sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap II - Tranquilizado pela minha explicação com Albertine)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Segundo

Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin. 
 

continuando...

     Tranquilizado pela minha explicação com Albertine, recomecei a viver mais junto de minha mãe. Ela gostava de me falar docemente do tempo em que minha avó era mais jovem. Temendo que eu me censurasse pelas tristezas com que poderia ter ensombrado o fim daquela vida, ela voltava de bom grado aos anos em que meus primeiros estudos haviam causado a minha avó alegrias que até então me foram sempre ocultadas. Falávamos de novo sobre Combray. Minha mãe me disse que lá pelo menos eu lia e que em Balbec deveria fazer o mesmo, caso não escrevesse. Respondi que, justamente para me rodear das lembranças de Combray e dos belos pratos pintados, gostaria de reler As Mil e Uma Noites. Como outrora, em Combray, quando ela me dava livros de aniversário, foi às escondidas, para me fazer uma surpresa, que minha mãe mandou buscar, ao mesmo tempo, As Mil e Uma Noites, de Galland, e As Mil Noites e Uma Noite, de Mardrus. Mas depois de haver lançado um olhar sobre as duas traduções, minha mãe bem gostaria que eu me limitasse à de Galland, conquanto temesse influenciar-me devido ao seu respeito pela liberdade intelectual, ao receio de intervir desastradamente na vida de meu pensamento, e ao sentimento de que, sendo mulher, julgava faltar-lhe, por um lado, a necessária competência literária, e, por outro, achava que não devia julgar as leituras de um rapaz de acordo com aquilo que a chocava. Lendo certos contos, revoltara-se com a imoralidade do assunto e a crueza da expressão. Mas sobretudo, conservando preciosamente como relíquias não apenas o broche, a sombrinha, a capa e o volume da Sra. de Sévigné, mas também os hábitos de pensamento e linguagem de sua mãe, procurando em qualquer ocasião a opinião que esta teria dado, minha mãe não podia duvidar da condenação que minha avó teria pronunciado contra o livro de Mardrus. Lembrava-se que em Combray, enquanto que, antes de partir para os lados de Méséglise, eu lia Augustin Thierry, minha avó, contente pelas minhas leituras e meus passeios, indignava-se entretanto ao ver aquele, cujo nome permanecia ligado a este hemistíquio: "Reina, após, Meroveu" chamado Merowig; recusar-se Carolíngios em vez de Carlovíngios, aos quais permanecia fiel. Enfim eu lhe contara o que minha avó tinha pensado dos nomes gregos que segundo Leconte de Lisle, dava aos deuses de Homero, chegando até a um dever religioso a adoção da ortografia grega para as coisas mais simples, achando que nisso consistia o talento literário. Tendo, por exemplo, que dizer numa carta que o vinho bebido em sua casa era um verdadeiro néctar, ele escrevia "um verdadeiro nektar", com k, o que lhe permitia troça de Lamartine. Ora, se uma Odisseia, de onde estivessem ausentes os nomes de Ulisses e de Minerva, já não era para a minha avó a Odisseia, que diria então se visse já deformado na capa o título de suas Mil e Uma Noites, não mais encontrando, transcritos exatamente como ela o tempo todo se habituara a dizê-los, os nomes imortalmente familiares de Sherazade, de Dinazarda, e onde, eles próprios desbalizados, se é que se pode aplicar o vocábulo à histórias muçulmanas, o encantador Califa e os poderosos Gênios; os mal se reconheciam, sendo denominados, um o "Khalifat", os outros "Gennis"? No entanto, minha mãe entregou-me as duas obras, e eu lhe disse que as leria nos dias em que estivesse cansado demais para passear. Aliás, tais dias não eram muito freqüentes. Como antigamente, íamos merendar "em grupo", Albertine, suas amigas e eu, no rochedo ou na granja Marie-Antoinette. Havia ocasiões, porém, em que Albertine me dava este grande prazer. Dizia-me: 

- Hoje eu quero estar um pouco sozinha com você, será mais agradável que fiquemos os dois juntos. -

     Então dizia que tinha coisas a fazer, de que aliás não precisava prestar contas, e para que as outras, se fossem sem nós passear e merendar, não pudessem nos encontrar, íamos sozinhos, como dois amantes, à Bagatelle ou à Croix d'Heulan, ao passo que o grupo, que jamais teria tido a ideia de nos procurar por lá, aonde nunca ia, permanecia indefinidamente em Marie-Antoinette, na esperança de ver-nos chegar.
     Lembro-me dos dias quentes de então, em que da testa dos empregados da granja, que trabalhavam ao sol, caía uma gota de suor, vertical, regular, intermitente, como a gota d'água de um reservatório, e se alternava com a queda do fruto maduro que se desprendia da árvore nos cercados vizinhos; continuam sendo, ainda hoje, junto com esse mistério de uma mulher oculta, a parte mais consistente de todo amor que se me apresente. Uma mulher de quem me falam e na qual não pensaria um só instante, eis que modifico todos os encontros da semana para conhecê-la, se se trata de uma semana em que faz um tempo daqueles, se devo vê-la nalguma granja isolada. Por mais que saiba que esse tipo de tempo e de encontro não são dela, são todavia a isca bem conhecida a mim, a que me deixo prender e que basta para me agarrar. Sei que essa mulher, num tempo frio, numa cidade, poderia tê-la desejado, mas sem a companhia de um sentimento romanesco, sem me apaixonar; o amor nem por isso é menos forte, uma vez que me encadeou graças às circunstâncias; apenas é mais melancólico, como na vida se tornam os nossos sentimentos pelas pessoas, à medida que mais percebemos a parte cada vez menor que elas representam para os mesmos, e que o amor novo, que desejaríamos fosse tão durável, abreviado como nossa própria vida, será o último.
     Havia ainda poucas pessoas da sociedade em Balbec, poucas moças. Às vezes eu via uma ou outra, parada na praia, sem atrativo, e que no entanto muitas coincidências pareciam atestar ser a mesma de quem eu me desesperava por não poder me aproximar no momento em que ela saía com as amigas do carrossel ou da aula de ginástica. Se era a mesma (e eu evitava falar nisso a Albertine), a moça que eu julgara inebriante não existia. Mas eu não conseguia ter certeza, pois o rosto dessas moças não ocupava na praia uma dimensão, não oferecia uma forma permanente, contraído, dilatado, transformado como era pela minha própria expectativa, pela inquietação do meu desejo, ou por um bem-estar que se basta a si mesmo, pelos vestidos diferentes que trajam, pela rapidez de seu passo ou pela sua imobilidade. Todavia, bem de perto, duas ou três me pareciam adoráveis. Cada vez que via uma destas, tinha vontade de levá-las para a avenida dos Tamaris, ou para as dunas, ou, melhor ainda, para os rochedos. Mas ainda que no desejo, em comparação com a indiferença, já entre aquela audácia que é um verdadeiro começo unilateral de realização, mesmo assim, entre o meu desejo e a ação, que seria o meu pedido para beijá-la, havia todo o "branco" indefinido da hesitação e da timidez. Então eu entrava na confeitaria, bebia, um após outro, sete a oito cálices de vinho do porto. Em seguida, em vez do intervalo impossível de preencher entre o meu desejo e a ação, o efeito do álcool traçava uma linha que os reunia a ambos. Não havia mais lugar para o temor ou a hesitação. Parecia-me que a moça ia voar para mim. Eu ia até ela, e por si sós iam saindo de meus lábios estas palavras: 

- Gostaria de passear com você. Não quer que a leve aos rochedos? Lá ninguém nos incomoda, lá atrás do bosquezinho que abriga do vento a casa desmontável, atualmente desabitada... -

     Todas as dificuldades da vida estavam aplainadas, já não havia obstáculos para o enlaçamento de nossos corpos. Pelo menos, não para mim. Pois para ela, que não havia bebido, eles não tinham sido volatilizados. Se o tivesse feito, o universo perderia alguma realidade a seus olhos, e mesmo assim, o sonho longamente acariciado que então lhe pareceria de súbito realizável talvez absolutamente não fosse o de cair nos meus braços.
     Não só as moças eram pouco numerosas, mas, naquela estação; ainda não era "a estação", ficavam por pouco tempo. Lembro-me de uma tez rubra de olhos verdes, duas faces coradas, e cujo rosado duplo se assemelhava aos grãos alados de certas árvores. Não sei que brisa a trouxera a Balbec e que outra a levara embora. Foi de modo brusco que durante vários dias senti um desgosto que me atrevi a confessar à Albertine, quando compreendi que ela se fora para sempre.
     É preciso dizer que muitas delas eram moças que eu ou absolutamente não conhecia, ou deixara de ver há muitos anos. Frequentemente, antes de me encontrar com elas, eu lhes escrevia. Se a sua resposta fazia crer num possível amor, que alegria! No começo de uma amizade, uma mulher, e até mesmo se esta amizade não se deve realizar em seguida, não é possível separar-se dessas primeiras cartas recebidas. Desejaria tê-las o tempo todo conosco, como lindas flores recebidas, ainda bem frescas, e que não cessamos de contemplar senão para respirá-las de mais perto. A frase que sabemos de cor é agradável de reler e, naquelas menos literalmente apreendidas, desejamos verificar o grau de ternura de uma expressão. Escreveu ela: "Votre chere lettre"? Pequena decepção na doçura que respiramos e que deve ser atribuída a uma leitura muito rápida; à escrita ilegível da correspondente; ela não escreveu: "et votre chere leHres, mas: "en voyant cette lettre". Mas o restante é tão carinhoso. Oh! Quanta flores iguais chegam amanhã! Depois, isto apenas não é bastante; é preciso confrontar, às palavras escritas, os olhares, a voz. Marcamos encontro, e sem que ela talvez tenha mudado ali onde julgávamos, pela descrição feita; ou pela recordação pessoal, encontrar a fada Viviane, achamos o Gato de Botas. Mesmo assim, marcamos encontro para o dia seguinte, pois apesar de tudo é ela e o que desejávamos era ela. Ora, esses desejos por uma mulher com quem se sonhou não tornam absolutamente necessária a beleza de um determinado traço. Tais desejos são apenas o desejo de uma criatura; vagos como o perfume, assim como o estoraque era o desejo de Protiera, o açafrão o desejo etéreo, as substâncias aromáticas o desejo de Hera, a mirra o perfume das nuvens, o maná o desejo de Nicéia, o incenso perfume do mar. Mas estes perfumes cantados pelos hinos órficos são bem menos numerosos do que as divindades a quem adoram. A mirra é o perfume das nuvens; mas também de Protógonos, de Netuno, de Nereu, de Leteo; o incenso é o perfume do mar, mas também da bela Dicéia, de Têmis, de Circe, das nove musas, de Éos, de Mnemósina, do Dia, de Dikaiosuné. Quanto ao estoraque, o maná e as substâncias aromáticas, seria um não acabar de dizer as divindades que os inspiram, de tão numerosas que são. Anfíetes possui todos os perfumes, exceto o incenso; e Gaia rejeita apenas as favas e as substâncias aromáticas. Assim, eram desse tipo os desejos que eu tinha dessas moças. Menos numerosos do que elas, mudavam-se em decepções e tristezas bem semelhantes umas às outras. Eu jamais quis a mirra. Reservei-a para Jupien e para a princesa de Guermantes, pois ela é o desejo de Protógonos, "o de dois sexos, tendo o mugido do touro, de inumeráveis orgias, memorável, inenarrável, descendo, cheio de júbilo, para os sacrifícios dos orgiofantas".
     Mas em breve a estação atingiu o auge; todos os dias era uma chegada nova e, para a frequência de súbito crescente de meus passeios, que substituía a leitura agradável das Mil e Uma Noites, havia uma causa desprovida de prazer e que os envenenava a todos. A praia estava agora povoada de moças; e, como a ideia que me havia sugerido Cottard, embora não me despertasse novas suspeitas, tornara-me frágil e sensível a esse respeito, e cauteloso para não deixá-las formarem-se em mim; quando uma jovem chegava a Balbec eu me sentia pouco à vontade, propunha a Albertine as excursões mais afastadas, para que ela não pudesse travar conhecimento e, até, se fosse possível, nem sequer visse a recém-chegada. Naturalmente, temia ainda mais aquelas cujos maus costumes eram bem conhecidos, ou de quem se sabia a má reputação; tentava persuadir a minha amiga de que essa má reputação não se baseava em nada, era caluniosa, talvez por um medo inconfesso, ainda inconsciente, de que ela procurasse unir-se à depravada, ou que lamentasse não poder procurá-la por minha causa, ou que julgasse, pelo número de exemplos, que um vício tão disseminado não seria condenável. Negando-o em cada culpada, eu chegava a pretender nada menos que o lesbianismo não existia. Albertine adotava a minha incredulidade quanto ao vício desta ou daquela: 

- Não, creio que é só atitude; ela quer se mostrar. -

     Mas então eu quase lamentava ter repugnado pela inocência, pois desagradava-me que Albertine, tão severa antigamente, pudesse achar que essa "atitude" fosse algo de muito lisonjeiro, vantajoso, para que uma mulher isenta desses gostos procurasse fingi-los. Gostaria que mulher nenhuma chegasse mais a Balbec; tremia ao pensar que, como era reais ou menos a época em que a Sra. Putbus devia chegar à casa dos Verdurin, sua camareira, cujas preferências Saint-Loup não me ocultara, poderia vir excursionar até a praia e, se fosse num dia em que eu não estivesse junto de Albertine, tentar corrompê-la. Chegava a indagar de mim mesmo, já que Cottard não me ocultara que os Verdurin me apreciavam muito, e, embora não querendo parecer que corriam atrás de mim, como ele dizia, fariam tudo para que eu fosse à casa deles, senão poderia, mentir ante a promessa de levar-lhes em Paris todos os Guermantes do mundo, obter da Sra. Verdurin que, sob qualquer pretexto, ela avisasse a Sra. Putbus que lhe seria impossível conservar em sua casa a camareira e a mandasse de volta o mais rápido possível.
     Apesar desses pensamentos e como era sobretudo a presença Andrée que me inquietava, a tranqüilidade que me haviam trazido as palavras de Albertine durava ainda um pouco. Aliás, eu sabia que em breve teria menos necessidade dela, pois Andrée deveria partir com Gisele e Rosemonde, quase no momento em que todo mundo chegava, não tendo que ficar junto de Albertine mais que algumas semanas. Durante estas, aliás, Albertine pareceu combinar tudo o que fazia, tudo o que dizia, com vistas à destruir minhas suspeitas, se ainda me ficava alguma, ou impedi-las de renascerem. Arranjava-se para nunca ficar sozinha com Andrée e insistia quando voltávamos, para que eu a acompanhasse até a sua porta; e que fosse buscá-la quando devíamos sair. Entretanto, de seu lado, Andrée procedia de igual maneira, parecia evitar ver Albertine. E esse aparente conluio entre elas não era o único sinal de que Albertine deveria ter posto sua amiga ao corrente de nossa conversação, pedindo-lhe que tivesse a gentileza de acalmar minhas suspeitas absurdas.
     Por essa época, ocorreu no Grande Hotel de Balbec um escândalo que não foi próprio para mudar a inclinação dos meus tormentos. A relação que Bloch mantinha há algum tempo, com uma antiga atriz, relações secretas que em breve não lhes bastaram mais. O serem vistas parecia-lhes acrescentar alguma perversidade a seu prazer; desejavam que os olhares de todos se banhassem em seus perigosos embates. Isto começou com carícias, que afinal podiam ser atribuídas à intimidade de amigas, no salão de jogo; em torno da mesa de bacará. Depois, atreveram-se a mais. E por fim, uma tarde, num canto nem mesmo escuro do grande salão de dança, sobre um canapé, não se constrangeram mais do que se estivessem em sua casa. Dois oficiais, que estavam não longe dali com suas esposas, foram queixar-se ao gerente. Por um momento, julgou-se que o seu protesto teria alguma eficácia. Mas tinham contra si o fato de que, tendo vindo por uma noite de Netteholme, onde moravam, a Balbec, não podiam ser úteis em nada ao gerente. Ao passo que, mesmo sem que ela soubesse, e ainda que o gerente lhe fizesse alguma observação, pairava sobre a Srta. Bloch a proteção do Sr. Nissim Bernard. Convém dizer por quê. O Sr. Nissim Bernard praticava no mais alto grau as virtudes da família. Todos os anos alugava em Balbec uma vivenda magnífica para o seu sobrinho, e nenhum convite poderia impedi-lo de voltar para jantar em sua casa, que na verdade era a deles. Mas nunca almoçava em casa. Todos os dias estava ao meio-dia no Grande Hotel. É que ele sustentava, como outros, a um figurante de ópera, um "empregado", bem semelhante a esses grooms de que falamos, e que nos fazia pensar nos jovens israelitas de Esther e de Athalie. A falar a verdade, os quarenta anos que separavam o Sr. Nissim Bernard do jovem empregado deveriam preservar este de um contato pouco amável. Porém, como diz Racine com tanta sabedoria nos mesmos coros: Mon Dieu, qu'une vertu naissante Parmi tant de périls marche à pas incertains! Qu'une âme qui te cherche et veut être innocente Trouve d'obstacle à ses desseins! ["Meu Deus, como uma virtude nascente, entre tantos perigos, anda a passo inseguro! Uma alma que te procura e quer ser inocente, quantos obstáculos encontra para os seus desígnios!" (Athalie, ato II, cena IX). (N, do T)]
     O jovem empregado, por mais que fosse "longe do mundo criado", no Templo-Palácio de Balbec, não seguira o conselho de Joad: Sur la richesse et l'or ne mets point ton appui.["Não busques apoio no ouro ou nas riquezas." (Cit. modif. de Athalie, ato IV, cena II) (N. do T) " Athalie, ato II, cena IX. (N. do T)]
     Talvez achasse uma desculpa, dizendo: "Os pecadores cobrem a terra." Fosse como fosse, e embora o Sr. Nissim Bernard não esperasse um prazo tão curto, logo ao primeiro dia: Et soit frayeur encor ou pour le caresser De ses bras innocents il se sentit presser." [- "E fosse ainda por terror ou para acariciá-lo, sentiu-se apertado por seus braços inocentes." (Cit. modif. de Athalie, ato I, cena II). (N. do T)]
     E, desde o segundo dia, o Sr. Nissim Bernard, passeando o empregado, "a aproximação contagiosa lhe alterava a inocência". Desde então, a vida do jovem havia mudado.
     Era em vão que ele carregava o pão e o sal, como lhe mandava o seu chefe, todo o seu rosto cantava:

De fleurs en fleurs, de plaisirs en plaisirs Promenons nos désirs. De nos ans passagers le nombre est incertain. Hâtons-nous aujourd'hui de jouir de la viel L'honneur et les emplois Sont le prix d'une aveugle et douce obéissance, Pour la triste innocence Qui viendrait élever la voix. ["De flores em flores, de prazeres em prazeres, passeemos nossos desejos. Incerto é o número de nossos anos passageiros. Apressemo-nos a gozar a vida hoje! A honra e os empregos são o preço de uma e doce obediência. Pela triste inocência quem viria erguer a voz?" (Citações modif. de Athalie, ato li, ce IX e ato III, cena VIII). (N. do T) 

     Desde esse dia, o Sr. Nissim Bernard jamais deixara de vir ocupar sua mesa no almoço (como o teria feito à orquestra alguém que sustenta uma figurante, figurante essa de um gênero fortemente caracterizado e que ainda espera o seu Degas). O prazer do Sr. Nissim Bernard era seguir na sala de jantar, e até às longínquas perspectivas onde, sob sua palmeira, se assentava o caixa, as evoluções do adolescente atencioso no serviço, no serviço de todos e menos no do Sr. Nissim Bernard; desde que este o sustentava, fosse porque o jovem menino do coro não julgasse necessário manifestar a mesma gentileza a alguém de quem se sabia suficientemente amado, fosse por que tal amor o irritasse ou que temesse que, uma vez descoberto, lhe fizesse perder outras ocasiões. Mas, até mesmo essa frieza agradava ao Sr. Nissim Bernard, por tudo o que ela dissimulava. Seja por atavismo hebraico ou pela profanação do sentimento cristão, singularmente se deleitava com a cerimônia raciniana, fosse judia ou católica. Caso se tratasse de uma verdadeira representação de Esther ou de Athalie, o Sr. Nissim Bernard teria lamentado que a diferença de séculos não lhe tivesse permitido conhecer o autor, Jean Racine, a fim de obter um papel maior para o seu protegido. Mas, como a cerimônia do almoço não provinha de nenhum escritor, ele se contentava em estar em bons termos com o gerente e com Aimé para que o "jovem israelita" fosse promovido às funções desejadas, de subchefe ou até mesmo de chefe; graduado. Tinham-lhe sido oferecidas as de despenseiro. Mas o Sr. Bernard o obrigou a recusá-la, pois assim não poderia mais vir vê-lo, todos os dias, correndo pelo refeitório verde e fazer-se servir por ele como um estranho. Tal prazer era tão forte que todos os anos o Sr. Bernard regressava a Balbec e almoçava fora, hábitos em que o Sr. Bloch via, no primeiro, um gosto poético pela claridade e os ocasos daquela costa preferida a todas as outras; e, no segundo, uma inveterada mania de velho celibatário.
     A falar a verdade, esse engano dos parentes do Sr. Nissim Bernard, os quais não desconfiavam do motivo real de sua volta a Balbec todos os anos, e do que a pedante sra. Bloch denominava as suas infidelidades culinárias, esse engano era uma verdade mais profunda e do segundo grau. Pois o próprio Sr. Nissim Bernard ignorava o que podia entrar de amor à praia de Balbec, da vista marítima que se tem do restaurante, e dos hábitos maníacos, no seu gosto de sustentar, como a uma figurante de ópera de outra espécie, a que ainda faltasse um Degas, um dos empregados da casa que também eram "meninas". Assim, o Sr. Bernard mantinha excelentes relações com o gerente daquele teatro que era o hotel de Balbec, e com o diretor de cena e regente Aimé, cujo papel em todo esse negócio não era dos mais claros. Um dia, dar-se-iam intrigas para conseguir um grande papel, talvez uma posição de mordomo. Enquanto esperava, o prazer do Sr. Nissim Bernard, por mais poético e sossegadamente contemplativo que fosse, tinha um tanto das características desses homens mulherengos que sempre sabem. Swann outrora, por exemplo que, indo a uma festa, encontrarão a sua amante. Mal o Sr. Bernard se assentasse, já veria o objeto de seus anseios avançar em cena, trazendo na mão frutas ou charutos numa bandeja. Assim todas as manhãs, após haver beijado a sobrinha, ter se inquietado com os trabalhos de meu amigo Bloch e dado de comer torrões de açúcar na palma estendida a seus cavalos, febrilmente se apressava a chegar para almoçar no Grande Hotel. A casa poderia estar em chamas, sua sobrinha ter um ataque, que mesmo assim sem dúvida ele sairia.
     Receava, como a uma peste, um resfriado que o pusesse de cama pois era hipocondríaco e que houvesse necessidade de mandar pedir a Aimé que lhe enviasse para sua casa, antes da hora da refeição, o seu jovem amigo.
     Aliás, ele gostava do labirinto de corredores, gabinetes secretos, salões, vestiários, despensas e galerias que era o hotel de Balbec. Por atavismo de oriental amava os serralhos e, quando saía à noite, viam-no explorar-lhe às escondidas os esconderijos. Ao passo que, arriscando-se até o subsolo e apesar de tudo procurando não ser visto e evitar o escândalo, o Sr. Nissim Bernard, em sua busca de jovens levitas, lembrava estes versos de La Juive: Ô Dieu de nos peres/ Parmi nous descends/ Cache nos mysteres A Toei/ des méchantsils ["ó Deus. dos nossos, pais, desce entre. nós; oculta, nossos mistérios aos olhos, dos malvados!" Juive 1, A Judia, ópera de Halévy. (N. do T)]
     Eu, ao contrário, subia para o quarto de duas irmãs que tinham acompanhado a Balbec, como camareiras, uma velha dama estrangeira. Era o que a linguagem dos hotéis denominava "mensageiras", e a de Françoise, que pensava que um mensageiro [courrier] ou uma mensageira [courriere] e - ali para fazer recados [courses], "recadeiras" [coursieres]. Quanto aos hotéis, conservaram-se com mais nobreza no tempo em que se cantava: "É o mensageiro de gabinete."
     Apesar da dificuldade que um hóspede encontrava para ir aos quartos das camareiras, e reciprocamente, eu bem depressa liguei-me em amizade muito viva com estas duas pessoas: Srta. Marie Gineste e Sra. Célesté Albaret. Nascidas ao sopé das altas montanhas da região central da França, à beira de regatos e de torrentes (a água passava mesmo sob a casa da família, onde girava um moinho, e que fora devastada diversas vezes pela inundação), elas pareciam ter-lhes conservado a natureza. Marie Gineste a mais regularmente rápida e sacudida; Céleste Albaret, mais vagarosa e perseguida, parada como um lago, porém com terríveis acessos de efervescência em que o seu furor lembrava o perigo das enchentes e dos turbilhões ligados que arrastam tudo, devastam tudo. Vinham ver-me diversas vezes pela manhã, quando eu ainda estava deitado. Jamais conheci pessoas tão voluntariamente ignorantes, que não haviam aprendido absolutamente nada na escola, e cuja linguagem, no entanto, possuía algo de tão literário que, sem o natural quase selvagem de seu tom, a gente poderia julgar afetadas as suas palavras. Com uma familiaridade que não aperfeiçoo, apesar dos elogios (que não estão aqui para me louvar, mas para louvar o gênio estranho de Céleste) e das críticas, igualmente falsas, mas muito sinceras, que estas frases parecem comportar a meu respeito, enquanto eu mergulhava pãezinhos no meu leite, Céleste me dizia: 

- Ó diabinho preto de cabelo de galo, ó que profunda malícia! Não sei em que pensava sua mãe quando o fez, pois o senhor é igual a um pássaro. Olha, Marie, não parece até que ele alisa as penas, e vira o pescoço com facilidade? Tem um ar tão leve que parece estar aprendendo a voar. Ah, o senhor tem sorte de que aqueles que o geraram o tenham feito nascer entre os ricos; que seria do senhor, perdulário como é? Olha como ele joga fora o pãozinho só porque tocou na cama. Bem, agora derramou o leite, espere que vou lhe pôr um guardanapo, pois o senhor não saberia colocá-lo sozinho; nunca vi ninguém tão bobo e desajeitado como o senhor. -

     Ouvia-se então o ruído mais regular de torrente de Marie Gineste que, furiosa, fazia reprimendas à irmã: 

- Ora, Céleste, não vais calar a boca? Estás louca para falares ao senhor desse modo? -

     Céleste limitava-se a sorrir; e, como eu detestava que pusessem um guardanapo: 

- Mas não, Marie! Vê só, olha como se ergue feito uma serpente. Uma verdadeira serpente, estou dizendo.-

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