volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Segundo
Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin.
continuando...
Tranquilizado pela minha explicação com Albertine, recomecei a viver mais junto de minha
mãe. Ela gostava de me falar docemente do tempo em que minha avó era mais jovem. Temendo
que eu me censurasse pelas tristezas com que poderia ter ensombrado o fim daquela vida, ela
voltava de bom grado aos anos em que meus primeiros estudos haviam causado a minha avó
alegrias que até então me foram sempre ocultadas. Falávamos de novo sobre Combray. Minha
mãe me disse que lá pelo menos eu lia e que em Balbec deveria fazer o mesmo, caso não
escrevesse. Respondi que, justamente para me rodear das lembranças de Combray e dos belos
pratos pintados, gostaria de reler As Mil e Uma Noites. Como outrora, em Combray, quando ela
me dava livros de aniversário, foi às escondidas, para me fazer uma surpresa, que minha mãe
mandou buscar, ao mesmo tempo, As Mil e Uma Noites, de Galland, e As Mil Noites e Uma Noite,
de Mardrus. Mas depois de haver lançado um olhar sobre as duas traduções, minha mãe bem
gostaria que eu me limitasse à de Galland, conquanto temesse influenciar-me devido ao seu
respeito pela liberdade intelectual, ao receio de intervir desastradamente na vida de meu
pensamento, e ao sentimento de que, sendo mulher, julgava faltar-lhe, por um lado, a necessária
competência literária, e, por outro, achava que não devia julgar as leituras de um rapaz de acordo
com aquilo que a chocava. Lendo certos contos, revoltara-se com a imoralidade do assunto e a
crueza da expressão. Mas sobretudo, conservando preciosamente como relíquias não apenas o
broche, a sombrinha, a capa e o volume da Sra. de Sévigné, mas também os hábitos de
pensamento e linguagem de sua mãe, procurando em qualquer ocasião a opinião que esta teria
dado, minha mãe não podia duvidar da condenação que minha avó teria pronunciado contra o
livro de Mardrus. Lembrava-se que em Combray, enquanto que, antes de partir para os lados de
Méséglise, eu lia Augustin Thierry, minha avó, contente pelas minhas leituras e meus passeios,
indignava-se entretanto ao ver aquele, cujo nome permanecia ligado a este hemistíquio: "Reina,
após, Meroveu" chamado Merowig; recusar-se Carolíngios em vez de Carlovíngios, aos quais
permanecia fiel. Enfim eu lhe contara o que minha avó tinha pensado dos nomes gregos que
segundo Leconte de Lisle, dava aos deuses de Homero, chegando até a um dever religioso a
adoção da ortografia grega para as coisas mais simples, achando que nisso consistia o talento
literário. Tendo, por exemplo, que dizer numa carta que o vinho bebido em sua casa era um
verdadeiro néctar, ele escrevia "um verdadeiro nektar", com k, o que lhe permitia troça de
Lamartine. Ora, se uma Odisseia, de onde estivessem ausentes os nomes de Ulisses e de
Minerva, já não era para a minha avó a Odisseia, que diria então se visse já deformado na capa o
título de suas Mil e Uma Noites, não mais encontrando, transcritos exatamente como ela o tempo
todo se habituara a dizê-los, os nomes imortalmente familiares de Sherazade, de Dinazarda, e
onde, eles próprios desbalizados, se é que se pode aplicar o vocábulo à histórias muçulmanas, o
encantador Califa e os poderosos Gênios; os mal se reconheciam, sendo denominados, um o
"Khalifat", os outros "Gennis"? No entanto, minha mãe entregou-me as duas obras, e eu lhe disse
que as leria nos dias em que estivesse cansado demais para passear. Aliás, tais dias não eram
muito freqüentes. Como antigamente, íamos merendar "em grupo", Albertine, suas amigas e eu,
no rochedo ou na granja Marie-Antoinette. Havia ocasiões, porém, em que Albertine me dava este
grande prazer. Dizia-me:
- Hoje eu quero estar um pouco sozinha com você, será mais agradável que fiquemos os
dois juntos. -
Então dizia que tinha coisas a fazer, de que aliás não precisava prestar contas, e para que
as outras, se fossem sem nós passear e merendar, não pudessem nos encontrar, íamos sozinhos,
como dois amantes, à Bagatelle ou à Croix d'Heulan, ao passo que o grupo, que jamais teria tido
a ideia de nos procurar por lá, aonde nunca ia, permanecia indefinidamente em Marie-Antoinette,
na esperança de ver-nos chegar.
Lembro-me dos dias quentes de então, em que da testa dos empregados da granja, que
trabalhavam ao sol, caía uma gota de suor, vertical, regular, intermitente, como a gota d'água de
um reservatório, e se alternava com a queda do fruto maduro que se desprendia da árvore nos
cercados vizinhos; continuam sendo, ainda hoje, junto com esse mistério de uma mulher oculta, a
parte mais consistente de todo amor que se me apresente. Uma mulher de quem me falam e na
qual não pensaria um só instante, eis que modifico todos os encontros da semana para conhecê-la, se se trata de uma semana em que faz um tempo daqueles, se devo vê-la nalguma granja
isolada. Por mais que saiba que esse tipo de tempo e de encontro não são dela, são todavia a
isca bem conhecida a mim, a que me deixo prender e que basta para me agarrar. Sei que essa
mulher, num tempo frio, numa cidade, poderia tê-la desejado, mas sem a companhia de um
sentimento romanesco, sem me apaixonar; o amor nem por isso é menos forte, uma vez que me
encadeou graças às circunstâncias; apenas é mais melancólico, como na vida se tornam os
nossos sentimentos pelas pessoas, à medida que mais percebemos a parte cada vez menor que
elas representam para os mesmos, e que o amor novo, que desejaríamos fosse tão durável,
abreviado como nossa própria vida, será o último.
Havia ainda poucas pessoas da sociedade em Balbec, poucas moças. Às vezes eu via
uma ou outra, parada na praia, sem atrativo, e que no entanto muitas coincidências pareciam
atestar ser a mesma de quem eu me desesperava por não poder me aproximar no momento em
que ela saía com as amigas do carrossel ou da aula de ginástica. Se era a mesma (e eu evitava
falar nisso a Albertine), a moça que eu julgara inebriante não existia. Mas eu não conseguia ter
certeza, pois o rosto dessas moças não ocupava na praia uma dimensão, não oferecia uma forma
permanente, contraído, dilatado, transformado como era pela minha própria expectativa, pela
inquietação do meu desejo, ou por um bem-estar que se basta a si mesmo, pelos vestidos
diferentes que trajam, pela rapidez de seu passo ou pela sua imobilidade. Todavia, bem de perto,
duas ou três me pareciam adoráveis. Cada vez que via uma destas, tinha vontade de levá-las
para a avenida dos Tamaris, ou para as dunas, ou, melhor ainda, para os rochedos. Mas ainda
que no desejo, em comparação com a indiferença, já entre aquela audácia que é um verdadeiro
começo unilateral de realização, mesmo assim, entre o meu desejo e a ação, que seria o meu
pedido para beijá-la, havia todo o "branco" indefinido da hesitação e da timidez. Então eu entrava
na confeitaria, bebia, um após outro, sete a oito cálices de vinho do porto. Em seguida, em vez do
intervalo impossível de preencher entre o meu desejo e a ação, o efeito do álcool traçava uma
linha que os reunia a ambos. Não havia mais lugar para o temor ou a hesitação. Parecia-me que a
moça ia voar para mim. Eu ia até ela, e por si sós iam saindo de meus lábios estas palavras:
- Gostaria de passear com você. Não quer que a leve aos rochedos? Lá ninguém nos
incomoda, lá atrás do bosquezinho que abriga do vento a casa desmontável, atualmente
desabitada... -
Todas as dificuldades da vida estavam aplainadas, já não havia obstáculos para o
enlaçamento de nossos corpos. Pelo menos, não para mim. Pois para ela, que não havia bebido,
eles não tinham sido volatilizados. Se o tivesse feito, o universo perderia alguma realidade a seus
olhos, e mesmo assim, o sonho longamente acariciado que então lhe pareceria de súbito
realizável talvez absolutamente não fosse o de cair nos meus braços.
Não só as moças eram pouco numerosas, mas, naquela estação; ainda não era "a
estação", ficavam por pouco tempo. Lembro-me de uma tez rubra de olhos verdes, duas faces
coradas, e cujo rosado duplo se assemelhava aos grãos alados de certas árvores. Não sei que
brisa a trouxera a Balbec e que outra a levara embora. Foi de modo brusco que durante vários
dias senti um desgosto que me atrevi a confessar à Albertine, quando compreendi que ela se fora
para sempre.
É preciso dizer que muitas delas eram moças que eu ou absolutamente não conhecia, ou
deixara de ver há muitos anos. Frequentemente, antes de me encontrar com elas, eu lhes
escrevia. Se a sua resposta fazia crer num possível amor, que alegria! No começo de uma
amizade, uma mulher, e até mesmo se esta amizade não se deve realizar em seguida, não é
possível separar-se dessas primeiras cartas recebidas. Desejaria tê-las o tempo todo conosco,
como lindas flores recebidas, ainda bem frescas, e que não cessamos de contemplar senão para
respirá-las de mais perto. A frase que sabemos de cor é agradável de reler e, naquelas menos
literalmente apreendidas, desejamos verificar o grau de ternura de uma expressão. Escreveu ela:
"Votre chere lettre"? Pequena decepção na doçura que respiramos e que deve ser atribuída a
uma leitura muito rápida; à escrita ilegível da correspondente; ela não escreveu: "et votre chere
leHres, mas: "en voyant cette lettre". Mas o restante é tão carinhoso. Oh! Quanta flores iguais
chegam amanhã! Depois, isto apenas não é bastante; é preciso confrontar, às palavras escritas,
os olhares, a voz. Marcamos encontro, e sem que ela talvez tenha mudado ali onde julgávamos,
pela descrição feita; ou pela recordação pessoal, encontrar a fada Viviane, achamos o Gato de
Botas. Mesmo assim, marcamos encontro para o dia seguinte, pois apesar de tudo é ela e o que
desejávamos era ela. Ora, esses desejos por uma mulher com quem se sonhou não tornam
absolutamente necessária a beleza de um determinado traço. Tais desejos são apenas o desejo
de uma criatura; vagos como o perfume, assim como o estoraque era o desejo de Protiera, o
açafrão o desejo etéreo, as substâncias aromáticas o desejo de Hera, a mirra o perfume das
nuvens, o maná o desejo de Nicéia, o incenso perfume do mar. Mas estes perfumes cantados
pelos hinos órficos são bem menos numerosos do que as divindades a quem adoram. A mirra é o
perfume das nuvens; mas também de Protógonos, de Netuno, de Nereu, de Leteo; o incenso é o
perfume do mar, mas também da bela Dicéia, de Têmis, de Circe, das nove musas, de Éos, de
Mnemósina, do Dia, de Dikaiosuné. Quanto ao estoraque, o maná e as substâncias aromáticas,
seria um não acabar de dizer as divindades que os inspiram, de tão numerosas que são. Anfíetes
possui todos os perfumes, exceto o incenso; e Gaia rejeita apenas as favas e as substâncias
aromáticas. Assim, eram desse tipo os desejos que eu tinha dessas moças. Menos numerosos do
que elas, mudavam-se em decepções e tristezas bem semelhantes umas às outras. Eu jamais
quis a mirra. Reservei-a para Jupien e para a princesa de Guermantes, pois ela é o desejo de
Protógonos, "o de dois sexos, tendo o mugido do touro, de inumeráveis orgias, memorável,
inenarrável, descendo, cheio de júbilo, para os sacrifícios dos orgiofantas".
Mas em breve a estação atingiu o auge; todos os dias era uma chegada nova e, para a
frequência de súbito crescente de meus passeios, que substituía a leitura agradável das Mil e
Uma Noites, havia uma causa desprovida de prazer e que os envenenava a todos. A praia estava
agora povoada de moças; e, como a ideia que me havia sugerido Cottard, embora não me
despertasse novas suspeitas, tornara-me frágil e sensível a esse respeito, e cauteloso para não
deixá-las formarem-se em mim; quando uma jovem chegava a Balbec eu me sentia pouco à
vontade, propunha a Albertine as excursões mais afastadas, para que ela não pudesse travar
conhecimento e, até, se fosse possível, nem sequer visse a recém-chegada. Naturalmente, temia
ainda mais aquelas cujos maus costumes eram bem conhecidos, ou de quem se sabia a má
reputação; tentava persuadir a minha amiga de que essa má reputação não se baseava em nada,
era caluniosa, talvez por um medo inconfesso, ainda inconsciente, de que ela procurasse unir-se à
depravada, ou que lamentasse não poder procurá-la por minha causa, ou que julgasse, pelo
número de exemplos, que um vício tão disseminado não seria condenável. Negando-o em cada
culpada, eu chegava a pretender nada menos que o lesbianismo não existia. Albertine adotava a
minha incredulidade quanto ao vício desta ou daquela:
- Não, creio que é só atitude; ela quer se mostrar. -
Mas então eu quase lamentava ter repugnado pela inocência, pois desagradava-me que
Albertine, tão severa antigamente, pudesse achar que essa "atitude" fosse algo de muito
lisonjeiro, vantajoso, para que uma mulher isenta desses gostos procurasse fingi-los. Gostaria que
mulher nenhuma chegasse mais a Balbec; tremia ao pensar que, como era reais ou menos a
época em que a Sra. Putbus devia chegar à casa dos Verdurin, sua camareira, cujas preferências
Saint-Loup não me ocultara, poderia vir excursionar até a praia e, se fosse num dia em que eu
não estivesse junto de Albertine, tentar corrompê-la. Chegava a indagar de mim mesmo, já que
Cottard não me ocultara que os Verdurin me apreciavam muito, e, embora não querendo parecer
que corriam atrás de mim, como ele dizia, fariam tudo para que eu fosse à casa deles, senão
poderia, mentir ante a promessa de levar-lhes em Paris todos os Guermantes do mundo, obter da
Sra. Verdurin que, sob qualquer pretexto, ela avisasse a Sra. Putbus que lhe seria impossível
conservar em sua casa a camareira e a mandasse de volta o mais rápido possível.
Apesar desses pensamentos e como era sobretudo a presença Andrée que me inquietava,
a tranqüilidade que me haviam trazido as palavras de Albertine durava ainda um pouco. Aliás, eu
sabia que em breve teria menos necessidade dela, pois Andrée deveria partir com Gisele e
Rosemonde, quase no momento em que todo mundo chegava, não tendo que ficar junto de
Albertine mais que algumas semanas. Durante estas, aliás, Albertine pareceu combinar tudo o
que fazia, tudo o que dizia, com vistas à destruir minhas suspeitas, se ainda me ficava alguma, ou
impedi-las de renascerem. Arranjava-se para nunca ficar sozinha com Andrée e insistia quando
voltávamos, para que eu a acompanhasse até a sua porta; e que fosse buscá-la quando
devíamos sair. Entretanto, de seu lado, Andrée procedia de igual maneira, parecia evitar ver
Albertine. E esse aparente conluio entre elas não era o único sinal de que Albertine deveria ter
posto sua amiga ao corrente de nossa conversação, pedindo-lhe que tivesse a gentileza de
acalmar minhas suspeitas absurdas.
Por essa época, ocorreu no Grande Hotel de Balbec um escândalo que não foi próprio
para mudar a inclinação dos meus tormentos. A relação que Bloch mantinha há algum tempo, com
uma antiga atriz, relações secretas que em breve não lhes bastaram mais. O serem vistas
parecia-lhes acrescentar alguma perversidade a seu prazer; desejavam que os olhares de todos
se banhassem em seus perigosos embates. Isto começou com carícias, que afinal podiam ser
atribuídas à intimidade de amigas, no salão de jogo; em torno da mesa de bacará. Depois,
atreveram-se a mais. E por fim, uma tarde, num canto nem mesmo escuro do grande salão de
dança, sobre um canapé, não se constrangeram mais do que se estivessem em sua casa. Dois
oficiais, que estavam não longe dali com suas esposas, foram queixar-se ao gerente. Por um
momento, julgou-se que o seu protesto teria alguma eficácia. Mas tinham contra si o fato de que,
tendo vindo por uma noite de Netteholme, onde moravam, a Balbec, não podiam ser úteis em
nada ao gerente. Ao passo que, mesmo sem que ela soubesse, e ainda que o gerente lhe fizesse
alguma observação, pairava sobre a Srta. Bloch a proteção do Sr. Nissim Bernard. Convém dizer
por quê. O Sr. Nissim Bernard praticava no mais alto grau as virtudes da família. Todos os anos
alugava em Balbec uma vivenda magnífica para o seu sobrinho, e nenhum convite poderia impedi-lo de voltar para jantar em sua casa, que na verdade era a deles. Mas nunca almoçava em casa.
Todos os dias estava ao meio-dia no Grande Hotel. É que ele sustentava, como outros, a um
figurante de ópera, um "empregado", bem semelhante a esses grooms de que falamos, e que nos
fazia pensar nos jovens israelitas de Esther e de Athalie. A falar a verdade, os quarenta anos que
separavam o Sr. Nissim Bernard do jovem empregado deveriam preservar este de um contato
pouco amável. Porém, como diz Racine com tanta sabedoria nos mesmos coros: Mon Dieu,
qu'une vertu naissante Parmi tant de périls marche à pas incertains! Qu'une âme qui te cherche et
veut être innocente Trouve d'obstacle à ses desseins! ["Meu Deus, como uma virtude nascente,
entre tantos perigos, anda a passo inseguro! Uma alma que te procura e quer ser inocente,
quantos obstáculos encontra para os seus desígnios!" (Athalie, ato II, cena IX). (N, do T)]
O jovem empregado, por mais que fosse "longe do mundo criado", no Templo-Palácio de
Balbec, não seguira o conselho de Joad: Sur la richesse et l'or ne mets point ton appui.["Não
busques apoio no ouro ou nas riquezas." (Cit. modif. de Athalie, ato IV, cena II) (N. do T) " Athalie,
ato II, cena IX. (N. do T)]
Talvez achasse uma desculpa, dizendo: "Os pecadores cobrem a terra." Fosse como
fosse, e embora o Sr. Nissim Bernard não esperasse um prazo tão curto, logo ao primeiro dia:
Et soit frayeur encor ou pour le caresser De ses bras innocents il se sentit presser."
[- "E fosse ainda por terror ou para acariciá-lo, sentiu-se apertado por seus braços inocentes." (Cit.
modif. de Athalie, ato I, cena II). (N. do T)]
E, desde o segundo dia, o Sr. Nissim Bernard, passeando o empregado, "a aproximação
contagiosa lhe alterava a inocência". Desde então, a vida do jovem havia mudado.
Era em vão que ele carregava o pão e o sal, como lhe mandava o seu chefe, todo o seu
rosto cantava:
De fleurs en fleurs, de plaisirs en plaisirs Promenons nos désirs. De nos ans passagers le nombre
est incertain. Hâtons-nous aujourd'hui de jouir de la viel L'honneur et les emplois Sont le prix d'une
aveugle et douce obéissance, Pour la triste innocence Qui viendrait élever la voix.
["De flores em flores, de prazeres em prazeres, passeemos nossos desejos. Incerto é o número
de nossos anos passageiros. Apressemo-nos a gozar a vida hoje! A honra e os empregos são o
preço de uma e doce obediência. Pela triste inocência quem viria erguer a voz?" (Citações modif.
de Athalie, ato li, ce IX e ato III, cena VIII). (N. do T)
A falar a verdade, esse engano dos parentes do Sr. Nissim Bernard, os quais não
desconfiavam do motivo real de sua volta a Balbec todos os anos, e do que a pedante sra. Bloch
denominava as suas infidelidades culinárias, esse engano era uma verdade mais profunda e do
segundo grau. Pois o próprio Sr. Nissim Bernard ignorava o que podia entrar de amor à praia de
Balbec, da vista marítima que se tem do restaurante, e dos hábitos maníacos, no seu gosto de
sustentar, como a uma figurante de ópera de outra espécie, a que ainda faltasse um Degas, um
dos empregados da casa que também eram "meninas". Assim, o Sr. Bernard mantinha excelentes
relações com o gerente daquele teatro que era o hotel de Balbec, e com o diretor de cena e
regente Aimé, cujo papel em todo esse negócio não era dos mais claros. Um dia, dar-se-iam
intrigas para conseguir um grande papel, talvez uma posição de mordomo. Enquanto esperava, o
prazer do Sr. Nissim Bernard, por mais poético e sossegadamente contemplativo que fosse, tinha
um tanto das características desses homens mulherengos que sempre sabem. Swann outrora, por
exemplo que, indo a uma festa, encontrarão a sua amante. Mal o Sr. Bernard se assentasse, já
veria o objeto de seus anseios avançar em cena, trazendo na mão frutas ou charutos numa
bandeja. Assim todas as manhãs, após haver beijado a sobrinha, ter se inquietado com os
trabalhos de meu amigo Bloch e dado de comer torrões de açúcar na palma estendida a seus
cavalos, febrilmente se apressava a chegar para almoçar no Grande Hotel. A casa poderia estar
em chamas, sua sobrinha ter um ataque, que mesmo assim sem dúvida ele sairia.
Receava, como a uma peste, um resfriado que o pusesse de cama pois era hipocondríaco
e que houvesse necessidade de mandar pedir a Aimé que lhe enviasse para sua casa, antes da
hora da refeição, o seu jovem amigo.
Aliás, ele gostava do labirinto de corredores, gabinetes secretos, salões, vestiários,
despensas e galerias que era o hotel de Balbec. Por atavismo de oriental amava os serralhos e,
quando saía à noite, viam-no explorar-lhe às escondidas os esconderijos. Ao passo que,
arriscando-se até o subsolo e apesar de tudo procurando não ser visto e evitar o escândalo, o Sr.
Nissim Bernard, em sua busca de jovens levitas, lembrava estes versos de La Juive: Ô Dieu de
nos peres/ Parmi nous descends/ Cache nos mysteres A Toei/ des méchantsils
["ó Deus. dos nossos, pais, desce entre. nós; oculta, nossos mistérios aos olhos, dos malvados!"
Juive 1, A Judia, ópera de Halévy. (N. do T)]
Eu, ao contrário, subia para o quarto de duas irmãs que tinham acompanhado a Balbec,
como camareiras, uma velha dama estrangeira. Era o que a linguagem dos hotéis denominava
"mensageiras", e a de Françoise, que pensava que um mensageiro [courrier] ou uma mensageira
[courriere] e - ali para fazer recados [courses], "recadeiras" [coursieres]. Quanto aos hotéis,
conservaram-se com mais nobreza no tempo em que se cantava: "É o mensageiro de gabinete."
Apesar da dificuldade que um hóspede encontrava para ir aos quartos das camareiras, e
reciprocamente, eu bem depressa liguei-me em amizade muito viva com estas duas pessoas:
Srta. Marie Gineste e Sra. Célesté Albaret. Nascidas ao sopé das altas montanhas da região
central da França, à beira de regatos e de torrentes (a água passava mesmo sob a casa da
família, onde girava um moinho, e que fora devastada diversas vezes pela inundação), elas
pareciam ter-lhes conservado a natureza. Marie Gineste a mais regularmente rápida e sacudida;
Céleste Albaret, mais vagarosa e perseguida, parada como um lago, porém com terríveis acessos
de efervescência em que o seu furor lembrava o perigo das enchentes e dos turbilhões ligados
que arrastam tudo, devastam tudo. Vinham ver-me diversas vezes pela manhã, quando eu ainda
estava deitado. Jamais conheci pessoas tão voluntariamente ignorantes, que não haviam
aprendido absolutamente nada na escola, e cuja linguagem, no entanto, possuía algo de tão
literário que, sem o natural quase selvagem de seu tom, a gente poderia julgar afetadas as suas
palavras. Com uma familiaridade que não aperfeiçoo, apesar dos elogios (que não estão aqui
para me louvar, mas para louvar o gênio estranho de Céleste) e das críticas, igualmente falsas,
mas muito sinceras, que estas frases parecem comportar a meu respeito, enquanto eu
mergulhava pãezinhos no meu leite, Céleste me dizia:
- Ó diabinho preto de cabelo de galo, ó que profunda malícia! Não sei em que pensava sua
mãe quando o fez, pois o senhor é igual a um pássaro. Olha, Marie, não parece até que ele alisa
as penas, e vira o pescoço com facilidade? Tem um ar tão leve que parece estar aprendendo a
voar. Ah, o senhor tem sorte de que aqueles que o geraram o tenham feito nascer entre os ricos;
que seria do senhor, perdulário como é? Olha como ele joga fora o pãozinho só porque tocou na
cama. Bem, agora derramou o leite, espere que vou lhe pôr um guardanapo, pois o senhor não
saberia colocá-lo sozinho; nunca vi ninguém tão bobo e desajeitado como o senhor. -
Ouvia-se então o ruído mais regular de torrente de Marie Gineste que, furiosa, fazia
reprimendas à irmã:
- Ora, Céleste, não vais calar a boca? Estás louca para falares ao senhor desse modo? -
Céleste limitava-se a sorrir; e, como eu detestava que pusessem um guardanapo:
- Mas não, Marie! Vê só, olha como se ergue feito uma serpente. Uma verdadeira
serpente, estou dizendo.-
continua na página 114...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap II - Tranquilizado pela minha explicação com Albertine)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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