Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto
Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB
SEGUNDA PARTE
20
— Venha cá, filho, tenho uma coisa que vai fazer você melhorar.
Como o sr. Dolphus Raymond não era de muita confiança, relutei em aceitar o convite, mas fui atrás de Dill. De
algum modo, acho que Atticus não ia gostar que ficássemos amigos do sr. Raymond, e sabia que tia Alexandra ia gostar muito
menos.
— Tome — disse ele, oferecendo a Dill o saco de papel com dois canudos dentro. — Tome um bom gole, você vai
relaxar.
Dill tomou um gole, sorriu, e em seguida chupou com força o canudo.
— He, he — fez o sr. Raymond, contente por ter corrompido uma criança.
— Dill, cuidado — avisei.
Dill largou os canudos e sorriu.
— É só Coca-Cola, Scout.
O sr. Raymond sentou-se, encostado no tronco da árvore. Antes, estava deitado na grama.
— Vocês não vão contar nada a ninguém, não é? Acabariam com a minha reputação se fizessem isso.
— Quer dizer que o que o senhor bebe nesse saco é só Coca-Cola? Coca-Cola pura?
— Sim, senhora — concordou o sr. Raymond. Eu gostava do cheiro dele: couro, cavalos, semente de algodão. Era a única
pessoa que eu conhecia que usava botas de montaria inglesas. — Na maior parte do tempo, isso é tudo que eu bebo.
— Então, só finge que está meio…? Desculpe, eu não quis ser… — eu me corrigi.
O sr. Raymond riu, nem um pouco ofendido, e tentei fazer uma pergunta discreta:
— Por que o senhor faz isso?
— O que… Ah, você quer saber por que eu finjo? Bom, é muito simples — respondeu. — Algumas pessoas não…
aprovam a minha maneira de viver. Eu poderia dizer que quero que eles vão para o inferno, que não me interessa o que
pensam. E eu realmente digo que não me importo, mas não digo que quero que eles vão para o inferno, entendem?
Dill e eu respondemos juntos:
— Não, senhor.
— Procuro dar um motivo para essas pessoas, sabem? Elas ficam satisfeitas quando encontram uma explicação. Nas raras
vezes em que venho à cidade, se fico trocando as pernas e bebo uns goles desse saco de papel, elas podem dizer que Dolphus
Raymond encheu a cara de uísque, ele não tem jeito. Não responde por si, por isso vive do jeito que vive.
— Sr. Raymond, não é honesto parecer pior do que é…
— Não é honesto, mas é muito útil para as pessoas. Cá entre nós, srta. Finch, não sou muito de beber. Mas elas jamais
entenderiam que vivo desse jeito porque quero viver assim.
Eu desconfiava que não devia estar ali ouvindo aquele homem pecador, que tinha filhos mestiços e não se incomodava que
todo mundo soubesse disso, mas ele era fascinante. Eu nunca tinha conhecido ninguém que se desacreditasse deliberadamente.
Mas por que ele tinha nos contado seu grande segredo? Perguntei isso a ele.
— Porque vocês são crianças e entendem. E também porque ouvi o que aquele ali disse… — ele respondeu, indicando
Dill com a cabeça. — Os sentimentos dele ainda não foram corrompidos. Quando crescer mais um pouco, não vai mais ficar
mal e chorar ao ouvir certas coisas. Pode ser que ache as coisas meio erradas, digamos, mas não vai chorar, não quando ficar
mais velho.
— Chorar por causa de que, sr. Raymond? — perguntou Dill, querendo se defender.
— Por causa do inferno pelo qual algumas pessoas fazem as outras passarem sem nem pensar. Por causa do inferno pelo
qual os brancos fazem os negros passarem, sem nem sequer pararem para pensar que eles também são gente.
— Atticus diz que enganar um negro é dez vezes pior do que enganar um branco. Diz que é a pior coisa que se pode fazer
— resmunguei.
O sr. Raymond disse:
— Acho que não… Srta. Jean Louise, a senhorita ainda não percebeu que o seu pai é um homem diferente, vai demorar uns
anos para perceber… ainda não conhece o mundo direito. Não conhece nem essa cidade; para conhecer, basta voltar para
aquele tribunal.
Isso me fez lembrar que estávamos perdendo o interrogatório do sr. Gilmer. Olhei para cima: o sol descia rápido atrás dos
telhados das lojas do lado oeste da praça. Fiquei sem saber o que fazer: conversar com o sr. Raymond ou voltar para o Quinto
Tribunal de Justiça da Comarca?
— Vamos, Dill. Está se sentindo melhor? — perguntei.
— Sim. Sr. Raymond, foi um prazer conhecê-lo e obrigado pelo refrigerante, estou bem melhor.
Voltamos correndo para o tribunal, subimos os dois lances de escada e passamos junto à balaustrada do balcão. O
reverendo Sykes tinha guardado os nossos lugares.
O tribunal estava silencioso e mais uma vez me perguntei onde teriam ido parar os bebês. O charuto do juiz Taylor tinha
virado um ponto marrom no meio da boca; o sr. Gilmer escrevia num dos blocos amarelos em cima da mesa dele, tentando ser
mais rápido do que o estenógrafo, cuja mão voava.
— Droga, perdemos o interrogatório — resmunguei.
Atticus discursava para os jurados. Tinha evidentemente tirado alguns papéis da pasta que estava ao lado da cadeira,
porque agora eles estavam sobre a mesa. Tom Robinson estava brincando com os papéis.
—… sem nenhuma prova comprobatória, este homem foi processado e pode ser condenado à pena capital e perder a vida.
Cutuquei Jem.
— Há quanto tempo ele está falando?
— Acabou de examinar as provas e acho que vamos ganhar a causa, Scout — respondeu Jem, baixinho. — Temos tudo
para ganhar. Ele está falando há cinco minutos. Foi claro e conclusivo como… bom, como se estivesse explicando para você.
Até você entenderia.
— E o sr. Gilmer?
— Shhh. Não disse nada de novo, só o de sempre. Agora fique quieta.
Olhamos lá para baixo de novo. Atticus falava com clareza, com a mesma imparcialidade de quando ditava uma carta.
Andava devagar de um lado para o outro na frente dos jurados, que pareciam atentos: de cabeças levantadas, acompanhavam
os passos dele como se aprovassem o que dizia. Acho que era porque ele não falava aos berros.
Atticus parou e fez algo que não costumava fazer. Tirou do colete o relógio e a corrente e colocou-os sobre a mesa,
dizendo:
— Com a licença do tribunal…
O juiz Taylor concordou com a cabeça, então Atticus fez outra coisa que eu nunca tinha visto ele fazer antes, e que nunca
mais o vi fazer depois, em público ou em particular: desabotoou o colete e o colarinho, afrouxou o nó da gravata e tirou o
paletó.
Ele nunca tirava uma peça de roupa até a hora de vestir o pijama, à noite. Para Jem e para mim, aquilo era como se ele
ficasse completamente nu na nossa frente. Trocamos olhares apavorados.
Atticus pôs as mãos nos bolsos e, ao olhar novamente para os jurados, vi o botão de ouro de seu colarinho, a ponta do
lápis e da caneta brilharem.
— Senhores — ele disse. Jem e eu nos entreolhamos de novo. Era como se ele tivesse dito: “Scout”. A voz tinha perdido a
secura e a imparcialidade, e ele falava com os jurados como se fossem pessoas que tivesse encontrado na esquina dos
correios.
— Senhores, serei breve, mas gostaria de usar o tempo que me resta para lembrá-los que este caso é simples, não exige o
exame detalhado de fatos complexos, mas exige que os senhores tenham absoluta certeza da culpa do acusado. Para começar,
este caso não deveria ter ido a julgamento. É tão simples quanto preto no branco. O Estado não produziu nenhuma prova
médica do crime que Tom Robinson teria cometido. Confiou apenas no depoimento de duas testemunhas, cujas declarações
foram seriamente questionadas durante o interrogatório e enfaticamente negadas pelo acusado. O réu não é culpado, mas
alguém aqui neste tribunal é.
“Só tenho a lastimar pela situação da principal testemunha apresentada pelo Estado, mas não a ponto de aceitar que ela
coloque em risco a vida de um homem, na tentativa de se ver livre da própria culpa.
“Culpa sim, senhores, pois a testemunha de acusação foi movida pela culpa. Ela não cometeu nenhum crime, apenas
quebrou um rígido e antigo código de conduta da nossa sociedade, um código tão rígido que quem o rompe é afastado do nosso
meio, e o convívio com essa pessoa é considerado inaceitável. Ela é vítima da pobreza e da ignorância absolutas, mas não
consigo ter pena dela, porque é branca. Ela tinha absoluta consciência da dimensão de seu erro, mas, como seu desejo era
mais forte do que o código que ia romper, ela persistiu. Persistiu, e sua reação posterior é algo que todos nós já vimos um dia:
agiu como uma criança e tratou de afastar de si a prova de seu erro. Mas, nesse caso, não se trata de uma criança tentando
esconder algo que pegou escondido: ela atacou a vítima, precisava afastá-la, tirá-la da sua presença, deste mundo. Precisava
destruir a prova do seu erro.
“E qual é a prova do seu erro? Tom Robinson, um ser humano. Ela precisava afastar Tom Robinson, que a fazia lembrar
diariamente do que havia feito. E o que ela havia feito? Tinha tentado seduzir um negro.
“Ela é branca e tentou seduzir um negro. Fez algo inaceitável na nossa sociedade: beijou um negro. Não um preto velho,
mas um negro jovem e forte. Na hora, ela não se importou com nenhum código social, mas depois foi atingida violentamente
por esse código.
“O pai dela assistiu a tudo e o réu testemunhou sobre o que ele disse na ocasião. O que fez o pai? Não sabemos, mas há
provas circunstanciais que indicam que Mayella Ewell foi brutalmente espancada por alguém que usa quase exclusivamente a
mão esquerda. Mas sabemos em parte o que o Sr. Ewell fez, o que qualquer branco respeitável e temente a Deus faria numa
situação dessas: conseguiu um mandado de prisão para o acusado e assinou-o com a mão esquerda. E agora Tom Robinson
está diante de todos os senhores, após prestar o juramento levantando sua única mão útil: a direita.
“E assim, um negro calmo, respeitável, humilde, que cometeu a imperdoável temeridade de “ter pena” de uma mulher
branca, tem que colocar sua palavra de honra contra a de dois brancos. Não preciso lembrar aos senhores o comportamento e
a aparência deles na tribuna, os senhores viram com seus os olhos. “As testemunhas de acusação, com exceção do xerife do
condado, se apresentaram diante dos senhores e deste tribunal com a cínica segurança de que seus depoimentos não seriam
postos em dúvida, certos de que os senhores aceitariam a tese deles, a diabólica tese de que todos os negros mentem, todos os
negros são, por princípio, imorais, que nenhum deles deve ser deixado perto de nossas mulheres, tese que podemos associar
com mentes do calibre da deles.
“Sabemos, senhores, que se trata de uma mentira tão negra quanto a pele de Tom Robinson, uma mentira que não preciso
explicar aos senhores. Os senhores sabem a verdade: alguns negros mentem, alguns negros são imorais, alguns negros não
merecem a confiança de ficar perto das mulheres, sejam elas brancas ou negras. Mas essa verdade se aplica à raça humana,
sem distinção. Não existe ninguém neste tribunal que nunca tenha mentido, que nunca tenha feito algo imoral, não existe um
homem vivo que nunca tenha olhado para uma mulher com desejo.”
Atticus fez uma pausa e tirou o lenço do bolso. Tirou os óculos, limpou-os com o lenço e então vimos mais uma coisa pela
primeira vez: Atticus nunca transpirava, era dessas pessoas que jamais suam, mas naquele momento a pele dele brilhava.
— Mais uma coisa, senhores, antes de terminar. Uma vez Thomas Jefferson disse que todos os homens nascem iguais, frase
que os ianques e alguns membros do executivo em Washington gostam de nos lembrar. Neste ano da graça de 1935, certas
pessoas tendem a usar essa frase fora do contexto e com qualquer fim. O exemplo mais ridículo que me ocorre agora do mau
uso dessa frase é que os responsáveis pela educação pública favorecem os estúpidos e os preguiçosos junto dos esforçados, já
que todos são iguais, afirmam os educadores com seriedade. As crianças reprovadas ficam com um terrível complexo de
inferioridade. Sabemos que nem todos os homens são iguais, não no sentido que alguns querem nos impor: algumas pessoas
são mais inteligentes do que outras; algumas têm mais oportunidade do que outras, pois nascem privilegiadas; alguns homens
ganham mais dinheiro que outros; algumas senhoras fazem bolos mais gostosos do que outras; algumas pessoas são mais
dotadas do que a maioria. Mas há algo neste país diante do qual todos os homens são iguais, há uma instituição que torna um pobre igual a um
Rockefeller, um idiota igual a um Einstein e um ignorante igual a um reitor de universidade. Essa instituição, senhores, é o
Tribunal de Justiça. Pode ser a Suprema Corte dos Estados Unidos, o juizado mais simples do país ou este honrado tribunal ao
qual os senhores servem. Como qualquer instituição, os nossos tribunais têm falhas, mas são os maiores niveladores deste
país, para os nossos tribunais todos os homens nasceram iguais. Não sou idealista a ponto de acreditar piamente na integridade de nossos tribunais e do sistema judiciário, não se trata de
um ideal, mas de uma realidade viva, que funciona. Senhores, o tribunal não é melhor do que cada um dos jurados sentados à
minha frente. Um tribunal é tão íntegro quanto seu júri, e um júri é tão íntegro quanto os jurados que o compõem. Tenho certeza
de que os senhores vão rever com objetividade as evidências que foram apresentadas, vão chegar a uma decisão e devolver
esse homem para a família dele. Em nome de Deus, cumpram o seu dever.
Atticus calou-se e, quando virou as costas para os jurados, disse algo que não consegui ouvir. Disse mais para ele mesmo
do que para o tribunal. Cutuquei Jem:
— O que ele disse?
— Acho que disse: “Em nome de Deus, acreditem nele.”
Dill de repente se inclinou por cima de mim e cutucou Jem.
— Olha lá!
Olhamos na direção que o dedo dele indicava e sentimos um aperto no coração. Calpúrnia caminhava pelo corredor
central na direção de Atticus.
continua página 148...
___________________
Leia também:
O Sol é para todos: 2ª Parte (20)
__________________
Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês
TO KILL A MOCKINGBIRD
__________________
Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.
Nenhum comentário:
Postar um comentário