A Montanha Mágica
Capítulo VII
O grande tédio
...
Mais uma vez ressoa a voz do Conselheiro Behrens. Prestemos-lhe atenção! Talvez seja a
última vez que a ouçamos. Até mesmo esta história deve ter um fim; já se prolongou por
bastante tempo, ou melhor: o tempo do seu conteúdo vai se precipitando de tal forma que
também a sua duração musical está na iminência de se esgotar. Assim pode ser que não se nos
ofereça mais nenhuma oportunidade para escutar as alegres cadências da pitoresca linguagem de
Radamanto.
– Castorp, meu velho – disse ele –, o senhor se aborrece. Diariamente vejo como anda
entediado. O mau humor está escrito na sua cara. O senhor é um sujeito blasé, Castorp. Tem sido
mimado por experiências sensacionais, e quando não lhe apresentamos todos os dias uma
novidade de primeira ordem, torce o nariz e resmunga contra a época das vacas magras. Tenho
ou não tenho razão?
Hans Castorp permaneceu calado, e em face desta atitude é de supor que realmente
reinassem trevas no seu interior.
– Tenho razão como sempre – respondeu Behrens à sua própria pergunta. – Olhe,
cidadão carrancudo, antes de espalhar por aqui o veneno do descontentamento alemão, deveria
dar-se conta de que absolutamente não se acha abandonado por Deus e pelos homens, mas que
as autoridades velam pelo seu bem, velam sem cessar; sim, senhor! e não param de procurar
meios de diverti-lo. O velho Behrens está a postos. E agora vamos deixar de brincadeiras, meu
filho. Tive uma ideia para resolver o seu caso, ocorreu-me uma coisa nas minhas noites de vigília.
A gente poderia falar de uma inspiração. Com efeito, espero muito da minha idéia, quer dizer,
espero nada mais nada menos do que a desintoxicação do senhor e o seu regresso triunfal para
muito mais cedo do que pensa.
“Está arregalando os olhos, heim?”, prosseguiu, depois de uma pausa bem calculada, se
bem que Hans Castorp absolutamente não arregalasse os olhos, mas o fitasse com uma expressão
entre sonolenta e distraída. “Não pode imaginar o que o velho Behrens quer dizer com isso.
Quero dizer é o seguinte: há no seu interior qualquer coisa que não está certa, Castorp. Isso não
pode ter escapado à sua prezada inteligência. Não está certa, no sentido de que os seus
fenômenos de intoxicação há muito tempo não correspondem ao estado local, que
incontestavelmente melhorou muito. Não é apenas desde ontem que esse fato me dá que pensar.
Temos aqui a sua última radiografia... Vamos olhar esse troço contra a luz. Como o senhor está
vendo, nem os piores resmungões e pessimistas, para usar uma das expressões prediletas do
nosso imperador, poderiam encontrar aqui muitos defeitos. Alguns focos acham-se
completamente resolvidos, a área diminuiu e tem contornos mais nítidos, o que, como o senhor
na sua sabedoria não ignora, indica a cura progressiva. Esse estado de coisas não explica a
irregularidade da sua temperatura doméstica, meu caro rapaz. E o médico vê-se na obrigação de
procurar outras causas.”
Um movimento de cabeça de Hans Castorp evidenciou um esforço moderado de mostrar
alguma curiosidade cortês.
– Pois é, meu caro Castorp, sem dúvida pensa o senhor agora que o velho Behrens deve
admitir ter cometido um erro no tratamento. Nesse caso, o senhor estaria redondamente
enganado e julgaria mal tanto a situação como o velho Behrens. O seu tratamento não foi errado;
apenas pode ser que a sua orientação tenha sido unilateral. Cheguei a ventilar a possibilidade de
os seus sintomas não terem, desde o começo, a sua origem exclusiva na tuberculosis; e isso porque
hoje me parece improvável que ainda continuem tendo a sua origem nela. Deve existir uma outra
fonte de perturbações. A meu ver, o senhor tem “cocos”...
“Sim!”, repetiu o conselheiro enfaticamente, depois de ter registrado o sinal de aprovação
que Hans Castorp lhe devia por esse diagnóstico, “segundo a minha íntima convicção, o senhor
tem ‘estreptos’, o que, aliás, não é nenhum motivo para se assustar desta forma.”
(Absolutamente não se podia falar de susto. A fisionomia de Hans Castorp expressava
antes certa admiração irônica, ou antes a agudeza que se lhe deparava ou antes a nova dignidade
que lhe conferia a hipótese do conselheiro.)
– Não há razão para pânico – volveu o médico, variando o seu consolo. – Todo mundo
tem “cocos”. Qualquer burro tem “estreptos”, de maneira que o senhor não precisa gabar-se.
Não faz ainda muito tempo que sabemos que o homem pode ter estreptococos no sangue, sem
que se produzam fenômenos mais ou menos perceptíveis que indiquem a infecção. Achamo-nos
em presença de um fato que muitos dos meus colegas ignoram, por enquanto, a saber: que o
sangue pode conter tubérculos, sem que estes causem as menores consequências. Já não estamos
muito, distantes da teoria de que a tuberculose é, na verdade, uma doença do sangue.
Hans Castorp achou isso muito interessante.
– Bem, quando falo de estreptos – recomeçou Behrens – o senhor não deve pensar na
forma grave da doença, que é a mais conhecida. A análise bacteriológica do seu sangue deve
demonstrar se esses bichinhos simpáticos realmente se instalaram no seu interior. Mas não será
senão pelos efeitos de um tratamento de estreptovacina que constataremos se seu estado febril
provém ou não provém deles. É este o caminho, meu caro amigo, que seguiremos, e, como já lhe
expliquei, espero dele resultados dos mais imprevisíveis. Embora a tuberculose seja de cura
muitíssimo demorada, enfermidades desse tipo podem ser curadas em pouco tempo. Se o senhor
mostrar a menor reação a estas injeções, em seis semanas o senhor estará tão bem quanto um
peixe dentro d’água. Que me diz agora? O velho Behrens está ou não está alerta? – Por enquanto só se trata de uma hipótese – disse Hans Castorp sem energia. – Uma hipótese que pode ser comprovada. Uma hipótese sumamente fecunda – retrucou
o conselheiro. – O senhor vai ver até que ponto é fecunda, quando os cocos se multiplicarem nas
nossas culturas. Amanhã de tarde, Castorp, vai entrar na faca; faremos uma sangria segundo as
regras da arte dos barbeiros de aldeia. Isso é um prazer sui generis e pode exercer sobre o corpo e a
alma os mais milagrosos efeitos...
Hans Castorp declarou-se disposto a submeter-se a essa diversão e agradeceu
polidamente pela atenção que lhe era dedicada. Com a cabeça inclinada para o ombro,
acompanhou com o olhar o conselheiro, que se afastava remando. A intervenção do médico
chefe realizara-se precisamente num momento crítico. Radamanto interpretara de modo bastante
acertado a fisionomia e o estado de espírito do pensionista, e sua nova experiência destinava-se –
destinava-se expressamente, sem disfarçar a intenção – a fazer Hans Castorp avançar além do
ponto morto em que o paciente se encontrava havia pouco, segundo se podia concluir do seu
semblante, que recordava exatamente o que mostrara o saudoso joachim na época em que certas
decisões bruscas e indisciplinadas se haviam preparado no seu íntimo.
E mais: parecia a Hans Castorp que não somente ele próprio chegara a esse ponto morto,
mas que ao mundo na sua totalidade acontecera o mesmo, ou melhor: tornava-se-Ihe difícil
distinguir nesse caso os fatores particulares dos gerais. Suas relações com uma autêntica
personalidade tinham acabado de forma excêntrica, que produzira múltipla agitação no sanatório.
Clávdia Chauchat abandonara novamente a sociedade dos pensionistas, depois do beijo de
despedida que, à sombra de uma grande e trágica renúncia, e num espírito de reverente devoção,
fora trocado entre ela e o grande amigo do seu senhor. E desde aquele clímax o jovem sentia que
alguma coisa não andava certa no mundo e na vida; tudo lhe dava a impressão de ter saído dos
eixos; de um modo singular e cada vez mais intenso, tudo se lhe afigurava angustiante; era como
se um demônio se tivesse apossado do poder, um demônio cuja influência perigosa e tola desde
muito tempo já se fizera bastante sensível, mas que, a essa altura, se arrogava uma autoridade
irrestrita, capaz de inspirar um secreto terror e de sugerir pensamentos de fuga: o demônio que se
chamava “tédio”.
Decerto julgarão que o narrador exagera crassa e romanticamente ao estabelecer uma
relação entre o conceito de tédio e o princípio demoníaco, e ao atribuir ao primeiro o efeito de
um pavor místico. E todavia não contamos histórias da carochinha; pelo contrário, atemo-nos
exatamente às experiências pessoais do nosso singelo herói, experiências essas que – não
podemos relatar como – chegamos a conhecer, e que nos fornecem a prova cabal de ser possível,
sob certas circunstâncias, que o tédio assuma tal caráter e inspire sentimentos desse gênero. Hans
Castorp olhava em torno de si... Via coisas perfeitamente sinistras, perniciosas, e sabia o que se
lhe deparava: era a vida sem tempo, a vida sem cuidados nem esperanças, a vida que estagnava
sob a forma de uma atividade abastardada, a vida morta.
Achava-se ela num movimento constante; ocupações de toda espécie existiam lado a lado,
mas de vez em quando uma dentre elas degenerava a ponto de se tornar uma loucura geral à qual
todos se entregavam freneticamente. O diletantismo fotográfico, por exemplo, ocupara sempre
lugar importante no mundo do Berghof; duas vezes, porém – quem vivia bastante tempo ali em
cima podia presenciar a volta periódica de tais epidemias –, a paixão pela fotografia transformara
se em mania geral que se prolongara por semanas e meses. Não houvera então ninguém que não
inclinasse com uma expressão preocupada a cabeça por cima de uma máquina fotográfica fincada
no estômago, que não fizesse o obturador piscar e não passasse cópias de mesa em mesa. De
repente faziam questão de revelar as suas fotografias sozinhos. A câmara escura que se achava à
disposição dos pensionistas nem de longe bastava para satisfazer as necessidades. As janelas dos
quartos e as portas de sacada eram então revestidas de cortinas pretas e, à luz de lâmpadas
vermelhas, os amadores lidavam com banhos químicos até um belo dia produzir-se um incêndio
que quase devorou o estudante búlgaro da mesa dos “russos distintos”; em consequência disso,
as autoridades do sanatório proibiram esse tipo de atividade. Não tardaram em desinteressar-se
da fotografia simples. Entrou a moda dos instantâneos a magnésio e das fotografias coloridas
pelo processo de Lumière. Começaram então a deleitar-se com retratos de pessoas que,
bruscamente surpreendidas pelo relâmpago de magnésio, mostravam os olhos fixos e os rostos
lívidos, contraídos, de cadáveres de assassinados que alguém tivesse assentado numa cadeira,
depois de lhes abrir os olhos. E Hans Castorp guardava um diapositivo emoldurado em papelão,
que se devia manter contra a luz para vê-lo com o rosto cor de cobre, numa clareira verde-gaio,
pintalgada de dentes-de-leão muito amarelos, um dos quais lhe luzia na lapela; ladeavam-no a Srª.
Stöhr e a Srta. Levi, com a tez de marfim, a primeira num pulôver azul-celeste e a segunda numa
blusa vermelha como sangue.
Havia também a filatelia. Sempre existiam pensionistas que se dedicavam a ela, mas em
determinadas épocas alastrava-se, originando uma verdadeira mania coletiva. Todo mundo
trocava, regateava, colava selos em álbuns. Tomavam assinaturas de revistas filatélicas;
entabulavam correspondências com casas especializadas da Suíça e do estrangeiro, com
associações e colecionadores. Até mesmo pessoas cuja situação financeira mal lhes permitia
passar meses ou anos nesse luxuoso sanatório gastavam importâncias pasmosas na aquisição de
selos raros.
Essa epidemia durava até se impor uma outra tolice, como, por exemplo, a compra e o
consumo de enormes quantidades de chocolates de todas as marcas, que um dia entrou em voga.
Todos andavam com os lábios pardos, e os mais apetitosos produtos da cozinha do Berghof
encontravam uma acolhida desdenhosa e crítica, já que os estômagos estavam entulhados e
indispostos por milka-nut, chocolat à la creme d’amandes, marquis-napolitains e línguas de gato salpicadas
de ouro.
A arte de desenhar porquinhos com os olhos fechados, introduzida pela mais alta
autoridade numa longínqua noite de carnaval, e muito cultivada desde então, transformara-se aos
poucos em exercícios geométricos de paciência, aos quais se dedicavam em certa época as forças
intelectuais de todos os pensionistas do Berghof e mesmo os últimos pensamentos e as
derradeiras demonstrações de energia dos moribundos. Durante semanas a fio, a casa viu-se sob
o signo do desenho de uma figura complicada que se compunha de nada mais nada menos que
oito círculos grandes e pequenos e de diversos triângulos inscritos uns nos outros. Tratava-se de
esboçar a mão livre e num só traço o intrincado multilátero; mas a mestria suprema consistia em
realizar essa proeza com os olhos espessamente vendados, o que, em última análise, e abstração
feita a deslizes de menor monta, foi unicamente conseguido pelo Promotor Paravant, o campeão
absoluto dessa excentricidade engenhosa.
Sabemos que ele se consagrava à matemática; sabemo-lo pela boca do próprio
conselheiro, e também conhecemos a casta motriz do seu zelo; ouvimos elogios às qualidades
mitigantes dessa ciência que embotava o aguilhão da carne. Se todos houvessem imitado o
exemplo do promotor, provavelmente teriam sido desnecessárias certas medidas de precaução,
cuja introdução nos últimos tempos se tornara inevitável. Procedera-se antes de tudo à obstrução
de todas as passagens que existiam nas sacadas para quem contornasse aquelas divisões de vidro
fosco, que não se estendiam até a balaustrada. Nessas passagens foram colocadas pequenas portas
que, de noite, se fechavam à chave, sob os largos sorrisos de todo mundo. A partir de então eram
muito procurados os quartos do primeiro andar, acima do avarandado, onde se podia saltar a
balaustrada, caminhar por cima do teto de vidro e passar de um compartimento a outro, evitando
as portinhas. Mas não era por causa do promotor que fora preciso introduzir essa inovação
disciplinar. A veemente tentação que a figura da egípcia Fatme exercera sobre Paravant havia
muito que estava dominada, e esta tinha sido a última agitação da sua virilidade natural. Com
redobrado ardor lançara-se ele então nos braços da deusa de olhos claros, cujo poder calmamente
o conselheiro costumava celebrar com palavras cheias de elevada moral. Outrora, antes da sua
licença muitas vezes prorrogada, e que ameaçava converter-se em aposentadoria definitiva,
empenhara-se com afinco em comprovar a culpa dos desgraçados pecadores. Agora dedicava
toda essa persistência, toda a sua tenacidade desportiva a um único problema que dia e noite lhe
absorvia os pensamentos. Esse problema era a quadratura do círculo.
continua pág 415...
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Leia também:
Capítulo I
A Chegada
A Chegada
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
O grande tédio - [a]
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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