão testemunhos
poderosos para lograr seu assentimento acerca de fatos que surgiram de um estado da
natureza, com os quais ele não estava familiarizado, e que tinham tão pouca analogia com os
eventos dos quais tinha tido uma experiência constante e uniforme. Embora estes fatos não
fossem contrários à sua experiência, tampouco estavam de acordo com ela.[8]
Mas, para aumentar a probabilidade contra o depoimento das testemunhas, suponhamos
que o fato que afirmam, em vez de ser apenas maravilhoso, é realmente miraculoso, e
suponhamos também que o depoimento considerado à parte e em si mesmo equivale a uma
prova completa; neste caso, temos prova contra prova, e a mais forte delas deve prevalecer,
mas com uma diminuição de sua força em proporção à de sua antagonista.
Um milagre é uma violação das leis da natureza; e como uma experiência constante e
inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, devido à própria natureza do fato,
é tão completa como qualquer argumento da natureza que se possa imaginar. Por que é mais
do que provável que todos os homens devem morrer; que o chumbo não pode por si mesmo
permanecer suspenso no ar; que o fogo consome a madeira e que, por sua vez, a água o
extingue; a não ser que estes eventos estão de acordo com as leis da natureza, e que é preciso
uma violação destas leis, ou em outras palavras, um milagre, para impedi-los? Nada é
considerado um milagre se ocorre no curso normal da natureza. Não é um milagre que um
homem, aparentemente de boa saúde, morra subitamente, pois verifica-se que tal gênero de
morte, embora mais incomum que qualquer outro, ocorre frequentemente. Mas é um milagre
que um morto possa ressuscitar, porque isto nunca foi observado em nenhuma época e em
nenhum país. Portanto, deve haver uma experiência uniforme contra todo evento miraculoso,
senão o evento não mereceria esta denominação. E, como uma experiência uniforme equivale
a uma prova, há aqui uma prova direta e completa, tirada da natureza fática contra a
existência de um milagre; uma tal prova não pode ser destruída nem o milagre fazer-se crível senão por meio de uma prova oposta que lhe seja superior.[9]
A consequência clara — e é uma máxima geral digna de nossa atenção — é que não há
testemunho suficiente para fundamentar um milagre, a menos que o testemunho seja tal que
sua falsidade seria ainda mais miraculosa que o fato que pretende estabelecer; e mesmo neste
caso há mútua destruição de argumentos, e o argumento mais forte nos dá apenas uma
segurança proporcional ao grau da força depois da dedução da força inferior. Quando alguém
me diz que viu um morto ressuscitar, considero imediatamente comigo mesmo: é mais
provável que essa pessoa procure enganar-me ou esteja equivocada, do que o fato que relata
possa realmente ter ocorrido. Peso um milagre contra o outro e, de acordo com a
superioridade que descubro, pronuncio minha decisão e rejeito sempre o milagre maior. Se a
falsidade de seu testemunho fosse ainda mais miraculosa que o evento que relata, agora e
somente agora, pode pretender orientar minha crença e minha opinião.
continua página 74...
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Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X(1)
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Notas:
[1] Da interessante entrevista que Hume concedeu a James Boswell, em 7 de julho de
1776, é conhecida a célebre passagem do primeiro: “nunca mais nutri qualquer crença pela
Religião desde que comecei a ler Locke e Clarke” (Boswell, “An Account ol my last
interview with David Rume”, cit. por N. K. Smith, Dialogues Concerning Natural Religion,
de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 76). Hume pretende, talvez, mostrar sua intenção de criticar a
base racional da teologia natural, defendida tanto por Locke e Clarke como por outros
metafísicos do século XVIII, e aceita quase universalmente pelos pensadores da Ilustração.
De modo geral, podemos dizer que os argumentos da teologia natural abrangem dois
momentos: a) com base no “argumento do desígnio” (seção XI), a teologia natural defende a
tese de que tanto a existência como todos os atributos de Deus podem ser conhecidos pela
razão natural e b) esta visão da religião da natureza pode ser suplementada pela revelação,
cuja validade é garantida pela ocorrência de milagres, que, por seu turno, são apoiados por
abundante evidência histórica (seção X). As seções X e XI constituem, de acordo com
Stephen, partes de um único argumento, que julgamos ter sido elaborado por Hume para
mostrar a inviabilidade dos momentos (a e b) da teologia natural. (Stephen, L. English
Thought ín the Eighteenth Century Londres, 1902, vol. I, p. 310). [N. do T.]
[2] John Tillotson (1630-1694), influente teólogo e arcebispo de Canterbury a partir de
1691, apresenta o argumento que Hume sumariza, no Discourse against Transubstantion,
publicado em 1684, da seguinte maneira: “Todo homem tem tão grande evidência de que a
transubstanciação é falsa como tem de que a religião cristã é verdadeira. Suponde que a
transubstanciação fizesse parte da doutrina cristã, deveria então ter a mesma confirmação
com o todo, isto é, milagres. Mas, dentre todas as doutrinas do mundo, ela é peculiarmente
incapaz de ser provada por um milagre. Pois, se um milagre fosse elaborado para prová-la, a
própria segurança que leva alguém a aceitar a verdade do milagre o leva a considerar a
falsidade da doutrina, isto é, através da clara evidência dos sentidos. Para que um milagre
possa provar que o que ele vê no sacramento não é o pão, mas o corpo de Cristo, ele tem
apenas o testemunho do sentido; e este mesmo testemunho aparece para provar que o que ele
vê no sacramento não é o corpo de Cristo, mas o pão”. (Tillotson, vol. II, p. 448; citado por
Flew, ob. cit., p. 172). [N. do T.]
[3] Nas edições K e L lê-se: “em toda história profana”.
[4] O “argumento” constituirá poderosa bacreira, se utilizado pelos “sábios e doutos”,
contra todo tipo de narrativas sobre fenômenos sobrenaturais. Aludindo de modo explícito
aos “sábios e doutos”, Hume está implicitamente colocando seu argumento fora do alcance
do homem comum. É que o último considera qualquer uniformidade da natureza, embora
temporal e acidental, como válida, já que sua principal caracteristica é a credulidade:
“nenhuma fraqueza da natureza humana — escreve Hume — é mais notável e mais universal
do que a que denominamos credulidade” (Tratado, I, iii, p. 112). O sábio, pelo contrário, tem
plena consciência de que apenas as seqüencias invariáveis podem ser encaradas como causais
e como os fundamentos da crença; por esse motivo ele inicia suas buscas com certa dosagem
de ceticismo. Daí que, 1) o sábio admite que sua expectativa acerca de eventos futuros será
inteiramente comprovada, apenas quando baseada em “experiência infalível”, e 2) nas
situações em que perdura certo grau de probabilidade, isto é, a expectativa é confirmada por
alguma, mas não por toda evidência experimental, o sábio deve contrabalançar as
experiências opostas e tender para a que se mostrar favorecida por maior número de
“experimentos e observações”. [N. do T.]
[5] Nas edições de K a M lê-se: A imaginação humana não acompanha naturalmente sua
memória.
[6] A estrutura metodológica exposta resumidamente na nota 69, desta seção, é
transferida por Hume para estudar o “raciocínio” baseado no depoimento do ‘testemunho
Humano”: núcleo transmissor de todos os eventos cotidianos, históricos, maravilhosos e
milagrosos. [N. do T.]
[7] Plutarco em Vita Catonis (Hume).
[8] Certamente, nenhum hindu poderia ter experiência do congelamento da água em
climas frios, visto que a natureza se apresenta de maneira inteiramente desconhecida para ele,
é-lhe, portanto, impossível afirmar a priori o que resultará do fenômeno. É preciso fazer um
novo experimento, embora sua consequência seja sempre incerta. As vezes pode-se
conjeturar mediante analogia o que ocorrerá; porém, trata-se ainda de mera conjetura. Deve
se admitir que, no presente exemplo de congelação, o evento se produz contrariamente às
regras da analogia, de tal modo que um hindu não poderia esperá-lo. A ação do frio sobre a
água não se processa gradativamente segundo os diferentes graus de frio; ao contrário,
quando a água atinge o ponto de congelação, passa num instante do estado líquido para o
sólido. Tal fenômeno pode, todavia, denominar-se extraordinário, e se requer forte
testemunho para fazê-lo crível aos povos de clima quente. Apesar disso, não é considerado
miraculoso e nem contrário à experiência uniforme do curso da natureza em que todas as
circunstâncias são idênticas. Os habitantes de Sumatra sempre têm observado o fluir das
águas em seu próprio clima e consideram o congelamento de seus rios como algo prodigioso.
Porquanto jamais viram a água em Moscou durante o inverno e não podem, por conseguinte,
afirmar razoavelmente quais seriam suas consequências (Hume).
[9] Às vezes, um evento pode não parecer, em si mesmo, contrário às leis da natureza, e
sem dúvida, se fosse real, em razão de algumas circunstâncias, poderia denominar-se um
milagre, porque, de fato, é contrário a estas leis. Assim, se uma pessoa que pretendesse ter
autoridade divina ordenasse a um enfermo que se curasse, a um homem sadio que morresse,
às nuvens que derramassem água, aos ventos que ventassem, em uma palavra, se ordenasse
vários eventos naturais que obedecessem de imediato à sua ordem: estes, sim, poderiam ser
corretamente considerados milagres, porque neste caso são realmente contrários às leis da
natureza. Porque, se persiste alguma suspeita de que o evento e a ordem emitida concordaram
por acidente, não há nenhum milagre nem transgressão das leis naturais. Mas se se exclui esta
suspeita há evidentemente um milagre e uma transgressão destas leis, porque nada pode ser
mais contrário à natureza que o fato de que a voz ou ordem de um homem tenha semelhante
influência. Um milagre pode definir-se estritamente deste modo: é a transgressão de uma lei
da natureza pela volição particular da Divindade ou pela interposição de algum agente
invisível. Um milagre pode ser cognoscível ou não pelos homens. Isto não altera sua natureza
e essência. Que uma casa ou um navio se elevem no ar é um Visível milagre. Que se levante
uma pena é um milagre igualmente real, se bem que não tão notável para nós quando não há
vento, embora se necessite tão pouca força para sua realização (Hume).
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