sábado, 20 de dezembro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção IX

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção IX

DA RAZÃO DOS ANIMAIS
 
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     Todos os nossos raciocínios a propósito das questões de fato se fundam numa espécie de analogia que nos faz esperar de uma causa os mesmo eventos que temos visto resultar de causas semelhantes. Se as causas são inteiramente semelhantes, a analogia é perfeita e a inferência, tirada delas, é considerada segura e conclusiva; nenhum homem que vê um pedaço de ferro jamais duvidará que tem peso e coesão entre as partes, tal como tem ocorrido em todos os outros casos que caíram sob sua observação. Mas, se os objetos não possuem uma semelhança tão rigorosa, a analogia é menos perfeita e a inferência é menos conclusiva, embora conserve alguma força em proporção ao grau de semelhança. As observações anatômicas feitas sobre um ser animado estendem-se, por esta espécie de raciocínio, a todos os seres animados. Certamente, quando, por exemplo, se prova claramente que a circulação do sangue se processa numa criatura, como a rã ou um peixe, forma-se uma forte presunção de que o mesmo princípio se encontra em todas as outras criaturas. Estas observações analógicas podem ser levadas mais longe, até mesmo à ciência de que atualmente estamos tratando; e qualquer teoria que nos sirva para explicar as operações do entendimento, ou a origem e a conexão das paixões humanas, adquirirá maior autoridade se verificarmos que esta mesma teoria é necessária para explicar o mesmo fenômeno em todos os outros seres animados. Submeteremos a esta prova a hipótese que na exposição precedente nos permitiu tentar explicar todos os raciocínios experimentais; esperamos que este novo enfoque servirá para confirmar todas as observações anteriores.
     Em primeiro lugar, parece evidente que os animais, como os homens, apreendem muitas coisas da experiência e inferem que os mesmos eventos resultarão sempre das mesmas causas. Mediante este princípio, familiarizam-se com as propriedades mais evidentes dos objetos externos, e gradualmente, a partir de seu nascimento, acumulam conhecimentos sobre a natureza do fogo, da água, da terra, das pedras, das altitudes, das profundidades etc., e daquilo que resulta de sua ação. Aqui se distingue claramente a ignorância e a inexperiência do jovem frente à astúcia e à sagacidade dos velhos que têm aprendido, por uma longa observação, a evitar o que os fere e a perseguir o que lhes proporciona bem-estar e prazer. Um cavalo habituado ao campo familiariza-se com a altura apropriada que pode saltar e nunca tentará superar aquela que ultrapassa suas forças e habilidades. Um velho galgo confiará a parte mais fatigante da caça aos mais jovens e se colocará em posição apropriada para abocar a lebre quando esta de repente se voltar; as conjeturas que faz neste caso não têm outro fundamento senão sua observação e experiência.  
     Isto é ainda mais evidente se se considerarem os efeitos da adestração e da educação sobre os animais, aos quais mediante a aplicação adequada de castigos e recompensas, se pode ensinar a efetuar qualquer classe de atividade, inclusive as mais contrárias aos seus instintos e inclinações naturais. Não é a experiência que faz com que um cão tema a dor, quando o ameaçais e levantais o látego para enxotá-lo? Não é também a experiência que o faz responder por seu nome e a inferir, de um som arbitrário, que o designais e não a alguns de seus companheiros, e que quereis chamá-lo, quando emitis este som de uma certa maneira, com certa tonalidade e inflexão?
     Em todos estes casos, podemos constatar que o animal infere um fato que ultrapassa aquilo que impressiona imediatamente seus sentidos, e que esta experiência está completamente fundada na experiência passada, visto que a criatura espera do objeto presente os mesmos resultados que, em sua observação, sempre tem visto derivar de objetos semelhantes.
     Em segundo lugar, é impossível que esta inferência do animal possa fundar-se em algum processo de argumento ou do raciocínio pelo qual conclui que eventos iguais devem seguir a objetos iguais, e que a ordem natural será sempre regular em suas operações. Porque, se na realidade há alguns argumentos desta natureza, são certamente demasiado abstrusos para a observação de entendimentos tão imperfeitos, já que, para descobri-los e observá-los, se necessita do máximo cuidado, atenção e temperamento de um filósofo. Portanto, os animais não são guiados pelo raciocínio nestas inferências; nem as crianças, nem a generalidade dos homens em suas ações e conclusões ordinárias; nem os próprios filósofos, que, em todos os momentos ativos de sua vida, são, em sua maioria, parecidos com o vulgo e deixam-se governar pelas mesmas máximas. A natureza deve ter fornecido alguns outros princípios de aplicação e de uso mais rápido e mais geral, visto que uma operação de tão grande importância na vida, como é a inferência de efeitos a partir de suas causas, não pode ser confiada a um processo inseguro do raciocínio e da argumentação. Se o fato é duvidoso com respeito aos homens, parece que não admite dúvida em relação aos seres irracionais; e uma vez que a conclusão está firmemente estabelecida para uns, temos uma forte presunção, segundo todas as regras da analogia, de que deveria admitir-se universalmente sem nenhuma exceção ou reserva. Pois unicamente o costume induz os animais a inferir, a partir de todo objeto que impressiona seus sentidos, seu acompanhante usual, e leva sua imaginação a conceber um pelo aparecimento do outro desta maneira particular que denominamos crença. Nenhuma outra explicação pode ser dada desta operação, quer nas classes superiores quer nas classes inferiores dos seres sensíveis, que tombam sob nossa observação e conhecimento.[1]
     Mas, embora os animais extraiam da observação grande parte de seus conhecimentos, há também outras partes decorrentes do poder original da natureza, superando em muito a porção de capacidade que têm em ocasiões ordinárias e que eles aperfeiçoam, pouco ou nada, mediante grande prática e experiência. E isso que denominamos de instintos, e os admiramos como algo mui extraordinário e inexplicável por todas as investigações do entendimento humano. Mas nossa admiração, talvez, cessará ou diminuirá, quando consideramos que o próprio raciocínio experimental, que possuímos em comum com os animais, e do qual depende toda a conduta da vida, nada é senão uma espécie de instinto ou de poder mecânico, agindo em nós de um modo desconhecido de nós mesmos; e que em suas principais operações não está dirigido por nenhuma das relações ou comparações de ideias, que são os objetos próprios de nossas faculdades intelectuais. Embora o instinto seja diferente, é, sem dúvida, um instinto que ensina o homem a evitar o fogo; do mesmo modo que ensina a um pássaro, com tanto rigor, a arte da incubação e toda a organização e ordem de seus cuidados educativos.

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção IX
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Notas:
[1] Visto que todos os nossos raciocínios acerca dos fatos ou causas derivam unicamente do costume, é lícito indagar como os homens ultrapassam pelo raciocínio os animais e como um homem é superado por outro? Além disso, por que tal costume não tem influência uniforme sobre todos os homens?
     Tentaremos aqui explicar sumariamente a grande diferença entre os entendimentos humanos; depois disto será fácil compreender a causa da diferença entre os homens e os animais:
a. Ao termos vivido por algum tempo e nos acostumado com a uniformidade da natureza, adquirimos um hábito geral pelo qual transferimos sempre o conhecido ao desconhecido e concebemos que o último se parece com o primeiro. Por meio deste princípio geral e habitual, consideramos que um raciocínio pode basear-se em um único experimento e esperamos um evento similar com algum grau de certeza, se o experimento foi feito com exatidão e livre de toda circunstância estranha. Consideramos, portanto, de grande importância observar as consequências das coisas, e como uma pessoa pode superar em muito a outra em atenção, memória e observação, o que produzirá uma grande diferença em seus raciocínios.

b. Se um efeito é produto de uma complicação de causas, um espírito pode ser mais amplo que outro e estar mais bem capacitado para abarcar todo o sistema de objetos e inferir acertadamente suas consequências.

c. Um homem é capaz de manipular uma cadeia de consequências mais longa do que outro [homem].

d. Poucos homens podem pensar por longo tempo sem misturar as ideias e confundir umas com as outras. Esta debilidade aparece em vários graus. 

e. A circunstância da qual depende o efeito está geralmente envolta em outras circunstâncias que lhe são estranhas e extrínsecas. Sua separação frequentemente requer grande atenção, rigor e sutileza.

f. A formação de princípios gerais a partir de observações particulares é uma operação muito delicada, e não há nada mais usual, devido à precipitação e à limitação espiritual que não considera todos os ângulos [da questão], que cometer erros a este respeito.

g. Quando se raciocina através de analogias, quem tem mais experiência ou mais presteza para sugerir analogias raciocinará melhor.

h. As tendências devidas aos preconceitos, educação, paixão, partidos políticos etc. têm mais influência sobre alguns espíritos do que sobre outros.

i. Depois de ter adquirido confiança no testemunho humano, os livros e os diálogos ampliam a esfera da experiência e do pensamento em um homem mais que em outro.

     Seria fácil descobrir outros fatores que produzem diferenças entre os entendimentos humanos (Hume). 

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