sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: O Arco-íris e a Rota de Retorno à Guiné(7)

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas

     19. O Arco-íris e a Rota de Retorno à Guiné
          Em 1518, o licenciado Alonso Zuazo, da Dominicana, escrevia para Carlos V: “É ocioso o temor de que os negros venham a se sublevar; viúvas há nas ilhas de Portugal mui sossegadas com seus 800 escravos; tudo depende de como são governados. Ao vir encontrei alguns negros ladinos, outros fugidos nos montes; uns eu açoitei, de outros cortei as orelhas; e já não ouvi mais queixas”. Quatro anos depois eclodiu a primeira sublevação de escravos na América: os escravos de Diego Colombo, filho do descobridor, foram os primeiros a se insurgir, e acabaram enforcados nos caminhos do engenho [1]. Sucederam-se outras rebeliões em São Domingos e logo em todas as ilhas açucareiras do Caribe. Um par de séculos depois do susto de Diego Colombo, no outro extremo da mesma ilha os escravos quilombolas fugiam para as regiões mais elevadas do Haiti e, nas montanhas, reconstituíam a vida africana: as culturas de alimentos, a adoração dos deuses, os costumes.
     O arco-íris marca ainda, na atualidade, a rota de retorno à Guiné para o povo do Haiti. Num barco de vela branca... Na Guiana holandesa, na região do rio Courantyne, sobrevivem há três séculos as comunidades dos djukas, descendentes de escravos que fugiram pelas matas do Suriname. Nessas aldeias remanescem “santuários similares aos da Guiné, e ocorrem danças e cerimônias que poderiam acontecer em Gana. É empregada a linguagem dos tambores, muito parecida com os tambores de Ashanti [2]. A primeira grande rebelião de escravos da Guiana ocorreu 100 anos depois da fuga dos djukas: os holandeses recuperaram as plantações e queimaram em fogo lento os líderes dos escravos. Mas algum tempo antes do êxodo dos djukas, os escravos quilombolas do Brasil organizaram o reino negro dos Palmares, no Nordeste brasileiro, e vitoriosamente resistiram, durante todo o século XVII, ao assédio de dezenas de expedições militares que holandeses e portugueses enviaram, uma atrás da outra, para abatê-los. As investidas de milhares de soldados nada podiam contra as táticas guerrilheiras que, até 1693, tornavam invencível o vasto refúgio. O reino independente de Palmares - convocatória à rebelião, bandeira da liberdade - estruturara-se como um estado, “à semelhança de muitos que existiam na África no século XVII” [3]. Estendia-se desde as cercanias do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, até a região ao norte do rio São Francisco, em Alagoas: equivalia a uma terça parte do território de Portugal e estava rodeado por um anel de matas selvagens. O chefe máximo era eleito entre os mais hábeis e sagazes: reinava o homem “de maior prestígio e felicidade na guerra ou no comando” [4]. Em plena época das plantações açucareiras onipotentes, Palmares era o único lugar do Brasil em que se desenvolvia a policultura. Orientados pela experiência adquirida por eles mesmos ou por seus antepassados nas savanas ou em selvas tropicais da África, os negros cultivavam milho, batata, feijões, mandioca, bananas e outros alimentos. Não em vão, a destruição das culturas era o principal objetivo das tropas coloniais empregadas na recaptura dos homens que, após a travessia do mar com correntes nos pés, tinham desertado das plantações.
     A abundância de alimentos em Palmares contrastava com as penúrias que, em plena prosperidade, padeciam as zonas açucareiras do litoral. Os escravos que tinham conquistado a liberdade a defendiam com habilidade e coragem porque compartilhavam seus frutos: a propriedade da terra era comunitária, e no estado negro o dinheiro não circulava. “Não figura na história universal nenhuma rebelião de escravos tão prolongada como a de Palmares. A de Espártaco, que comoveu o sistema escravista mais importante da antiguidade, durou dezoito meses”. [5] Para a batalha final, a coroa portuguesa mobilizou o maior exército conhecido até a muito posterior independência do Brasil. Não menos de 10 mil pessoas defenderam a última fortaleza de Palmares; os sobreviventes foram degolados, lançados em precipícios ou vendidos a mercadores do Rio de Janeiro e Buenos Aires. Dois anos depois. o chefe Zumbi, que os escravos consideravam imortal, não conseguiu escapar de uma traição. Encurralado na floresta, foi decapitado. Mas as rebeliões continuaram. Não passaria muito tempo para que o capitão Bartolomeu Bueno do Prado regressasse do rio das Mortes com os troféus de sua vitória contra uma nova sublevação de escravos. Trazia 3.900 pares de orelhas nos alforjes de seus cavalos.
     Também em Cuba se sucederam as revoltas. Alguns escravos se suicidavam em grupo; ludibriavam o amo “com sua greve eterna”, como diz Fernando Ortiz. Acreditavam que assim, carne e espírito, ressuscitariam na África. Os amos mutilavam os cadáveres, para que ressuscitassem castrados, mancos ou decapitados, e deste modo conseguiam que muitos renunciassem à ideia de matar-se. Por volta de 1870, segundo a versão de um escravo que, em sua juventude, fugiu para os montes de Las Villas, os negros já não se matavam em Cuba. Através de um cinturão mágico, “iam embora voando, voavam pelo céu e pegavam o rumo de sua terra”, ou se perdiam na serra, porque “qualquer um se cansaria de viver. Os que se acostumavam tinham o espírito frouxo. A vida na montanha era mais saudável” [6].
     Os deuses africanos continuavam vivos entre os escravos da América, como vivos continuavam, alimentados pela saudade, os mitos e as lendas das pátrias perdidas. Parece evidente que assim os negros expressavam, em suas cerimônias, em suas danças, em seus exorcismos, a necessidade de afirmação de uma identidade cultural que o cristianismo negava. No entanto, também terá influído o fato de que a Igreja estava associada ao sistema de exploração que os vitimava. No começo do século XVIII, enquanto nas ilhas inglesas os escravos condenados por crimes morriam esmagados nos tambores dos engenhos de açúcar, e nas colônias francesas eram queimados vivos ou submetidos ao suplício da roda, o jesuíta Antonil formulava doces recomendações aos donos de engenho no Brasil para que evitassem excessos semelhantes: “Não se deve permitir que os administradores deem pontapés, sobretudo na barriga das mulheres grávidas, e pauladas nos escravos, porque na cólera não se medem os golpes e isto pode ferir a cabeça de um escravo eficiente, que vale muito dinheiro, e perdê-lo” [7]. Em Cuba, os capatazes descarregavam seus látegos de couro ou cânhamo nas costas das escravas grávidas que tinham cometido faltas, mas não sem antes deitá-las de boca para baixo, com a barriga enfiada num buraco, para que não fosse danificada a “peça” nova em gestação. Os sacerdotes, que recebiam como dízimo 5 por cento da produção do açúcar, davam sua absolvição cristã: o maioral castigava como Jesus Cristo aos pecadores. O missionário apostólico Juan Perpiñá y Pibernat publicava seus sermões para os negros: “Pobrezinhos! Não vos assusteis porque são muitas as penalidades que tereis de sofrer como escravos. Escravo pode ser vosso corpo, mas libertas tendes a alma para voar um dia até a feliz mansão dos escolhidos” [8].
     O deus dos párias nem sempre é o mesmo deus do sistema que os converte em párias. Ainda que a religião católica, na informação oficial, compreenda 94 por cento da população do Brasil, na verdade a população negra conserva vivas suas tradições africanas e perpetua sua fé religiosa, frequentemente camuflada atrás das figuras sagradas do cristianismo [9]. Os cultos de raiz africana têm ampla projeção entre os oprimidos, independentemente da cor de sua pele. Outro tanto ocorre nas Antilhas. As divindades do vodu do Haiti, do bembé de Cuba e da umbanda e quimbanda do Brasil são mais ou menos as mesmas, a despeito da maior ou menor transfiguração que tenham sofrido os ritos e os deuses originais, ao se nacionalizarem em terras da América. No Caribe e na Bahia se entoam os cânticos cerimoniais em nagô, ioruba, congo e outras línguas africanas. Nos subúrbios das grandes cidades do sul do Brasil predomina a língua portuguesa, mas brotaram da costa oeste da África as divindades do bem e do mal que atravessaram os séculos para transformar-se em fantasmas vingadores dos marginalizados, a pobre gente humilhada que clama nas favelas do Rio de Janeiro: “Força baiana/força africana/força divina/vem cá./Vem nos ajudar”.

O Rei Açúcar e Outros Monarcas Agrícolas
Primeira Parte: O Arco-íris e a Rota de Retorno à Guiné(7)
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[1] ORTIZ, op. cit.
[2] RENO, Philip. “El drama de la Guayaba británica. Un pueblo desde la esclavitud a la lucha por el socialismo.” Monthly Review (1718). Buenos Aires, janeiro-fevereiro 1965.
[3] CARNEIRO, Edison. O quilombo dos Palmares. Rio de Janeiro, 1966.
[4] RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro, 1932.
[5] FREITAS, Décio. A guerra dos escravos, inédito.
[6] Esteban Montejo tinha mais de um século de idade quando contou sua história a Miguel Barnet. Biografía de un cimarrón. Buenos Aires, 1968.
[7] SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil (1500-1820). São Paulo, 1962.
[8] FRAGINALS, op. cit. Numa quinta-feira santa, o conde de Casa Bayona decidiu humilhar-se perante seus escravos. Inflamado de fervor cristão, lavou os pés de doze negros e os sentou à mesa para comer em sua companhia. Foi a última cena propriamente dita. No dia seguinte, os escravos se rebelaram e incendiaram o engenho. Suas cabeças foram cravadas sobre doze lanças, no centro do terreno.
[9] GALEANO, Eduardo. “Los dioses y los diablos en las favelas de Río.” Amaru, n.10. Lima, junho de 1969.

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