PRIMEIRA PARTE
O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
19. O Arco-íris e a Rota de Retorno à Guiné
Em 1518, o licenciado Alonso Zuazo, da Dominicana,
escrevia para Carlos V: “É ocioso o temor de que os negros
venham a se sublevar; viúvas há nas ilhas de Portugal mui
sossegadas com seus 800 escravos; tudo depende de como
são governados. Ao vir encontrei alguns negros ladinos,
outros fugidos nos montes; uns eu açoitei, de outros cortei
as orelhas; e já não ouvi mais queixas”. Quatro anos depois
eclodiu a primeira sublevação de escravos na América: os
escravos de Diego Colombo, filho do descobridor, foram os
primeiros a se insurgir, e acabaram enforcados nos
caminhos do engenho
[1]. Sucederam-se outras rebeliões
em São Domingos e logo em todas as ilhas açucareiras do
Caribe. Um par de séculos depois do susto de Diego
Colombo, no outro extremo da mesma ilha os escravos
quilombolas fugiam para as regiões mais elevadas do Haiti
e, nas montanhas, reconstituíam a vida africana: as culturas
de alimentos, a adoração dos deuses, os costumes.
O arco-íris marca ainda, na atualidade, a rota de retorno
à Guiné para o povo do Haiti. Num barco de vela branca...
Na Guiana holandesa, na região do rio Courantyne,
sobrevivem há três séculos as comunidades dos djukas,
descendentes de escravos que fugiram pelas matas do
Suriname. Nessas aldeias remanescem “santuários similares
aos da Guiné, e ocorrem danças e cerimônias que poderiam
acontecer em Gana. É empregada a linguagem dos
tambores, muito parecida com os tambores de Ashanti
[2]. A
primeira grande rebelião de escravos da Guiana ocorreu 100
anos depois da fuga dos djukas: os holandeses recuperaram
as plantações e queimaram em fogo lento os líderes dos
escravos. Mas algum tempo antes do êxodo dos djukas, os
escravos quilombolas do Brasil organizaram o reino negro
dos Palmares, no Nordeste brasileiro, e vitoriosamente
resistiram, durante todo o século XVII, ao assédio de
dezenas de expedições militares que holandeses e
portugueses enviaram, uma atrás da outra, para abatê-los.
As investidas de milhares de soldados nada podiam contra
as táticas guerrilheiras que, até 1693, tornavam invencível o
vasto refúgio. O reino independente de Palmares - convocatória à rebelião, bandeira da liberdade - estruturara-se como um estado, “à semelhança de muitos
que existiam na África no século XVII”
[3]. Estendia-se desde
as cercanias do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco,
até a região ao norte do rio São Francisco, em Alagoas:
equivalia a uma terça parte do território de Portugal e
estava rodeado por um anel de matas selvagens. O chefe
máximo era eleito entre os mais hábeis e sagazes: reinava o
homem “de maior prestígio e felicidade na guerra ou no
comando”
[4]. Em plena época das plantações açucareiras
onipotentes, Palmares era o único lugar do Brasil em que se
desenvolvia a policultura. Orientados pela experiência
adquirida por eles mesmos ou por seus antepassados nas
savanas ou em selvas tropicais da África, os negros
cultivavam milho, batata, feijões, mandioca, bananas e
outros alimentos. Não em vão, a destruição das culturas era
o principal objetivo das tropas coloniais empregadas na
recaptura dos homens que, após a travessia do mar com
correntes nos pés, tinham desertado das plantações.
A abundância de alimentos em Palmares contrastava
com as penúrias que, em plena prosperidade, padeciam as
zonas açucareiras do litoral. Os escravos que tinham
conquistado a liberdade a defendiam com habilidade e
coragem porque compartilhavam seus frutos: a propriedade
da terra era comunitária, e no estado negro o dinheiro não
circulava. “Não figura na história universal nenhuma
rebelião de escravos tão prolongada como a de Palmares. A
de Espártaco, que comoveu o sistema escravista mais
importante da antiguidade, durou dezoito meses”.
[5] Para a
batalha final, a coroa portuguesa mobilizou o maior exército
conhecido até a muito posterior independência do Brasil.
Não menos de 10 mil pessoas defenderam a última
fortaleza de Palmares; os sobreviventes foram degolados,
lançados em precipícios ou vendidos a mercadores do Rio
de Janeiro e Buenos Aires. Dois anos depois. o chefe Zumbi,
que os escravos consideravam imortal, não conseguiu
escapar de uma traição. Encurralado na floresta, foi
decapitado. Mas as rebeliões continuaram. Não passaria
muito tempo para que o capitão Bartolomeu Bueno do
Prado regressasse do rio das Mortes com os troféus de sua
vitória contra uma nova sublevação de escravos. Trazia
3.900 pares de orelhas nos alforjes de seus cavalos.
Também em Cuba se sucederam as revoltas. Alguns
escravos se suicidavam em grupo; ludibriavam o amo “com
sua greve eterna”, como diz Fernando Ortiz. Acreditavam
que assim, carne e espírito, ressuscitariam na África. Os
amos mutilavam os cadáveres, para que ressuscitassem
castrados, mancos ou decapitados, e deste modo
conseguiam que muitos renunciassem à ideia de matar-se.
Por volta de 1870, segundo a versão de um escravo que, em
sua juventude, fugiu para os montes de Las Villas, os negros
já não se matavam em Cuba. Através de um cinturão
mágico, “iam embora voando, voavam pelo céu e pegavam
o rumo de sua terra”, ou se perdiam na serra, porque
“qualquer um se cansaria de viver. Os que se acostumavam
tinham o espírito frouxo. A vida na montanha era mais
saudável”
[6].
Os deuses africanos continuavam vivos entre os
escravos da América, como vivos continuavam, alimentados
pela saudade, os mitos e as lendas das pátrias perdidas.
Parece evidente que assim os negros expressavam, em suas
cerimônias, em suas danças, em seus exorcismos, a
necessidade de afirmação de uma identidade cultural que o
cristianismo negava. No entanto, também terá influído o
fato de que a Igreja estava associada ao sistema de
exploração que os vitimava. No começo do século XVIII,
enquanto nas ilhas inglesas os escravos condenados por
crimes morriam esmagados nos tambores dos engenhos de
açúcar, e nas colônias francesas eram queimados vivos ou
submetidos ao suplício da roda, o jesuíta Antonil formulava
doces recomendações aos donos de engenho no Brasil para
que evitassem excessos semelhantes: “Não se deve
permitir que os administradores deem pontapés, sobretudo
na barriga das mulheres grávidas, e pauladas nos escravos,
porque na cólera não se medem os golpes e isto pode ferir a
cabeça de um escravo eficiente, que vale muito dinheiro, e
perdê-lo”
[7]. Em Cuba, os capatazes descarregavam seus
látegos de couro ou cânhamo nas costas das escravas
grávidas que tinham cometido faltas, mas não sem antes
deitá-las de boca para baixo, com a barriga enfiada num
buraco, para que não fosse danificada a “peça” nova em
gestação. Os sacerdotes, que recebiam como dízimo 5 por
cento da produção do açúcar, davam sua absolvição cristã:
o maioral castigava como Jesus Cristo aos pecadores. O
missionário apostólico Juan Perpiñá y Pibernat publicava
seus sermões para os negros: “Pobrezinhos! Não vos
assusteis porque são muitas as penalidades que tereis de
sofrer como escravos. Escravo pode ser vosso corpo, mas
libertas tendes a alma para voar um dia até a feliz mansão
dos escolhidos”
[8].
O deus dos párias nem sempre é o mesmo deus do
sistema que os converte em párias. Ainda que a religião
católica, na informação oficial, compreenda 94 por cento da
população do Brasil, na verdade a população negra
conserva vivas suas tradições africanas e perpetua sua fé
religiosa, frequentemente camuflada atrás das figuras
sagradas do cristianismo
[9]. Os cultos de raiz africana têm
ampla projeção entre os oprimidos, independentemente da
cor de sua pele. Outro tanto ocorre nas Antilhas. As
divindades do vodu do Haiti, do bembé de Cuba e da
umbanda e quimbanda do Brasil são mais ou menos as
mesmas, a despeito da maior ou menor transfiguração que
tenham sofrido os ritos e os deuses originais, ao se
nacionalizarem em terras da América. No Caribe e na Bahia
se entoam os cânticos cerimoniais em nagô, ioruba, congo e
outras línguas africanas. Nos subúrbios das grandes cidades
do sul do Brasil predomina a língua portuguesa, mas
brotaram da costa oeste da África as divindades do bem e
do mal que atravessaram os séculos para transformar-se em
fantasmas vingadores dos marginalizados, a pobre gente
humilhada que clama nas favelas do Rio de Janeiro: “Força
baiana/força africana/força divina/vem cá./Vem nos ajudar”.
continua na página 141...
____________________
____________________
Febre do Ouro, Febre da Prata
O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
Primeira Parte: O Arco-íris e a Rota de Retorno à Guiné(7)
__________________
[1] ORTIZ, op. cit.
[2] RENO, Philip. “El drama de la Guayaba británica. Un pueblo desde la
esclavitud a la lucha por el socialismo.” Monthly Review (1718). Buenos Aires,
janeiro-fevereiro 1965.
[3] CARNEIRO, Edison. O quilombo dos Palmares. Rio de Janeiro, 1966.
[4] RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro, 1932.
[5] FREITAS, Décio. A guerra dos escravos, inédito.
[6] Esteban Montejo tinha mais de um século de idade quando contou sua
história a Miguel Barnet. Biografía de un cimarrón. Buenos Aires, 1968.
[7] SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil (1500-1820). São Paulo,
1962.
[8] FRAGINALS, op. cit. Numa quinta-feira santa, o conde de Casa Bayona
decidiu humilhar-se perante seus escravos. Inflamado de fervor cristão, lavou os
pés de doze negros e os sentou à mesa para comer em sua companhia. Foi a
última cena propriamente dita. No dia seguinte, os escravos se rebelaram e
incendiaram o engenho. Suas cabeças foram cravadas sobre doze lanças, no
centro do terreno.
[9] GALEANO, Eduardo. “Los dioses y los diablos en las favelas de Río.” Amaru,
n.10. Lima, junho de 1969.
Nenhum comentário:
Postar um comentário