Germinal
Émile Zola
Tradução de Francisco Bittencourt
Tradução de Francisco Bittencourt
Terceira Parte
V
continuando... Maheu enfiou mais uma vez sua picareta e fez uma abertura pela
qual já podia se comunicar com os homens que trabalhavam do outro lado.
Estes gritaram: acabavam de encontrar Jeanlin desmaiado, as duas pernas
quebradas, respirando ainda. Foi o pai que carregou o pequeno no colo. De
dentes cerrados, continuou a praguejar: era a única maneira de expressar
sua dor. Por sua vez, Catherine e as outras mulheres puseram-se novamente
a gritar.
Formou-se rapidamente o cortejo. Bébert trouxe Batalha, que foi
atrelado aos vagonetes; no primeiro jazia o cadáver de Chicot, carregado
por Etienne, no segundo sentou-se Maheu, levando ao colo Jeanlin
desacordado, coberto com um pedaço de lã arrancado de uma porta de
ventilação. Partiram vagarosamente. Em cada vagonete luzia uma lâmpada,
que era como uma estrela vermelha. Atrás, seguiam os mineiros, umas
cinquenta sombras em fila. Agora que o cansaço se abatera sobre eles,
caminhavam arrastando os pés, escorregando na lama, com a lassidão de
um rebanho atacado por uma epidemia. Foi necessária cerca de meia hora
para chegarem ao patamar do poço. Parecia que aquela procissão não tinha
mais fim, marchando nas entranhas da terra, em meio à escuridão, ao longo
de galerias que bifurcavam, davam voltas, espichavam...
No patamar do poço, Richomme, que partira adiante, dera ordem
para que reservassem um elevador vazio. Pierron embarcou logo os dois
vagonetes. Num ficou Maheu com seu filho ferido sobre os joelhos,
enquanto no outro Etienne permanecia com o cadáver de Chicot nos braços,
para que este não escorregasse. Assim que os operários se amontoaram nos
outros andares, o elevador subiu. Levou dois minutos. A água que jorrava
do estaqueamento estava gélida; os homens olhavam para cima,
impacientes por verem novamente a luz do dia.
Felizmente, um aprendiz enviado à casa do Dr. Vanderhaghen tinha
o encontrado e trazia-o. Jeanlin e o morto foram levados para o quarto dos
contramestres, onde, durante o ano inteiro, ardia um grande fogo. Foram
colocados ali dois baldes de água quente, prontos para a lavagem dos pés, e,
tendo estendido dois colchões no chão, deitaram o homem e o menino.
Apenas Maheu e Etienne entraram na peça. Fora, operadoras de vagonetes,
mineiros e garotos em busca de notícias formavam um grupo e
conversavam em voz baixa.
O médico, mal examinou Chicot, foi logo dizendo:
— Acabado! Podem lavá-lo...
Dois vigias despiram e lavaram com esponja aquele cadáver negro
de carvão, ainda sujo do suor do trabalho.
— A cabeça não tem nada — continuou o doutor, de joelhos sobre
o colchão de Jeanlin. — O peito também não... Ah!... foram as pernas que
sofreram.
Ele mesmo despiu a criança, desatou o lenço da cabeça, tirou a
jaqueta, a camisa, puxou as calças com uma destreza de ama. E o pobre
corpinho surgiu, magro como um inseto, imundo de poeira negra e terra
amarela, que o sangue manchava. Como não se distinguia nada, ele também
teve de ser lavado. Sob a esponja pareceu ainda mais magro, a carne tão
lívida e transparente que se viam os ossos. Era de partir o coração aquela
degenerescência final de uma raça de miseráveis, aquele pobre serzinho
sofredor, meio esmagado pela queda das rochas. Assim que o lavaram,
puderam-se ver as contusões nas coxas, dois traços vermelhos na pele
branca.
Voltando a si, Jeanlin deu um gemido. Em pé ao lado do colchão, de
braços caídos, Maheu olhava para o filho. E grossas lágrimas começaram a
rolar dos seus olhos.
— Então tu é que és o pai? — perguntou o doutor, levantando a
cabeça. — Pois não chores, bem vês que ele não está morto, antes ajuda
me.
Constatou a existência de duas fraturas simples. Mas a perna direita
o preocupava: sem dúvida teria de cortá-la.
Nesse momento, o engenheiro Négrel e Dansaert, finalmente
avisados, chegaram, acompanhados de Richomme. O primeiro escutou os
fatos da boca do contramestre com ar exasperado. E explodiu: sempre esses
malditos estaqueamentos! Já não dissera cem vezes que por causa disso
alguém ia morrer? E aqueles animais ainda falavam em entrar em greve se
fossem forçados a dar maior solidez ao estaqueamento! O pior era que a
companhia agora pagaria o pato... O Sr. Hennebeau ia ficar bem satisfeito
com tudo isso!
— Quem é esse? — perguntou ele a Dansaert, silencioso diante do
cadáver que enrolavam num lençol.
— Chicot, um dos nossos bons operários — respondeu o capataz.
— Tem três filhos... Pobre-diabo!
O Dr. Vanderhaghen ordenou que Jeanlin fosse transportado
imediatamente para casa. Deram seis horas, descia o crepúsculo, o defunto
também devia ser transportado. O engenheiro deu ordens para que se
atrelasse o furgão e trouxessem a maca. O pequeno ferido foi colocado na
maca, enquanto metiam no furgão o colchão com o morto.
A porta permaneciam ainda muitas operadoras de vagonetes,
conversando com mineiros que haviam ficado para ver. Quando o quarto
dos contramestres foi reaberto, um silêncio se abateu sobre o grupo.
Formou-se então um novo cortejo, o furgão à frente, a maca atrás, em
seguida a turba. Deixaram o pátio da mina, subiram lentamente a estrada
ascendente do conjunto habitacional. Os primeiros frios de novembro
tinham desnudado a imensa planície, uma noite lenta a sepultava, como
uma mortalha caída do céu lívido.
Etienne, então, aconselhou em voz baixa Maheu a enviar Catherine
para prevenir a mulher, amortecendo assim o golpe. O pai, que seguia a
maca, completamente abatido, assentiu com um gesto e a moça saiu
correndo, porque já estavam quase chegando. Mas o furgão, essa caixa
sombria bem conhecida de todos, já fora notado. Mulheres enlouquecidas
iam para as calçadas; três ou quatro, com os cabelos ao vento, corriam
angustiadas. Em seguida foram trinta, depois cinquenta, todas estranguladas
pelo mesmo terror. Então havia um morto? Quem era? A história contada
por Levaque, depois de as ter tranquilizado, lançava-as agora num exagero
de pesadelo: não era mais só um homem, eram dez que tinham morrido e o
furgão iria trazer, um por um.
Catherine encontrou sua mãe agitada por um pressentimento. Logo
às primeiras palavras balbuciadas, esta gritou:
— Teu pai morreu!
Em vão a moça disse que não, falou de Jeanlin. Sem querer ouvir
mais, a mulher lançou-se para a rua. E, vendo o furgão que desembocava
diante da igreja, ficou muito pálida e caiu desmaiada. Às portas, mulheres,
mudas de horror, espichavam o pescoço, enquanto outras seguiam o cortejo,
tremendo à ideia de saber em que casa ele pararia.
O carro passou. Logo atrás, a mulher de Maheu percebeu o marido
acompanhando a maca. Quando pousaram a padiola diante da sua porta e
ela viu Jeanlin vivo, com as duas pernas quebradas, teve uma reação tão
repentina que ficou sufocada pela cólera e só conseguiu gaguejar, os olhos
enxutos:
— Então é isto? Agora eles nos aleijam os filhos... Meu Deus, e as
duas pernas!... O que vai ser de mim!
— Cala a boca! — ordenou o Dr. Vanderhaghen, que tinha vindo
para fazer o curativo de Jeanlin. — Preferias que ele tivesse ficado por lá?
Mas a mulher estava cada vez mais violenta em meio às lágrimas de
Alzire, Lénore e Henri. Enquanto ajudava a subirem o ferido e dava ao
doutor tudo de que ele necessitava, maldizia-se, perguntava onde queriam
que ela fosse buscar dinheiro para alimentar doentes. Não chegava o velho,
agora também o garoto perdia as pernas! E não cessava de lamentar-se,
enquanto outros gritos, lamentações aterradoras, saíam de uma casa
próxima: eram a mulher e os filhos de Chicot que choravam sobre o
defunto.
Era noite fechada. Os mineiros, exaustos, comiam enfim sua sopa,
no conjunto habitacional mergulhado num silêncio lúgubre, atravessado
apenas por aqueles gritos dilacerantes.
Decorreram três semanas. A amputação fora evitada, Jeanlin
conservava ambas as pernas, mas ficara coxo. Depois de um inquérito, a
companhia resignara-se a dar um auxílio de cinquenta francos. Além disso,
prometera procurar para o pequeno aleijado um emprego na superfície, logo
que estivesse restabelecido. Apesar disso, a miséria agravou-se, já que
Maheu, de tão abalado, ficou doente e ardeu em febre por alguns dias. Na
quinta-feira seguinte, já curado, o homem voltou ao trabalho.
No domingo à noite, Etienne falou sobre o primeiro de dezembro
que se aproximava, preocupado em saber se a companhia executaria sua
ameaça naquela data. Ficaram acordados até as dez horas, esperando
Catherine, que saíra com Chaval. Como a moça não voltou, a mulher,
furiosa, fechou a porta com ferrolho, sem uma palavra. Etienne demorou-se
a dormir; nervoso com aquela cama vazia, onde Alzire ocupava tão pouco
espaço.
Na manhã do dia seguinte Catherine continuou ausente. Somente à
tarde, na volta da mina, foi que os Maheu souberam que Chaval decidira
que a moça ficaria com ele. O homem fazia cenas tão terríveis, que ela
resolvera ir viver com ele. Para evitar falatórios, Chaval demitiu-se
bruscamente da Voreux, indo empregar-se na Jean-Bart, o poço do Sr.
Deneulin, onde ela o seguiu como operadora de vagonetes. Fora isso, o
novo casal continuou morando em Montsou, no Piquette.
No princípio, Maheu disse que ia esbofetear o homem e trazer a
filha de volta para casa a pontapés no traseiro. Depois, resolveu resignar-se:
para quê? Era sempre assim, não se podia impedir as mulheres de se
amigarem quando tinham vontade. O melhor mesmo era esperar
tranquilamente pelo casamento.
Mas a mulher não via as coisas pelo mesmo prisma.
— Diga, eu a espanquei quando ela resolveu meter-se com esse
Chaval? — gritava ela para Etienne, que a escutava, silencioso e muito
pálido. — Vamos, responda! O senhor, que é um homem razoável,
responda! Nós a deixamos livre, não foi? Meu Deus, eu sei que todas
passam por isso! Veja eu, estava grávida quando casei, mas não fugi da casa
dos meus pais, nunca faria essa sujeira de entregar antes da idade o dinheiro
dos meus dias de trabalho a um homem que não precisa. Ah, como tenho
razão de estar enojada de tudo! Vai chegar o tempo em que não se quererá
mais ter filhos...
E, como Etienne continuasse em silêncio, respondendo apenas com
movimentos de cabeça, ela insistia:
— Uma moça que ia aonde queria e todas as noites! Que foi que ele
lhe andou metendo na cabeça? Será que não podia esperar que eu a casasse
depois de nos ter ajudado a sair do atoleiro em que nos encontramos? Não
era assim que ela tinha que agir? Afinal, a gente tem uma filha para que ela
trabalhe, não é isso? Mas nós fomos bons demais, nunca devíamos ter
permitido que andasse por aí com um homem. Dá-se um dedo e elas tomam
logo o braço todo, é sempre assim.
Alzire aprovava com a cabeça. Lénore e Henri, amedrontados com
aquela gritaria, choravam baixinho. A mulher, agora, desfiava seu rosário
de desgraças: primeiro Zacharie, a quem tiveram de casar; em seguida o
velho Boa-Morte, imobilizado numa cadeira, com os pés inutilizados;
depois Jeanlin, que não poderia deixar a cama antes de dez dias, com os
ossos ainda mal colados; e finalmente, para cúmulo dos males, a prostituta
da Catherine resolvera fugir com um homem! A casa ia por água abaixo, só
o pai continuava trabalhando e trazendo dinheiro. Como é que haviam de
viver sete pessoas, sem contar Estelle, com os três francos do pai? Ah, o
melhor era atirarem-se todos juntos no canal!
— Não adianta nada estares aí massacrando-te — disse Maheu com
voz surda. — Talvez ainda não estejamos tão mal assim.
Etienne, que olhava fixamente para as pedras do chão, levantou a
cabeça e, com os olhos perdidos numa visão do futuro, murmurou:
— Ah! chegou a hora! chegou a hora!
continua na página 164...
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Terceira Parte - (V.b)
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu.
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura.
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.
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