Elias Canetti
AS ENTRANHAS DO PODER
Sobre a Paciência das Mãos
Todas as atividades impetuosas das mãos são vistas como arcaicas.
Não é apenas do agarrar com propósito hostil que se esperam
subtaneidade e crueldade. São esperadas também, e involuntariamente,
de procedimentos que somente se desenvolveram mais tarde, como o
golpear, o espetar, o empurrar, o lançar e o atirar, por mais que estes se
tenham ramificado e tornado tecnologicamente mais complexos. É
possível que sua velocidade e precisão tenham aumentado, mas tanto o
seu sentido quanto o seu propósito permanecem ainda os antigos. Para
o caçador e o guerreiro, tais atividades tornaram-se importantes; mas
elas nada acrescentaram à verdadeira glória da mão humana.
Sua perfeição, a mão a atingiu por outros caminhos — mais
exatamente, em toda parte onde renunciou à violência e à presa. A
verdadeira grandeza das mãos reside em sua paciência. Os atos tranquilos e
vagarosos da mão criaram o mundo no qual gostaríamos de viver. O
oleiro, cujas mãos são capazes de dar forma ao barro, figura como
criador bem no começo da Bíblia.
Mas como é que as mãos tornaram-se pacientes? Como adquiriram a
sensibilidade de seus dedos? Uma de suas primeiras atividades de que se
tem notícia, e que os macacos adoram, é o coçar a pele dos amigos.
Pensa-se que estão procurando alguma coisa, e como, sem dúvida, eles
às vezes encontram algo, atribuiu-se a essa atividade um propósito assaz
estreito, nada mais do que útil. Na realidade, o que lhes importa é
sobretudo a sensação agradável que os pelos na pele proporcionam a
cada um dos dedos. Esses exercícios com os dedos são os mais antigos
que se conhecem. Eles é que zeram dos dedos o no instrumento que
hoje admiramos.
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Leia também:
Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Sobre a Paciência das Mãos
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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