quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - O avô e o neto / VIII - Mármore contra granito

Victor Hugo - Os Miseráveis

Terceira Parte - Mário

Livro Segundo — O velho burguês

     VIII - Mármore contra granito
     
          Fora junto daquele túmulo que Mário viera da primeira vez que se ausentara de Paris. Era ali que ele ia todas as vezes que Gillenormand dizia: 

— Fica fora de casa.

     O tenente Teodulo ficou absolutamente confundido com aquela aparição inesperada de um sepulcro; experimentou uma sensação desagradável e singular, que era incapaz de analisar e que se compunha do respeito a um túmulo de envolta com respeito a um coronel. Recuou, deixando Mário só no cemitério; mas neste movimento entrou a disciplina. A morte apresentou-se-lhe com dragonas superiores, de sorte que quase lhe fez o cumprimento militar.
     Não sabendo o que escreveria a sua tia, adotou a resolução de lhe não escrever; e não teria provavelmente resultado coisa alguma da descoberta feita por Teodulo sobre os amores de Mário, se, por uma das misteriosas e frequentes combinações do acaso, a cena de Vernon não tivesse quase imediatamente em Paris uma espécie de repercussão.
     Mário voltou de Vernon no terceiro dia, dirigiu-se para casa de seu avô e, fatigado por duas noites passadas na diligência, sentindo a necessidade de reparar a insónia com uma hora de escola de natação, subiu rapidamente ao seu quarto, não se demorou senão o tempo de despir o casaco de jornada e de tirar o cordão preto que trazia ao pescoço, saindo logo para o banho.
     Gillenormand, erguido desde muito cedo como todos os velhos que gozam de saúde, sentira-o entrar e apressara-se em subir, o mais velozmente que lhe permitiam as suas velhas pernas, a escada do último andar, onde era o quarto de Mário, a fim de o abraçar, de lhe fazer algumas perguntas enquanto o abraçava, e de ver se descobria, pouco mais ou menos, de onde ele vinha.
     Porém, o mancebo gastara menos tempo em descer do que o octogenário em subir; de maneira que quando Gillenormand entrou no seu quarto, já ele ali não estava.
     A cama estava intacta e sobre ela, sem a mínima precaução, o casaco de jornada e o cordão preto. 

— Antes assim — disse Gillenormand.

     E um momento depois entrava na sala onde estava sentada sua filha mais velha, trabalhando no seu bordado do tempo da restauração.
     A entrada foi triunfal.
     Gillenormand que levava numa das mãos o casaco de Mário e na outra o cordão, gritava: 

— Vitória! Vamos penetrar o mistério! Vamos saber o fim do fim; vamos tomar conhecimento das libertinagens do nosso sonso. Estamos senhor da novela. Tenho em meu poder o retrato.

     Com efeito, do cordão estava suspensa uma espécie de bolsa escura, muito semelhante a uma medalha.
     O velho pegou na bolsa e contemplou-a por algum tempo antes de a abrir, com o ar de voluptuosidade, de contentamento e de cólera de um pobre esfaimado, vendo passar próximo do nariz um excelente jantar que não fosse para ele.

— É evidentemente um retrato. Disto entendo eu. São coisas que se trazem ternamente sobre o coração. Estúpidos! É alguma abominável labrega, capaz de meter medo! Os rapazes de hoje têm o gosto depravado! 
— Vejamos, meu pai — disse a filha.

     A bolsa abria-se por meio de uma mola. Abriram-na e só encontraram um papelinho cuidadosamente dobrado. 

— Da mesma ao mesmo — disse Gillenormand, rindo. 
— Já sei o que isto é. Uma carta de namoro. 
— Ah! Vamos a ouvir! — disse a tia de Mário.

     E pôs os óculos. Desdobraram o papel e leram ambos:

Para meu filho. 
O imperador fez-me barão no campo de batalha de Waterloo. Visto que a restauração me contesta este título, que eu paguei com o meu sangue, recomendo a meu filho que o tome e use como seu. Escuso de dizer que será digno dele.

     O que pai e filha experimentaram não se pode exprimir. Sentiram-se gelados como pelo hálito de uma caveira, sem ousar trocar uma palavra. Apenas Gillenormand disse em voz baixa e como falando consigo mesmo: 

— A letra é do traga-mouros!

     A filha examinou o papel, virou-o em todos os sen dos e depois tornou a pô-lo na caixinha.
     Neste instante caiu de um bolso do casaco um massozinho quadrilongo, embrulhado em papel azul, que a filha de Gillenormand apanhou e desembrulhou. Eram os cem bilhetes de visita que Mário encomendara ao gravador. Passou um a Gillenormand, que leu: «Mário, barão de Pontmercy».
     O velho chamou por Nicole e e disse-lhe, a rando a caixinha, o casaco e a fita para o meio do chão: 

— Leve daqui estes trapos!

     Passou-se uma boa hora no mais profundo silêncio, durante o qual estiveram ambos sentados com as costas um para o outro, mas pensando provavelmente nas mesmas coisas. Decorrida uma hora, a filha de Gillenormand disse: 

— Bonito!

     Daí a alguns instantes, Mário entrou. Antes mesmo de ter transposto o limiar da porta da sala, avistou o avô com um dos seus bilhetes de visita numa das mãos, o qual, ao vê-lo, exclamou com o seu ar de superioridade burguesa e escarnecedora, que parecia esmagar: 

— Ora esta! Ora esta! Com que então agora és barão?! Muitos parabéns! Que quer isto dizer?

     Mário corou levemente e disse: 

— Quer dizer que sou o filho de meu pai.

     Gillenormand interrompeu o seu riso e disse com dureza: 

— Teu pai sou eu! 
— Meu pai - replicou Mário com os olhos pregados no chão e ar de severidade - era um homem humilde mas heroico, que serviu com glória a república e a França, que foi grande entre os maiores de que fala a história, que viveu um quarto de século nos acampamentos, de dia com o peito exposto à metralha e às balas, de noite debaixo de neve, de lama, de chuva, que tomou duas bandeiras, que foi ferido vinte vezes, que morreu no olvido e no abandono, e que só teve um defeito, amar de mais dois ingratos, a pátria e a mim!

     Era mais do que Gillenormand podia ouvir. Aquela palavra república levantara-se, ou, para melhor dizer, dera um pulo. Cada uma das palavras que Mário acabava de pronunciar tinha produzido no rosto do velho realista o efeito do sopro de um fole sobre um tição ardente. De pardo tornara-se vermelho, de vermelho purpurino e de purpurino cor de fogo. 

— Mário! — exclamou ele. — Rapaz odiento! Eu não sei o que era teu pai, nem o quero saber, disso não sei; mas o que sei é que todos esses de que tu falas não passaram de meia dúzia de miseráveis! Era tudo uma súcia de tratantes, de assassinos, de republicanos, de ladrões! E digo tudo, tudo, sem excetuar um só, um único, ouves, Mário? Tu és tanto barão como este meu chinelo! Tudo uma corja de bandidos que obedeceram a Robespierre e estiveram ao serviço de Bonaparte! Tudo traidores, que traíram, traíram e tornaram a trair o seu rei legítimo! Tudo uma súcia de covardes, que fugiram aos prussianos e aos ingleses em Waterloo! Aí está o que eu sei! Se teu pai era desses, ignoro-o, mas tenho pena e sou um seu criado!

     Por sua vez, era Mário o tição e Gillenormand o fole. Mário sentia percorrer-lhe em todos os membros um tremor involuntário; não sabia o que havia de fazer, ardia-lhe a cabeça. Parecia o sacerdote a quem atiram ao vento todas as suas hóstias, o faquir que vê o seu ídolo cuspido por um homem que passa. Era impossível que diante dele se dissessem impunemente semelhantes coisas. Mas que fazer? Seu pai acabava de ser calcado aos pés e pisado na sua presença, por quem?, por seu avô. Como vingar um, sem ultrajar o outro?
     Era impossível que ele insultasse seu avô e igualmente impossível que ele não desafrontasse seu pai. De uma parte um túmulo sagrado, da outra um homem de cabelos brancos. O mancebo ficou alguns instantes ébrio e vacilante, com todo este turbilhão na cabeça, depois ergueu-a e exclamou com voz atroadora, olhando fixamente para seu avô: 

— Abaixo os Bourbons e esse infame porco de Luís XVIII!

     Luís XVIII tinha morrido há quatro anos, mas o mancebo não se importava com isso.
     O velho, de escarlate que estava, tornou-se subitamente mais branco que os seus cabelos. Voltou-se para um busto do duque de Berry, que estava sobre a pedra do fogão, e saudou-o profundamente com uma espécie de majestade singular. Depois foi duas vezes, lentamente e em silêncio, do fogão para a janela e da janela para o fogão, atravessando a sala e fazendo estalar o soalho, como uma figura de pedra a andar. Da segunda vez curvou-se para sua filha, que assistia a este choque com o pasmo estúpido de uma ovelha, e disse-lhe com um sorriso quase sereno: 

— Um barão como aquele senhor e um burguês como eu não podem habitar debaixo das mesmas telhas!

     E, endireitando-se de repente, lívido, trémulo, terrível, com a fronte iluminada do assustador clarão da cólera, estendeu os braços para Mário e gritou-lhe: 

— Saia!

     Mário, efetivamente, saiu da casa de seu avô.
     No dia seguinte, Gillenormand disse a sua filha: 

— Mande sessenta pistolas de seis em seis meses a esse bebedor de sangue e não me torne mais a falar dele!

     E como tinha um imenso resto de furor a desafogar e não sabia que fazer dele, continuou a tratar sua filha por senhora durante mais de três meses.
     Mário, pela sua parte, tinha saído indignado, tendo-se dado uma circunstância que agravava a sua exasperação. Há sempre dessas pequenas fatalidades que complicam os dramas domésticos. Os ressentimentos aumentam, posto que na essência não cresçam as ofensas. Nicole e, ao levar precipitadamente por ordem do avô «os trapos» de Mário para o quarto dele, deixara cair, sem dar fé, provavelmente nas escadas das águas furtadas, que eram escuras, o medalhão de pele de lixa preta que guardava o papel escrito pelo coronel. Mário, que não pôde tornar a dar nem com o medalhão nem com o papel, ficou convencido que «o senhor Gillenormand», como ele desde então o começou a tratar, queimara «o testamento de seu pai».
     O mancebo sabia de cor as poucas linhas escritas pelo coronel, e, por consequência, ainda se não perdera tudo. Mas o papel, a escrita, essa relíquia sagrada, tudo isso era o seu próprio coração. Que lhe haviam feito dele?
     Mário havia saído sem dizer para onde ia, porque nem ele mesmo o sabia, com trinta francos, o seu relógio e algum traje velho num saco de viagem. Metera-se num cabriole que alugara à hora e dirigira-se à aventura para o bairro latino.
     O que seria de Mário?!

continua na página 486...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Mário, Livro Terceiro - VIII - Mármore contra granito
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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