Elias Canetti
AS ENTRANHAS DO PODER
Dos Exercícios dos Macacos com os Dedos
O cuidadoso e mútuo exame da pele chama a atenção de todos
quantos observam os macacos. O apalpamento e a contemplação
precisos de cada pelo causam a impressão de que eles estão procurando
por insetos daninhos. A postura dos animais lembra os homens à
procura de pulgas; frequentemente, levam os dedos cuidadosamente à
boca — ou seja, encontraram alguma coisa. Que tal ocorra com
tamanha frequência e abundância, parece comprovar a necessidade de
uma tal busca. Essa, aliás, foi sempre a ideia popular que se fez de sua
atitude. Somente em tempos mais recentes é que o fenômeno foi
interpretado com maior exatidão pelos zoólogos.
Uma exposição e estudo coerentes desse costume dos macacos podem
ser encontrados na obra de Zuckerman sobre a Vida social dos macacos e
antropoides. Tal estudo é tão instrutivo que, em tradução, apresento-o a
seguir:
Independentemente do que digam os sociólogos, catar pulgas é a forma mais fundamental e singular de convívio social entre os resos. Os macacos e, em menor medida, os antropoides passam uma boa parte do dia cuidando um do outro. Um animal examinará cuidadosamente com os dedos a pele de seu companheiro e comerá muitos dos variados insetos que encontra. Ele leva seu achado à boca, seja com a mão, seja mordendo diretamente um pequeno tufo de pelos, após havê-los lambido. Tal procedimento exige movimentos bastante bem coordenados dos dedos, aliados a uma exata acomodação e convergência dos olhos. Costumeiramente, interpreta-se de maneira errônea esse comportamento como uma tentativa de remover piolhos. Na verdade, é raro encontrar-se insetos daninhos nos macacos, tanto nos que vivem em cativeiro quanto nos que vivem em liberdade. Os resultados dessa busca são, como habitualmente se veri ca, pequenas escamações da pele, partículas, secreções, espinhos e outros corpos estranhos. Se não estão ocupados com qualquer outra coisa, os macacos reagem imediatamente à presença da pele com essa “busca”. Um macaco reage ao estímulo do pelo logo que nasce, e esse estímulo permanece poderoso e eficaz ao longo de todas as fases de seu crescimento. Caso lhe falte um companheiro, o macaco sadio empreenderá aquela busca em sua própria pele. Num grupo, é possível que dois ou, por vezes, até mesmo três macacos ponham-se a examinar um único companheiro. Em geral, aquele que é objeto da limpeza comporta-se passivamente, excetuando-se aí os movimentos que visam facilitar a busca dos companheiros. Às vezes, porém, pode ele próprio ocupar-se concomitantemente de um outro animal, examinando-lhe a pele. Os macacos não se restringem nesses seus cuidados aos companheiros de espécie. Qualquer objeto peludo, animado ou inanimado, pode estimulá-los a dar início a suas investigações. O cabelo de um amigo humano, põem-se a examiná-lo de imediato. Tal procedimento parece possuir um significado sexual, não apenas em razão da suave estimulação de numerosos nervos através da pele, mas também porque, às vezes, fazem-se acompanhar de uma atividade sexual direta. Por esse motivo, e em função de sua frequência, talvez seja lícito contemplar tais reações investigativas e o estímulo dos pelos como fatores que servem à coesão do grupo social entre os primatas inferiores.
Tendo-se lido a exposição do próprio Zuckerman, nada poderia ser
mais surpreendente do que a interpretação sexual que o autor dá a esse
fenômeno. Ele menciona o fato de vários macacos ocuparem-se
concomitantemente da pele de um terceiro; sublinha a importância de
toda sorte de peles para eles. Em passagens posteriores do livro,
constrói ainda uma oposição entre a busca que efetuam na pele e
fenômenos sexuais. Diz, assim, que, em épocas de tranquilidade sexual,
quando demonstram pouco interesse dessa natureza, os animais, ainda
assim, aproximam-se da grade, afim de serem coçados. Sobre o
significado precoce da pele para o filhote de macaco, Zuckerman tem
também muito a dizer.
A primeiríssima experiência sensível dos macacos seria precisamente a
dos pelos. Logo após o nascimento, o filhote é trazido pela mãe até o
peito; seus dedos agarram e seguram a pele da mãe. O animal procura a
mama até encontrá-la; a mãe não o ajuda nisso.
Durante o primeiro mês, ele vive exclusivamente de leite e é carregado pela mãe por toda parte. Se ela está sentada, o filhote mantém-se bem junto dela, enganchando os pés nos pelos da barriga da mãe. As mãos, ele as enterra na pele do peito. Quando a mãe caminha, o filhote permanece dependurado nela dessa mesma maneira, entrelaçado sob seu corpo, por assim dizer. Normalmente, ele próprio se segura firme, sem precisar de auxílio; por vezes, contudo, a mãe o envolve com um braço, saltando, então, sobre três “pernas”. Quando está sentada, ela às vezes abraça o filhote com ambos os braços. Este manifesta um forte interesse pela pele. Ele coça a pele da mãe e, depois de uma semana, talvez esteja já coçando o próprio corpo. Observei um macaquinho, nascido havia uma semana, examinando com movimentos vagos da mão a pele de seu pai, que se encontrava sentado bem ao lado da mãe. Às vezes, irritada com a maneira pela qual o filhote segura-lhe a pele, a mãe empurra lhe as mãos e os pés para longe.
O comportamento da mãe a amamentar não se altera quando o filhote morre. Ela o mantém colado ao peito e o carrega por toda parte
em seus braços.
A princípio, ela não o deita no chão, mas segue examinando lhe a pele, da mesma forma como fazia quando estava vivo. Examina lhe a boca e os olhos, o nariz e as orelhas. Em alguns dias, nota-se, então, uma mudança em seu comportamento. Um corpo, agora já levemente em processo de decomposição, pende-lhe do braço. Somente quando se movimenta é que ela o aperta ainda contra o peito. Embora siga sempre cuidando da pele e mordendo-a, a mãe agora deposita o filhote no chão com maior frequência. Sua decomposição avança, a mumificação tem início, mas a mãe prossegue investigando-lhe a pele. O corpo ressequido começa então a desagregar-se; nota-se que lhe falta uma perna ou um braço; logo, o filhote transforma-se em não mais que um pedaço ressecado de pele. Com suas mordidas, a mãe arranca-lhe pedaços com maior frequência; não se sabe se ela os engole. Por fim, ela própria abandona o que sobrou dos restos ressequidos.
Os macacos gostam de reter consigo muitos objetos de pele ou penas.
Uma fêmea de babuíno de um ano de idade, observada por Zuckerman,
pegou um gatinho, matou-o e manteve-o em seus braços durante o dia
inteiro, examinando-lhe a pele e reagindo violentamente quando, à
noite, tiraram-no dela. No jardim zoológico de Londres, podem-se às
vezes observar macacos examinando as penas dos pardais que mataram.
A literatura sobre o assunto registra também o caso de uma ratazana
morta que recebeu de um macaco os mesmos cuidados do filhote morto
mencionado acima.
De tudo quanto expôs, Zuckerman conclui ser necessário diferenciar
três fatores no comportamento materno. Os dois primeiros seriam de
importância social: por um lado, a força de atração de um objeto
pequeno e peludo e, por outro, a forte atração que a pele da mãe exerce
sobre o filhote. O terceiro fator seria o reflexo de sucção do animal
jovem, o qual, com sua atividade, aliviaria a tensão nos peitos da mãe.
A reação à pele seria, portanto, um fator determinante no
comportamento social em si. Poder-se-ia depreender-lhe a importância
pelo fato de, após a morte da mãe, o macaco jovem seguir agarrando-se
a sua pele. Não lhe importaria, porém, o corpo específico da mãe: o
cadáver de qualquer outro macaco morto ao qual fosse atrelado o
acalmaria da mesma maneira. “Pode-se, talvez, deduzir a natureza
fundamental da reação à pele a partir de seu caráter rigorosamente
delimitado e da multiplicidade de situações capazes de provocá-la.
Penas, ratos, gatos podem, todos eles, servir igualmente de estímulo. É
bastante provável que a origem do fenômeno social do ‘cuidado’ e da
‘busca’ se deva a uma reação inata à pele, e que essa reação permaneça
sendo sempre um dos laços fundamentais a unir os macacos.”
Após essas abundantes citações de seu livro, não restará dúvida de que
o próprio Zuckerman não leva a sério uma interpretação
especificamente sexual para os cuidados da pele entre os macacos. O
autor tem claro para si que, independentemente das circunstâncias de
vida, a pele, enquanto tal, exerce uma atração particular sobre os
macacos. O prazer que lhes proporciona ocupar-se dos pelos há de ser
um prazer de natureza bastante peculiar; eles o buscam por toda parte,
junto aos vivos e aos mortos, a seus companheiros de espécie e a
estranhos. Não importa o tamanho do animal a ser cuidado. Nesse
sentido, o filhote significa tanto para a mãe quanto esta para o filhote.
Casais e amigos entregam-se igualmente a essa atividade. E muitos
animais podem dedicar-se concomitantemente à pele de um único.
Tal prazer é um prazer dos dedos. Os macacos jamais se fartam dos
pelos; podem passar horas a fio deixando que deslizem por seus dedos.
Trata-se aqui dos mesmos animais cujas vivacidade e mobilidade
tornaram-se proverbiais; segundo uma antiga tradição chinesa, os
macacos não possuem estômago e digerem seu alimento saltando de um
lado para o outro. Tanto mais notável faz-se o contraste com a infinita
paciência que demonstram nessa sua espécie de cuidado. Nele, os dedos
tornam-se cada vez mais sensíveis; os muitos pelos que sentem ao
mesmo tempo desenvolvem neles uma sensibilidade particular do tato,
a qual difere essencialmente das sensações mais grosseiras do pegar e do
agarrar. Não se pode evitar de pensar aqui em todas as ocupações
posteriores do homem envolvendo a delicadeza e a paciência dos dedos.
Como todos os macacos, os ainda desconhecidos antepassados do
homem têm atrás de si um longo período de tais exercícios digitais.
Sem eles, nossa mão não teria chegado tão longe. É possível que
diversos fatores tenham contribuído para a origem desse cuidado —
sejam eles a busca, de fato, por insetos ou as primeiras experiências do filhote de macaco junto ao peito peludo da mãe. O fenômeno em si,
porém, como se pode hoje observá-lo em seu pleno desenvolvimento
em todos os macacos, possui já sua unidade e seu sentido. Sem ele,
jamais teríamos aprendido a moldar, a costurar ou a acariciar. É com ele
que tem início a verdadeira vida própria da mão. Sem a contemplação
das figuras que os dedos constroem, e que tinham necessariamente de
estampar-se pouco a pouco na mente daquele que busca, provavelmente
jamais teríamos chegado aos signos para as coisas e, assim, tampouco à
linguagem.
continua página 326...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - As Entranhas do Poder: Dos Exercícios dos Macacos com os Dedos
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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