terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (O Movimento Totalitário - {2a} A Organização Totalitária)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

O Movimento Totalitário
     2 - A Organização Totalitária
          As formas da organização totalitária em contraposição com o seu conteúdo ideológico e os slogans de propaganda são completamente novas.[60] Visam a dar às mentiras propagandísticas do movimento, tecidas em torno de uma ficção central — a conspiração dos judeus, dos trotskistas, das trezentas famílias etc. —, a realidade operante e a construir, mesmo em circunstâncias não-totalitárias, uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo as regras de um mundo fictício. Em contraste com partidos e movimentos aparentemente semelhantes de orientação fascista ou socialista, nacionalista ou comunista, que dão à sua propaganda o apoio terrorista assim que atingem um certo grau de extremismo (o que geralmente depende do grau de desespero dos seus membros), o movimento totalitário realmente leva a sério a sua propaganda, e essa seriedade se expressa muito mais assustadoramente na organização dos seus adeptos do que na liquidação física dos seus oponentes. A organização e a propaganda, e não o terror e a propaganda, são duas faces da mesma moeda.[61] O mais surpreendentemente novo expediente organizacional dos movimentos na fase que antecede a tomada do poder é a criação de organizações de vanguarda, ou seja, a definição da diferença entre os membros do partido e os seus simpatizantes.
     Comparadas a essa invenção, outras características tipicamente totalitárias, como a nomeação de funcionários por uma cúpula ideológica e a monopolização final das nomeações por um homem só, são de menor importância. O chamado "princípio de liderança" não é totalitário em si; algumas de suas características derivam do autoritarismo e da ditadura militar, que muito contribuíram para obscurecer e subestimar o fenômeno essencialmente totalitário. Se os funcionários nomeados por alguém de cima tivessem verdadeira autoridade e responsabilidade, estaríamos lidando com uma estrutura hierárquica na qual a autoridade e o poder são delegados e regulados por lei. O mesmo também se aplica à organização de um exército e à ditadura estabelecida segundo o modelo militar; neste caso, o poder absoluto de comando, de cima para baixo, e a obediência absoluta, de baixo para cima, correspondem a uma situação de extrema emergência em combate, e é precisamente por isso que não são totalitárias. Uma escala de comando hierarquicamente organizada significa que o poder do comandante depende de todo o sistema hierárquico dentro do qual atua. Toda hierarquia, por mais autoritária que seja o seu funcionamento, e toda escala de comando, por mais arbitrário e ditatorial que seja o conteúdo das ordens, tende a estabilizar-se e constituiria um obstáculo ao poder total do líder de um movimento totalitário.[62] Na linguagem dos nazistas, é o "desejo do Führer", dinâmico e sempre em movimento — e não as suas ordens, expressão que poderia indicar uma autoridade fixa e circunscrita —, que é a "lei suprema" num Estado totalitário.[63] O caráter totalitário do princípio de liderança advém unicamente da posição em que o movimento totalitário, graças à sua peculiar organização, coloca o líder, ou seja, da importância funcional do líder para o movimento. Comprova essa asserção o fato de que, tanto no caso de Hitler como no de Stálin, o verdadeiro princípio de liderança só se cristalizou lentamente, em paralelo com a gradual "totalitarização" do movimento.
     Um anonimato que muito contribui para a esquisitice do fenômeno encobre as origens dessa estrutura organizacional. Não sabemos quem primeiro decidiu organizar os simpatizantes em grupos de vanguarda, quem viu primeiro uma força decisiva em si, e não apenas um reservatório de onde se poderiam arregimentar membros, nas massas vagamente simpatizantes — com as quais todo partido costumava contar no dia da eleição, mas que eram consideradas demasiado flutuantes para serem aceitas como membros. As primeiras organizações de simpatizantes de inspiração comunista, tais como os Amigos da União Soviética, tornaram-se grupos de vanguarda, embora originalmente não fossem mais do que os seus nomes indicavam: agrupamentos de simpatizantes para ajuda financeira ou de outra natureza (como, por exemplo, assistência legal). Hitler foi o primeiro a dizer que cada movimento devia dividir as massas conquistadas pela propaganda em duas categorias: simpatizantes e membros do partido, em si, já é muito interessante: porém, mais significativo ainda é ter baseado essa divisão numa filosofia mais ampla, segundo a qual as pessoas em sua maioria são demasiado preguiçosas e covardes para qualquer ato que ultrapasse o mero conhecimento teórico, é só uma minoria está disposta a lutar por suas convicções.[65] Consequentemente, Hitler foi o primeiro a traçar uma política de contínua ampliação dos escalões de simpatizantes, ao mesmo tempo em que mantinha o número de membros do partido estritamente limitado.[66] Essa noção de uma minoria de membros do partido cercada por uma maioria de simpatizantes aproxima-se do que vieram a ser as organizações de vanguarda — termo que realmente exprime muito bem a sua função ulterior, e indica a relação entre membros e simpatizantes dentro do próprio movimento. Pois as organizações de vanguarda de simpatizantes não são menos essenciais ao funcionamento do movimento do que os seus verdadeiros membros.
     As organizações de vanguarda cercam os membros dos movimentos com uma parede protetora que os separa do mundo exterior normal; ao mesmo tempo, constituem a ponte que os leva de volta à normalidade e sem a qual os membros, na fase anterior à tomada do poder, sentiriam com demasiada clareza as diferenças entre as suas crenças e as das pessoas normais, entre a mentirosa ficção do seu mundo e a realidade do mundo normal. A engenhosidãde desse expediente, durante a luta do movimento pelo poder, é que a organização de vanguarda não apenas isola os membros, mas lhes empresta uma aparência de normalidade externa que amortece o impacto da verdadeira realidade de maneira mais eficaz que a simples doutrinação. O que consolida a crença de um nazista ou bolchevista na explicação fictícia do mundo é a diferença entre a sua atitude e a do simpatizante, porque, afinal, o simpatizante tem as mesmas convicções, embora de um modo mais "normal", isto é, menos fanático e mais confuso; de forma que parece ao membro do partido que qualquer pessoa a quem o movimento não tenha expressamente apontado como inimigo (um judeu, um capitalista etc.) está do seu lado, e que o mundo é cheio de aliados secretos que apenas não têm ainda a necessária força de espírito e de caráter para tirar as conclusões lógicas de suas próprias convicções.[67]
     Por outro lado, o mundo exterior geralmente tem o primeiro vislumbre do movimento totalitário através das organizações de vanguarda. Os simpatizantes que, ao que tudo indica, são ainda concidadãos inofensivos numa sociedade não-totalitária, não podem propriamente ser chamados de fanáticos obstinados; através deles, os movimentos fazem com que suas fantásticas mentiras sejam mais geralmente aceitas, podem divulgar sua propaganda em formas mais suaves e respeitáveis, até que toda a atmosfera esteja impregnada de elementos totalitários disfarçados em opiniões e reações políticas normais. As organizações de simpatizantes dão aos movimentos totalitários uma aparência de normalidade e respeitabilidade que engana os seus membros quanto à verdadeira natureza do mundo exterior, da mesma forma que engana o mundo exterior 'quanto ao verdadeiro caráter do movimento. As organizações de vanguarda funcionam nas duas direções: como fachada do movimento totalitário para o mundo não totalitário, e como fachada deste mundo para a hierarquia interna do movimento.
     Ainda mais notável do que essa relação é o fato de que ela se repele em níveis diferentes dentro do próprio movimento. Os membros do partido mantêm a mesma distância e relação com os simpatizantes que as formações de elite do movimento mantêm com os membros comuns. Se o simpatizante parece ser ainda um habitante normal do mundo exterior que adotou o credo totalitário como se pode adotar o programa de um partido comum, o membro comum do movimento nazista ou bolchevista ainda pertence, em muitos aspectos, ao mundo exterior: suas relações profissionais e sociais ainda não são determinadas de modo absoluto pelo fato de pertencer ao partido, embora ele compreenda — ao contrário do simples simpatizante — que, em caso de conflito entre a fidelidade partidária e a vida privada, deverá prevalecer a primeira. Por outro lado, o membro do grupo militante identifica-se completamente com o movimento, não tendo profissão nem vida pessoal independente deste último. Assim como os simpatizantes constituem um muro de proteção em torno dos membros do movimento e representam para eles o mundo exterior, também os membros comuns envolvem os grupos militantes e representam para estes o mundo exterior normal.
     Uma vantagem definida dessa estrutura é que ela neutraliza o impacto de um dos dogmas básicos do totalitarismo, que afirma ser o mundo dividido em dois gigantescos campos inimigos, um dos quais é o movimento, e que este pode e deve lutar contra o resto do mundo — afirmação que abre o caminho para a indiscriminada agressividade dos regimes totalitários. O choque da terrível e monstruosa dicotomia totalitária é neutralizado, e nunca totalmente percebido, graças a uma cuidadosa graduação de militância, na qual cada escalão reflete para o escalão imediatamente superior a imagem do mundo não-totalitário, porque é menos militante e os seus membros são menos organizados. Esse tipo de organização evita que os seus membros jamais venham a encarar diretamente o mundo exterior, cuja hostilidade permanece para eles um simples pressuposto ideológico. Permanecem tão bem protegidos contra a realidade do mundo não-totalitário que subestimam constantemente os tremendos riscos da política totalitária.
     Não há dúvida de que os movimentos, totalitários atacam o status quo mais radicalmente que qualquer antigo partido revolucionário. Podem dar-se ao luxo desse radicalismo, aparentemente tão inadequado para organizações de massa, porque a sua organização proporciona um substituto temporário para a vida comum, não-política, que o totalitarismo realmente procura abolir. Todas as pessoas que formam o mundo das relações sociais não-políticas, das quais o "revolucionário profissional" teve de separar-se ou aceitar como eram, existem sob a forma de grupos menos militantes dentro do movimento; nesse mundo hierarquicamente organizado, os que lutam pela conquista do mundo e pela revolução mundial nunca se expõem ao choque inevitável da discrepância entre as crenças "revolucionárias" e o mundo "normal". O motivo pelo qual os movimentos, em sua fase revolucionária anterior ao poder, podem atrair tantos homens comuns é que os seus membros vivem num mundo ilusoriamente normal: os membros do partido são rodeados pelo mundo normal dos simpatizantes, e as formações de elite pelo mundo normal dos partidários comuns.
     Outra vantagem do modelo totalitário é que pode ser repetido indefinidamente, e mantém a organização num estado de fluidez que permite a constante inserção de novas camadas e a definição de novos graus de militância. Toda a história do partido nazista pode ser narrada em termos de novas formações dentro do movimento. A SA, as tropas de assalto (fundada em 1922), foi a primeira formação nazista supostamente mais militante que o próprio partido;68 em 1926, foi fundada a SS como a formação de elite da SA; três anos depois, a SS foi separada da SA e colocada sob o comando de Himmler; Himmler levou apenas mais alguns anos para repetir o mesmo jogo dentro da SS: um após outro — e cada qual mais militante que o grupo anterior — vieram à luz, primeiro, as Tropas de Choque,[69] depois as unidades da Caveira, criadas para guardarem os campos de concentração e mais tarde reunidas para formar a SS-Armada (Waffen-SS), e finalmente o Serviço de Segurança (o "serviço de espionagem ideológica do Partido", com a sua ramificação para executar a "política de população negativa") e o Centro para Questões de Raça e Colonização (Rasse-und Siedlungswesen), cuja função era de "natureza positiva" — todos emanados da SS Geral, cujos membros, com a exceção da elite do Corpo do Führer, permaneciam em suas ocupações civis. Daí em diante, as relações entre essas novas formações e o membro do Corpo do Führer eram as mesmas que entre o membro da SA e o membro da SS, ou entre o membro do partido e o membro da SA, ou entre o membro da organização de vanguarda e o membro do partido.[70] Agora, a SS Geral era encarregada não apenas de "salvaguardar a (...) corporificação da ideia nacional-socialista", mas também de "proteger os membros de todos os escalões especiais da SS para que não se afastassem do próprio movimento".[71]  Esse tipo de hierarquia flutuante com a constante adição de novas camadas e mudanças de autoridade, é bem conhecido: existe em entidades secretas descontrole» como a polícia secreta ou os serviços de espionagem, nos quais Sempre há necessidade de novos controles para controlar os controladores*. Antes que os movimentos tomem o poder, a espionagem total ainda não é possível; mas a hierarquia flutuante, semelhante à dos serviços secretos, torna possível, mesmo sem o poder efetivo, degradar qualquer escalão ou grupo que vacile ou mostre sinais de perda de radicalismo, através da mera inserção de mais uma camada radical, deslocando assim o grupo mais velho em direção da organização periférica de vanguarda, ou seja, na direção oposta ao centro do movimento. Assim, as formações de elite nazista eram fundamentalmente organizações vindas do âmago do partido; a SA galgou a posição de superpartido quando o radicalismo do partido pareceu diminuir, e foi depois, por sua vez e por motivos semelhantes, substituída pela SS.
     Exagera-se freqüentemente o valor militar das formações de elite totalitárias, especialmente da SA e da SS, e de certa forma esquece-se o significado puramente interno que tinham para o partido.[72] Nenhuma das organizações fascistas, caracterizadas pela cor da camisa, foi fundada para fins específicos de defesa ou de agressão, embora a defesa dos líderes ou dos membros comuns do partido fosse citada como pretexto.[73] A natureza paramilitar dos grupos de elite nazistas e fascistas resultou do fato de terem sido fundados como "instrumentos para a luta ideológica do movimento"[74] contra o pacifismo corrente na Europa depois da Primeira Guerra Mundial. Para fins totalitários, era muito mais importante criar, como "expressão de uma atitude agressiva",[75] um exército de imitação que se assemelhasse o mais possível ao falso exército dos pacifistas (os quais, incapazes de compreender a função constitucional do Exército dentro da estrutura política, denunciavam todas as instituições militares como bandos de assassinos voluntários) do que ter uma tropa de soldados bem-treinados. A SA e a SS eram, sem dúvida, organizações exemplares para fins de violência arbitrária e de assassinato; não eram tão bem-treinadas quanto o Reichswehr e não estavam equipadas para lutar contra tropas regulares. A propaganda militarista foi mais popular na Alemanha do pós-guerra do que o treinamento militar, e os uniformes não aumentaram o valor militar das tropas paramilitares, embora fossem úteis como indicação clara da abolição das normas e da moral dos civis; de certo modo, esses uniformes apaziguavam consideravelmente a consciência dos assassinos e, além disso, tornavam-nos ainda mais acessíveis à obediência cega diante da autoridade inconteste. Apesar desses enfeites militares, a facção interna do partido nazista, que era primordialmente nazista e militarista e, portanto, encarava as tropas paramilitares não apenas como meras formações partidárias, mas como ampliação ilegal do Reichswehr (que havia sido limitado pelo Tratado de Paz de Versalhes), foi a primeira a ser liquidada. Rohm, o líder das tropas de assalto da SA, havia realmente imaginado e negociado a incorporação da sua SA ao Reichswehr depois que os nazistas tomassem o poder. Hitler mandou matá-lo por sua tentativa de transformar o novo regime nazista em ditadura militar.[76] Vários anos antes, Hitler havia deixado claro que o movimento nazista não desejava tal coisa; da chefia da SA, demitiu Rohm — um verdadeiro soldado, cuja experiência na guerra e na organização do Reichswehr Negro teria feito dele um elemento indispensável a um programa sério de treinamento militar — e escolheu Himmler, um homem sem o menor conhecimento de assuntos militares, para reorganizar a SS.
     Além da importância das formações de elite para a estrutura organizacional dos movimentos, onde constituíam núcleos mutáveis da militância, o seu caráter paramilitar deve ser compreendido em conjunto com outras organizações partidárias profissionais, como as dos mestres, advogados, médicos, estudantes, professores universitários, técnicos e trabalhadores. Todos eram, essencialmente, duplicatas de sociedades profissionais não-totalitárias existentes; eram paraprofissionais como as tropas de assalto eram paramilitares. Era típico que, quanto mais claramente os partidos comunistas europeus se tornavam ramificações do movimento bolchevista dirigido por Moscou, tanto mais usavam também as suas organizações de vanguarda para competir com grupos puramente profissionais. A diferença entre os nazistas e os bolchevistas, a esse respeito, era que os nazistas tinham forte tendência de considerar essas formações paraprofissionais como parte da elite do partido, enquanto os bolchevistas preferiam recrutar delas o material para as suas organizações de vanguarda. O importante para os movimentos totalitários é, antes mesmo de tomarem o poder, darem a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões: o fim último da propaganda nazista era organizar todos os alemães como simpatizantes.[77] Os nazistas foram um passo adiante neste jogo e criaram uma série de falsos departamentos, moldados segundo a administração regular do Estado, tais como o seu próprio departamento de relações exteriores, educação, cultura, esportes etc. O valor profissional dessas instituições era tão pequeno quanto o valor militar da imitação de exército representada pelas tropas de assalto mas, juntas, criavam um perfeito mundo de aparências onde cada realidade do mundo não-totalitário era servilmente reproduzida sob forma de embuste.
     Esta técnica de duplicação, que de nada serve para a derrubada direta de um governo, foi extremamente útil no trabalho de solapar instituições atuantes existentes e na "decomposição do status quo",[78] tarefa que as organizações totalitárias invariavelmente preferem a uma franca exibição de força. Se o objetivo dos movimentos é "penetrarem como pólipos em todas as posições de poder",[79] devem estar prontos para qualquer posição específica, social ou política. Dando a pretensão de domínio total, todo grupo organizado na sociedade não-totalitária parece constituir, especificamente, uma ameaça de destruir o movimento; cada um deles requer um instrumento específico de destruição. O valor prático das falsas organizações veio à luz quando os nazistas tomaram o poder e demonstraram estar preparados para destruir imediatamente as organizações existentes de professores por meio de outras organizações de professores, os clubes existentes de advogados por meio de um clube de advogados patrocinado pelos nazistas etc. Puderam mudar, da noite para o dia, toda a estrutura da sociedade alemã — e não apenas a vida política — precisamente porque haviam^ preparado o correspondente exato de cada setor dentro dos seus próprios escalões. Por sinal, a tarefa das formações paramilitares terminou quando a hierarquia militar regular pôde ser colocada, durante os últimos estágios da guerra, sob a autoridade dos generais da SS. A técnica dessa "coordenação" era tão engenhosa e irresistível quanto era rápida e radical a deterioração dos padrões profissionais, embora esses resultados fossem mais imediatamente sentidos no campo altamente técnico e especializado da arte militar do que em qualquer outro.

Parte III Totalitarismo (O Movimento Totalitário - {2a} A Organização Totalitária)
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[60] Hitler, discutindo a relação entre a Weltanschauung e a organização, admite como natural que os nazistas tomassem emprestado a outros grupos e partidos a "ideia racial" (die vòl-kische Idee); e, se agiram como se fossem os seus únicos representantes, é por terem sido os primeiros a basearem nela uma organização combativa e a formularem-na para fins práticos. Op. cit., livro II, capítulo v.
[61] Ver Hitler, "Propaganda e organização", op. cit., livro II, capítulo xi.
[62] Exemplo disso é o pedido de Himmler, veementemente urgente, para que "não se emitisse nenhum decreto referente à definição do termo 'judeu'"; porque, "com todos esses compromissos idiotas, estaremos atando as nossas próprias mãos" (Documento de Nurembergue n? 626, carta a Berger datada de 28 de julho de 1942, cópia fotostática no Centre de Documentation Juive).
[63] A fórmula "O desejo do Führer é a lei suprema" encontra-se em todas as normas e regulamentações oficiais sobre a conduta do Partido e da SS. A melhor fonte nesse assunto é Otto Gauweiler, Rechtseinrichtungen und Rechtaufgaben der Bewegung [Disposições e tarefas jurídicas do movimento], 1939.
[64] Heiden, op. cit., p. 292, menciona a seguinte diferença entre a primeira edição e as edições seguintes de Mein Kampf: a primeira edição propõe a eleição de autoridades do partido que, somente após a eleição, recebem "poder e autoridade ilimitados"; todas as edições posteriores estabelecem a nomeação das autoridades do partido pelo líder imediatamente superior. Naturalmente, para a estabilidade dos regimes totalitários, a nomeação vinda de cima é um princípio muito mais importante do que a "autoridade ilimitada" da autoridade eleita. Na prática, a autoridade do sub líder era limitada pela absoluta soberania do líder. Stálin, que vinha do aparelho conspiratório do partido bolchevista, provavelmente nunca achou que isso constituísse problema. Para ele, as nomeações na máquina do partido eram uma questão de acúmulo de poder pessoal. Contudo, foi somente em meados da década de 30, depois de haver estudado o exemplo de Hitler, que ele se deixou tratar por "líder". Mas, é forçoso admitir que poderia facilmente justificar esses métodos citando a teoria de Lênin de que "a história de todos os países demonstra que a classe trabalhadora, se depender apenas dos seus próprios esforços, só é capaz de desenvolver uma consciência sindical", e que a sua liderança, portanto, advém necessariamente de fora. (Ver Que fazer?, publicado pela primeira vez em 1902.) O fato é que Lênin considerava o Partido Comunista como a parte "mais progressista" da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, "a alavanca da organização política" que "dirige toda a massa do proletariado", isto é, uma organização que está fora e acima da classe. (Ver W. H. Chamberlin, The Russian Revolution, 1917-1921, Nova York, 1935, II, 361.) Não obstante, Lênin não punha em dúvida a validez da democracia intrapartidária, embora se inclinasse pela restrição da democracia com relação à própria classe trabalhadora.
[65] Hitler, op. cit., livro II, capítulo xi.
[66] Ibid. Esse princípio foi rigorosamente adotado logo que os nazistas tomaram o poder. Dos 7 milhões de membros da juventude hitlerista, somente 50 mil foram aceitos como membros do partido em 1937. Ver o prefácio de H. L. Childs a The Nazi primer. Compare-se também Gottfried Neesse, "Die verfassungsrechtliche Gestaltung der Ein-Partei", tmZeitschriftfürdiegesamteStaat-swissenschaft, 1948, vol. 98, p. 678: "MesmaoPartidp Ünico jamais deve crescer a ponto de incluir toda a população. Ele é total devido à influência ideológica que exerce sobre a nação".
[67] Ver a diferenciação feita por Hitler entre as "pessoas radicais", que eram as únicas que estavam preparadas para se tornarem membros do partido, e as centenas de milhares de simpatizantes, que eram demasiado "covardes" para fazer o necessário sacrifício. Op. cit., loc. cit.
[68] Ver Hitler: capítulo sobre a SA, op. cit., livro II, cap. ix, 2? parte.
[69] Ao traduzir Verfügungstruppe, ou seja, as unidades da SS que deviam estar à disposição especial de Hitler, como tropas de choque, sigo O. C. Giles, The Gestapo, Oxford Pamphlets on World Affairs, n? 36, 1940.
[70] A fonte mais importante para a organização e a história da SS é "Wesen und Aufgabe der SS und der Polizei" [Caráter e função da SS e da polícia], de Himmler, em Sammelhefte ausge-wàhlter Vortrage und Reden, 1939. No decorrer da guerra, quando os escalões da Waffen-SS tiveram de ser preenchidos com voluntários, devido às perdas no front, a Waffen-SS perdeu o seu caráter de elite dentro da SS a tal ponto que a SS Geral, isto é, o Corpo do Führer mais elevado, passou mais uma vez a representar o verdadeiro núcleo de elite do movimento em seu aspecto geral. Documentação muito reveladora sobre essa última fase da SS encontra-se nos arquivos da Hoover Library, arquivo Himmler, pasta n? 278. Mostra que a SS passou a recrutar trabalhadores estrangeiros e a população nativa, imitando deliberadamente os métodos e normas da Legião Estrangeira Francesa. O recrutamento entre os alemães baseava-se numa ordem de Hitler (nunca publicada), de dezembro de 1942, segundo a qual "a classe de 1925 [devia] ser recrutada para a Waffen-SS" (carta de Himmler a Bormann). A convocação e o recrutamento eram tratados, ostensivamente, como serviços voluntários. Mas numerosos relatórios de líderes da SS encarregados da tarefa mostram o que de fato aconteceu. Um relatório de 21 de julho de 1943 descreve como a polícia cercava o pavilhão dos trabalhadores franceses que seriam recrutados, e como os franceses primeiro cantavam a Marselhesa e depois tentavam pular pelas janelas. As tentativas de recrutamento dos jovens alemães também não eram encorajadoras. Embora fossem submetidos a extraordinárias pressões, e fosse-lhes dito que "certamente não iriam querer incorporar se aos 'bandos sujos vestidos de cinza'" (o Exército), somente dezoito de 220 membros da Juventude Hitlerista apresentaram-se para o serviço da SS (segundo relatório de 30 de abril de 1943, submetido por Hàussler, chefe do Centro de Recrutamento do Sudoeste, da Waffen-SS); todos os outros preferiram alistar-se na Wehrmacht. É possível que as perdas da SS, maiores que as da Wehrmacht, influenciassem a sua decisão (ver Karl O. Paetel, "Die SS", em VierteljahresheftfürZeitgeschichte, janeiro de 1954). Mas esse fator, por si só, não poderia ter sido decisivo, como prova o seguinte: já em janeiro de 1940, Hitler havia ordenado o recrutamento de homens da SApara as fileiras da Waffen-SS; os resultados em Koenigsberg, baseados num relatório que foi preservado, foram esses: 1.807 membros da SA foram convocados "para serviço policial" (de SS); desses, 1.094 deixaram de apresentar-se; 631 foram desclassificados; 82 estavam aptos para servir na SS.
[71] WernerBest, op. cit., 1941, p. 99.
[72] Hitler sempre insistiu em que o próprio nome da SA (Sturmabteilung) indicava que ela era apenas "uma secção do movimento" como qualquer outra formação partidária. Ele procurou também desfazer a ilusão do possível valor militar de uma formação paramilitar; e queria que o treinamento fosse realizado segundo as necessidades do partido, e não segundo os princípios de um exército. Op. cit., loc. cit.
[73] O motivo oficial da fundação da SA foi a proteção dos comícios nazistas, enquanto a tarefa original da SS era a proteção dos líderes nazistas.
[74] Hitler, op. cit., loc. cit.
[75] ErnstBayer,.DH>&4, Berlim, 1938. Tradução citada de Naziconspiracy, IV.
[76] A autobiografia de Ròhm mostra claramente quão pouco as suas convicções políticas concordavam com as dos nazistas. Ele desejou um Soldatenstaat (Estado dos soldados) e insistiu na primazia do soldado com relação ao político (op. cit., p. 349). A seguinte passagem revela especialmente a sua incapacidade de compreender o totalitarismo: "Não vejo por que estas três coisas não possam ser compatíveis: a minha lealdade ao príncipe herdeiro da casa de Wittelsbach, herdeiro da coroa da Baviera; minha admiração pelo intendente-geral da Guerra Mundial [isto é, Ludendorff], que hoje representa a consciência do povo alemão; e a minha camaradagem com o arauto e veículo da luta política, Adolf Hitler" (p. 348). O que finalmente custou a Rohm a sua cabeça foi que, após a tomada* do poder pelos nazistas, ele visualizava uma ditadura fascista nos moldes do regime italiano, na qual o partido nazista "quebraria as correntes do partido" e "se tornaria, ele próprio, o Estado", o que era exatamente o que Hitler estava disposto a evitar. Ver o discurso pronunciado por Ernst Rõhm perante o corpo diplomático, em dezembro de 1933, em Berlim e publicado, sem data, sob o título Warum SA? [Por que a SA?]
     Dentro do partido nazista, nunca foi esquecida a possibilidade de uma trama entre a SA e o Reichswehr contra o domínio da SS e da polícia. Até Hans Frank, governador-geral da Polônia ocupada, foi posto sob suspeita em 1942 — isto é, oito anos depois do assassínio de Rõhm (SA) e do general Schleicher (Reichswehr) — por desejar "após a guerra (...) iniciar a luta pela justiça, contra a SS, com a ajuda das Forças Armadas e da SA" (Nazi conspiracy, VI, 747).
[77] Hitler, op. cit., livro II, capítulo xi, afirma que a propaganda procura forçar uma doutrina sobre todo o povo, enquanto a organização incorpora apenas uma proporção relativamente pequena dos seus membros mais militantes. Compare-se também G. Neesse, op. cit.
[78] Hitler,op. cit.Joc. cit.
[79] Hadamovsky, op. cit., p. 28.

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