quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção X

DOS MILAGRES[1]
PRIMEIRA PARTE
 
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     Há, nos escritos do Dr. Tillotson[2] um argumento contra a presença real, que é tão conciso, elegante e poderoso, como pode supor-se de um argumento contra uma doutrina tão pouco digna de séria refutação. Admite-se universalmente, diz o sábio prelado, que a autoridade da Escritura ou da tradição se baseia unicamente no depoimento dos apóstolos, que foram as testemunhas oculares dos milagres de nosso Salvador, pelos quais provou sua missão divina. Portanto, nossa evidência em favor da verdade da religião cristã é menor do que a evidência da verdade de nossos sentidos, porque mesmo nos primeiros autores de nossa religião não era maior; e é evidente que ela deve diminuir passando deles para os seus discípulos; ninguém pode pois depositar, em relação aos seus testemunhos, a mesma confiança que tem em relação ao objeto imediato de seus sentidos. Mas uma evidência mais fraca nunca pode destruir uma mais forte; portanto, se a doutrina da presença real estivesse revelada na Escritura tão claramente como se queira, seria diretamente contrário às regras do raciocínio exato dar nosso assentimento. Contradiz os sentidos, visto que tanto a Escritura como a tradição, sobre as quais se supõe que está edificada, não são tão evidentes como os sentidos, se elas são consideradas meramente como evidências externas e não como dirigidas ao coração de cada um por obra imediata do Espírito Santo.
     Nada é tão convincente como um argumento decisivo deste gênero que, pelo menos, deve reduzir ao silêncio o fanatismo e a superstição mais arrogantes e livrar-nos de suas impertinentes solicitações. Congratulo-me por ter descoberto um argumento de natureza análoga que, se é legítimo, servirá de obstáculo eterno, junto aos sábios e doutos, a toda espécie de ilusão supersticiosa e, por conseguinte, será de utilidade enquanto existir o mundo. Porque presumo que em todos os tempos da história sagrada e profana[3] encontrar-se-ão relatos de prodígios e de milagres.
     Embora a experiência seja o nosso único guia no raciocínio sobre as questões de fato, deve-se reconhecer que este guia não é totalmente infalível e que, em alguns casos, pode conduzir-nos a erros. Uma pessoa que esperasse em nosso clima melhor tempo durante uma semana de junho do que uma de dezembro, raciocinaria corretamente de acordo com a experiência; todavia é também verdade que ela pode ver-se equivocada acerca do evento. E, não obstante, podemos observar que, em tal caso, não teria nenhum motivo para queixar-se da experiência, visto que ela nos informa, comumente e por antecipação, da incerteza, mediante a oposição de eventos que poderíamos apreender através de uma observação diligente. Todos os efeitos não resultam com a mesma segurança das supostas causas. Alguns eventos se encontram em todos os países e em todas as épocas em conjunção constante; outros, contudo, têm sido mais variáveis e às vezes têm decepcionado nossas expectativas; de modo que, em nossos raciocínios acerca das questões de fato, há todos os graus imagináveis de certeza, desde a mais alta certeza até as formas mais inferiores da certeza moral.
     Um homem sábio,[4] portanto, torna sua crença proporcional à evidência. Nas conclusões que se baseiam numa experiência infalível, espera o evento com o máximo grau de segurança e considera a experiência passada uma prova completa da existência futura deste evento. Em outros casos, procede com mais precaução; pesa as experiências contrárias; considera qual dos lados está apoiado por maior número de experiências; é para este lado que se inclina, com dúvida e hesitação; e quando finalmente estabelece seu juízo a evidência não ultrapassa o que denominamos propriamente de probabilidade. Toda probabilidade, portanto, supõe uma oposição de experiências e de observações, na qual um dos lados sobrepuja o outro e produz um grau de evidência proporcional à superioridade. Cem casos ou experiências de um lado e cinquenta do outro fornecem uma expectativa duvidosa de qualquer evento; contudo, cem experiências uniformes, com apenas uma que é contraditória, engendram racionalmente um grau bastante alto de segurança. Em todos os casos, devemos contrabalançar as experiências opostas, se são opostas, e subtrair os números menores dos maiores a fim de conhecer a força exata da evidência superior.
     Aplicando estes princípios a um caso particular, constatamos que não há espécie de raciocínio mais comum, mais útil e mesmo mais necessário à vida humana que o derivado do depoimento humano, dos relatos das testemunhas oculares e dos expectadores. Negar-se-ia, talvez, que esta espécie de raciocínio se funda na relação de causa e efeito. Não discutirei sobre a terminologia. Será suficiente notar, contudo, que nossa segurança em qualquer argumento deste gênero não deriva de outro princípio senão da constatação da veracidade do testemunho humano e da conformidade usual dos fatos com os relatos das testemunhas. Como um princípio geral diz que em nenhum objeto se pode descobrir uma conexão, e que todas as inferências que podemos tirar de um para o outro se baseiam unicamente em nossa experiência de sua conjunção constante e regular, é evidente que não devemos fazer uma exceção deste princípio em favor do testemunho humano, cuja conexão com qualquer evento em si mesmo parece mui pouco necessária como qualquer outra.[5] Se a memória não fosse até certo grau tenaz, se os homens não tivessem geralmente inclinação para a verdade e princípio de probidade, se não fossem sensíveis à vergonha quando se descobrem suas mentiras; se a experiência, digo eu, não revelasse que essas qualidades são inerentes à natureza humana, não depositaríamos jamais a menor confiança no testemunho humano. Um homem que delira ou que é conhecido por sua falsidade e sua vilania não tem nenhuma espécie de autoridade para nós.
     Como o depoimento que deriva das testemunhas e do testemunho humano se funda sobre a experiência passada, varia com a experiência e se considera ou uma prova ou uma probabilidade, conforme se tem verificado constante ou variável a conjunção entre um gênero particular do relato e um gênero do objeto. Devem-se, portanto, levar em consideração numerosas circunstâncias em todos os julgamentos deste gênero; e a última regra que nos permite decidir em todas as discussões que podem nascer a respeito deste tema deriva sempre da experiência e da observação. Se esta experiência não é inteiramente uniforme em um dos dois lados, gerará uma inevitável contradição em nossos juízos, cujos argumentos apresentam a mesma oposição e destruição mútua como em qualquer outro gênero de evidência. Frequentemente duvidamos dos relatos de outrem. Contrabalançamos as circunstâncias opostas originárias de alguma dúvida ou incerteza; e quando descobrimos uma superioridade a favor de um lado, inclinamo-nos para ele, porém com segurança diminuída em proporção à força de seu antagonista.[6]
     Esta contradição da evidência no caso presente pode derivar de diferentes causas: da oposição de testemunhos contrários, do caráter ou do número de testemunhas, da maneira como eles produzem seus testemunhos, ou da união de todas essas circunstâncias. Suspeitamos de uma questão de fato quando as testemunhas se contradizem entre si, quando são poucas e de caráter duvidoso, quando têm algum interesse pessoal naquilo que afirmam, quando enunciam seu testemunho com hesitação ou, pelo contrário, com afirmações mui violentas. Há muitos outros aspectos do mesmo gênero que podem diminuir ou destruir a força de qualquer argumento derivado do testemunho humano.
     Suponha, por exemplo, que o fato que o testemunho tenta estabelecer tem de algo extraordinário e de maravilhoso; neste caso, a evidência que resulta do testemunho admite uma diminuição maior ou menor em proporção ao fato que é mais ou menos invulgar. A razão que nos leva a dar algum crédito às testemunhas e aos historiadores não deriva de nenhuma conexão que percebemos a priori entre o testemunho e a realidade, mas do fato de estarmos acostumados a encontrar uma conformidade entre eles. Contudo, quando o fato testificado é tal que raramente caiu sob nossa observação, produz-se então um conflito entre duas experiências opostas, em que uma destrói a outra em proporção de sua força, e a experiência superior apenas pode agir sobre o espírito com a força que lhe resta. E precisamente este mesmo princípio da experiência que nos fornece certo grau de segurança sobre o depoimento das testemunhas, e que nos dá também, neste caso, outro grau de segurança contra o fato que tentam estabelecer; e desta contradição surge necessariamente um contrapeso e uma destruição recíproca da crença e da autoridade.
     Não acreditaria numa tal história mesmo se Catão ma contasse, era um dito proverbial em Roma, inclusive durante a vida deste filósofo patriota.[7] Admitia-se, pois, que a incredibilidade de um fato poderia invalidar tão grande autoridade.
     O príncipe hindu que inicialmente se recusou a acreditar nos relatos sobre os efeitos da escarcha raciocinou corretamente, pois, como é natural, necessitar-se-ão testemunhos poderosos para lograr seu assentimento acerca de fatos que surgiram de um estado da natureza, com os quais ele não estava familiarizado, e que tinham tão pouca analogia com os eventos dos quais tinha tido uma experiência constante e uniforme. Embora estes fatos não fossem contrários à sua experiência, tampouco estavam de acordo com ela.[8]
     Mas, para aumentar a probabilidade contra o depoimento das testemunhas, suponhamos que o fato que afirmam, em vez de ser apenas maravilhoso, é realmente miraculoso, e suponhamos também que o depoimento considerado à parte e em si mesmo equivale a uma prova completa; neste caso, temos prova contra prova, e a mais forte delas deve prevalecer, mas com uma diminuição de sua força em proporção à de sua antagonista.
     Um milagre é uma violação das leis da natureza; e como uma experiência constante e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, devido à própria natureza do fato, é tão completa como qualquer argumento da natureza que se possa imaginar. Por que é mais do que provável que todos os homens devem morrer; que o chumbo não pode por si mesmo permanecer suspenso no ar; que o fogo consome a madeira e que, por sua vez, a água o extingue; a não ser que estes eventos estão de acordo com as leis da natureza, e que é preciso uma violação destas leis, ou em outras palavras, um milagre, para impedi-los? Nada é considerado um milagre se ocorre no curso normal da natureza. Não é um milagre que um homem, aparentemente de boa saúde, morra subitamente, pois verifica-se que tal gênero de morte, embora mais incomum que qualquer outro, ocorre frequentemente. Mas é um milagre que um morto possa ressuscitar, porque isto nunca foi observado em nenhuma época e em nenhum país. Portanto, deve haver uma experiência uniforme contra todo evento miraculoso, senão o evento não mereceria esta denominação. E, como uma experiência uniforme equivale a uma prova, há aqui uma prova direta e completa, tirada da natureza fática contra a existência de um milagre; uma tal prova não pode ser destruída nem o milagre fazer-se crível senão por meio de uma prova oposta que lhe seja superior.[9]
     A consequência clara — e é uma máxima geral digna de nossa atenção — é que não há testemunho suficiente para fundamentar um milagre, a menos que o testemunho seja tal que sua falsidade seria ainda mais miraculosa que o fato que pretende estabelecer; e mesmo neste caso há mútua destruição de argumentos, e o argumento mais forte nos dá apenas uma segurança proporcional ao grau da força depois da dedução da força inferior. Quando alguém me diz que viu um morto ressuscitar, considero imediatamente comigo mesmo: é mais provável que essa pessoa procure enganar-me ou esteja equivocada, do que o fato que relata possa realmente ter ocorrido. Peso um milagre contra o outro e, de acordo com a superioridade que descubro, pronuncio minha decisão e rejeito sempre o milagre maior. Se a falsidade de seu testemunho fosse ainda mais miraculosa que o evento que relata, agora e somente agora, pode pretender orientar minha crença e minha opinião.

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção X(1)
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Notas:
[1] Da interessante entrevista que Hume concedeu a James Boswell, em 7 de julho de 1776, é conhecida a célebre passagem do primeiro: “nunca mais nutri qualquer crença pela Religião desde que comecei a ler Locke e Clarke” (Boswell, “An Account ol my last interview with David Rume”, cit. por N. K. Smith, Dialogues Concerning Natural Religion, de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 76). Hume pretende, talvez, mostrar sua intenção de criticar a base racional da teologia natural, defendida tanto por Locke e Clarke como por outros metafísicos do século XVIII, e aceita quase universalmente pelos pensadores da Ilustração. De modo geral, podemos dizer que os argumentos da teologia natural abrangem dois momentos: a) com base no “argumento do desígnio” (seção XI), a teologia natural defende a tese de que tanto a existência como todos os atributos de Deus podem ser conhecidos pela razão natural e b) esta visão da religião da natureza pode ser suplementada pela revelação, cuja validade é garantida pela ocorrência de milagres, que, por seu turno, são apoiados por abundante evidência histórica (seção X). As seções X e XI constituem, de acordo com Stephen, partes de um único argumento, que julgamos ter sido elaborado por Hume para mostrar a inviabilidade dos momentos (a e b) da teologia natural. (Stephen, L. English Thought ín the Eighteenth Century Londres, 1902, vol. I, p. 310). [N. do T.]
[2] John Tillotson (1630-1694), influente teólogo e arcebispo de Canterbury a partir de 1691, apresenta o argumento que Hume sumariza, no Discourse against Transubstantion, publicado em 1684, da seguinte maneira: “Todo homem tem tão grande evidência de que a transubstanciação é falsa como tem de que a religião cristã é verdadeira. Suponde que a transubstanciação fizesse parte da doutrina cristã, deveria então ter a mesma confirmação com o todo, isto é, milagres. Mas, dentre todas as doutrinas do mundo, ela é peculiarmente incapaz de ser provada por um milagre. Pois, se um milagre fosse elaborado para prová-la, a própria segurança que leva alguém a aceitar a verdade do milagre o leva a considerar a falsidade da doutrina, isto é, através da clara evidência dos sentidos. Para que um milagre possa provar que o que ele vê no sacramento não é o pão, mas o corpo de Cristo, ele tem apenas o testemunho do sentido; e este mesmo testemunho aparece para provar que o que ele vê no sacramento não é o corpo de Cristo, mas o pão”. (Tillotson, vol. II, p. 448; citado por Flew, ob. cit., p. 172). [N. do T.]
[3] Nas edições K e L lê-se: “em toda história profana”.
[4] O “argumento” constituirá poderosa bacreira, se utilizado pelos “sábios e doutos”, contra todo tipo de narrativas sobre fenômenos sobrenaturais. Aludindo de modo explícito aos “sábios e doutos”, Hume está implicitamente colocando seu argumento fora do alcance do homem comum. É que o último considera qualquer uniformidade da natureza, embora temporal e acidental, como válida, já que sua principal caracteristica é a credulidade: “nenhuma fraqueza da natureza humana — escreve Hume — é mais notável e mais universal do que a que denominamos credulidade” (Tratado, I, iii, p. 112). O sábio, pelo contrário, tem plena consciência de que apenas as seqüencias invariáveis podem ser encaradas como causais e como os fundamentos da crença; por esse motivo ele inicia suas buscas com certa dosagem de ceticismo. Daí que, 1) o sábio admite que sua expectativa acerca de eventos futuros será inteiramente comprovada, apenas quando baseada em “experiência infalível”, e 2) nas situações em que perdura certo grau de probabilidade, isto é, a expectativa é confirmada por alguma, mas não por toda evidência experimental, o sábio deve contrabalançar as experiências opostas e tender para a que se mostrar favorecida por maior número de “experimentos e observações”. [N. do T.]
[5] Nas edições de K a M lê-se: A imaginação humana não acompanha naturalmente sua memória.
[6] A estrutura metodológica exposta resumidamente na nota 69, desta seção, é transferida por Hume para estudar o “raciocínio” baseado no depoimento do ‘testemunho Humano”: núcleo transmissor de todos os eventos cotidianos, históricos, maravilhosos e milagrosos. [N. do T.]
[7] Plutarco em Vita Catonis (Hume).
[8] Certamente, nenhum hindu poderia ter experiência do congelamento da água em climas frios, visto que a natureza se apresenta de maneira inteiramente desconhecida para ele, é-lhe, portanto, impossível afirmar a priori o que resultará do fenômeno. É preciso fazer um novo experimento, embora sua consequência seja sempre incerta. As vezes pode-se conjeturar mediante analogia o que ocorrerá; porém, trata-se ainda de mera conjetura. Deve se admitir que, no presente exemplo de congelação, o evento se produz contrariamente às regras da analogia, de tal modo que um hindu não poderia esperá-lo. A ação do frio sobre a água não se processa gradativamente segundo os diferentes graus de frio; ao contrário, quando a água atinge o ponto de congelação, passa num instante do estado líquido para o sólido. Tal fenômeno pode, todavia, denominar-se extraordinário, e se requer forte testemunho para fazê-lo crível aos povos de clima quente. Apesar disso, não é considerado miraculoso e nem contrário à experiência uniforme do curso da natureza em que todas as circunstâncias são idênticas. Os habitantes de Sumatra sempre têm observado o fluir das águas em seu próprio clima e consideram o congelamento de seus rios como algo prodigioso. Porquanto jamais viram a água em Moscou durante o inverno e não podem, por conseguinte, afirmar razoavelmente quais seriam suas consequências (Hume).
[9] Às vezes, um evento pode não parecer, em si mesmo, contrário às leis da natureza, e sem dúvida, se fosse real, em razão de algumas circunstâncias, poderia denominar-se um milagre, porque, de fato, é contrário a estas leis. Assim, se uma pessoa que pretendesse ter autoridade divina ordenasse a um enfermo que se curasse, a um homem sadio que morresse, às nuvens que derramassem água, aos ventos que ventassem, em uma palavra, se ordenasse vários eventos naturais que obedecessem de imediato à sua ordem: estes, sim, poderiam ser corretamente considerados milagres, porque neste caso são realmente contrários às leis da natureza. Porque, se persiste alguma suspeita de que o evento e a ordem emitida concordaram por acidente, não há nenhum milagre nem transgressão das leis naturais. Mas se se exclui esta suspeita há evidentemente um milagre e uma transgressão destas leis, porque nada pode ser mais contrário à natureza que o fato de que a voz ou ordem de um homem tenha semelhante influência. Um milagre pode definir-se estritamente deste modo: é a transgressão de uma lei da natureza pela volição particular da Divindade ou pela interposição de algum agente invisível. Um milagre pode ser cognoscível ou não pelos homens. Isto não altera sua natureza e essência. Que uma casa ou um navio se elevem no ar é um Visível milagre. Que se levante uma pena é um milagre igualmente real, se bem que não tão notável para nós quando não há vento, embora se necessite tão pouca força para sua realização (Hume).

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