quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

O Sol é para todos: 2ª Parte (21)

Harper Lee

O Sol é para todos

Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto

Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB

SEGUNDA PARTE

21

     Calpúrnia parou, constrangida, na balaustrada e aguardou o juiz Taylor notar a presença dela. Usava um avental imaculado sobre o vestido e tinha um envelope na mão.
     Ao vê-la, o juiz perguntou: 

— Você é a Calpúrnia, não é? 
— Sim, senhor — ela respondeu. — Por favor, posso entregar este bilhete ao sr. Finch? Não tem nada a ver com o… o julgamento.

     O juiz concordou com a cabeça e Calpúrnia entregou o envelope. Atticus abriu-o, leu e disse: 

— Sr. Juiz… o bilhete é da minha irmã. Ela diz que meus filhos sumiram, que não os vê desde o meio-dia… Eu… O senhor poderia… 
— Sei aonde eles estão, Atticus — avisou o sr. Underwood. — Estão bem ali, no balcão dos negros. Estão ali desde as treze horas e dezoito minutos, precisamente.

     Nosso pai virou-se e olhou para cima. 

— Jem, desça já daí — mandou. Disse então alguma coisa ao juiz que não conseguimos ouvir. Passamos por cima do reverendo Sykes e fomos para a escada.

     Atticus e Calpúrnia nos esperavam lá embaixo; ela parecia zangada, mas Atticus parecia exausto. Jem pulava de animação: 

— Ganhamos, não ganhamos? 
— Não faço ideia — disse Atticus, ríspido. — Ficaram aqui a tarde toda? Vão para casa com Calpúrnia, jantem e fiquem lá. 
— Ah, Atticus, deixa a gente voltar. Por favor, deixa a gente ouvir o veredito, por favor — implorou Jem. 
— Os jurados podem sair e voltar em um minuto, não sabemos… — dava para perceber que Atticus estava indeciso. — Bom, vocês assistiram até agora, não vejo por que não possam assistir o resto. Vamos fazer assim: podem voltar depois de jantar… mas comam devagar, não vão perder nada importante… E se os jurados ainda não tiverem voltado, podem aguardar conosco. Mas acho que tudo vai estar terminado antes de vocês voltarem. 
— Acha que ele vai ser absolvido tão rápido? — perguntou Jem.

     Atticus abriu a boca para responder, mas fechou-a e saiu.
     Rezei para o reverendo Sykes guardar nossos lugares, mas parei de rezar ao lembrar que as pessoas tinham saído aos bandos junto com os jurados. Naquela noite, eles iam lotar a mercearia, o café O.K. e o hotel, a menos que tivessem levado também o jantar.
     Calpúrnia nos levou para casa: 

—… tenho vontade de esfolar vocês vivos. Que ideia, crianças ouvindo tudo aquilo! Sr. Jem, não sabe que não devia ter levado sua irmã ao julgamento? A sra. Alexandra vai ter um ataque quando souber! Crianças não podem ouvir…

     Os postes estavam acesos e, ao passar debaixo deles, víamos o perfil indignado de Calpúrnia. 

— Sr. Jem, pensei que o senhor tivesse uma cabeça sobre os ombros… não acredito que levou sua irmã! Que ideia, senhor! Devia se envergonhar… não tem nenhum juízo?

     Eu estava eufórica. Tantas coisas tinham acontecido em tão pouco tempo que eu ia levar anos para assimilar tudo e agora Calpúrnia estava acabando com a raça do seu adorado Jem: que outras maravilhas estariam reservadas para aquela noite?
     Jem ria. 

— Não quer saber como foi, Cal? 
— Fica quieto, sr. Jem. Devia estar morrendo de vergonha, mas fica rindo…

     Calpúrnia fez uma série de ameaças que não tiveram nenhum efeito sobre Jem e subiu a escada da frente com sua frase clássica: 

— Se o sr. Finch não arrancar o seu couro, eu arranco. Já para dentro, senhor.

     Jem continuou rindo e Calpúrnia concordou com a cabeça com a ideia de Dill jantar conosco. 

— Ligue para a srta. Rachel imediatamente e avise que você está aqui — ela disse para Dill. — Ela quase enlouqueceu à sua procura… não se admire se mandar você de volta para Meridian amanhã bem cedo.

     Tia Alexandra veio ao nosso encontro e quase desmaiou quando Calpúrnia disse onde estávamos. Acho que ficou ofendida ao saber que Atticus tinha deixado que voltássemos para o tribunal, porque não disse uma palavra durante o jantar. Ficou apenas mexendo na comida e olhando triste para o prato, enquanto Calpúrnia nos servia, irritada: pôs leite nos copos, serviu salada de batata e presunto resmungando “deviam ter vergonha” em diversos graus de intensidade. 

— E agora comam devagar — foi sua derradeira ordem.

     O reverendo Sykes tinha guardado nossos lugares. Ficamos surpresos quando nos demos conta de que tínhamos ficado fora por quase uma hora, e igualmente surpresos por encontrarmos o tribunal exatamente como estava antes, com pequenas mudanças.
     Os lugares dos jurados estavam vazios e o réu não estava lá. O juiz Taylor também não estava, mas voltou assim que nos sentamos. 

— Pelo jeito, ninguém saiu daqui — observou Jem. 
— Eles saíram um pouco, depois dos jurados — disse o reverendo. — Os homens trouxeram comida para as mulheres e elas amamentaram os bebês. 
— Há quanto tempo eles estão fora? — perguntou Jem. 
— Uma meia hora. O sr. Finch e o sr. Gilmer falaram mais um pouco e o juiz deu orientações aos jurados. 
— Como ele estava? — perguntou Jem. 
— O que posso dizer? Ah, estava bem. Não tenho do que reclamar… Ele foi muito imparcial. De certa maneira, disse que, se eles acreditavam em tal coisa, teriam de dar um veredito; se acreditavam em outra coisa, teriam de dar outro veredito. Acho que ele tende um pouco para o nosso lado… — disse o reverendo Sykes, coçando a cabeça.

     Jem sorriu. 

— Um juiz não deve tender para nenhum lado, reverendo, mas não se preocupe, nós ganhamos — avaliou, cheio de sapiência. — Nenhum júri seria capaz de condenar o réu depois do que ouvimos… 
— Não fique tão confiante, Sr. Jem, nunca vi um júri dar ganho de causa a um negro contra um branco… 

     Mas Jem rebateu esse argumento e tivemos de ouvir uma longa revisão dos depoimentos, somada aos conhecimentos dele sobre a lei do estupro: não era estupro se fosse consentido e a vítima tivesse mais de dezoito anos. Isso, pela lei do estado do Alabama. E Mayella tinha dezenove anos. Aparentemente, a mulher tinha de chutar e berrar, precisava ser dominada, pisoteada e, de preferência, desmaiar com uma pancada na cabeça. Se tivesse menos de dezoito anos, não precisava de tudo isso. 

— Sr. Jem, isso não é coisa para mocinhas ouvirem — observou o reverendo. 
— Ah, ela não entende do que estamos falando. Scout, esse assunto é muito adulto para você, não é? — perguntou Jem. 
— Claro que não, entendi tudo que vocês disseram. — Devo ter sido muito convincente, porque Jem ficou quieto e não tocou mais no assunto. 
— Que horas são, reverendo? — ele perguntou. 
— Quase oito.

     Olhei para baixo e vi Atticus andando de um lado para o outro com as mãos nos bolsos: ele passou pelas janelas, depois pela balaustrada até o local onde ficavam os jurados. Olhou, examinou o juiz Taylor em sua cátedra e voltou para o lugar de onde tinha saído. Olhei para ele e acenei. Ele retribuiu meu aceno com um movimento de cabeça e começou a andar de novo.
     O sr. Gilmer estava junto às janelas, falando com o sr. Underwood. Bert, o estenógrafo, fumava sem parar, sentado com os pés sobre a mesa.
     Os oficiais da corte presentes (Atticus, o sr. Gilmer, o juiz Taylor, que dormia profundamente, e Bert), porém, eram os únicos cujo comportamento parecia normal. Eu nunca tinha visto um tribunal lotado tão silencioso. Às vezes, um bebê chorava loucamente ou uma criança corria, mas os adultos se portavam como se estivessem numa igreja. No balcão, os negros estavam sentados e em pé ao nosso redor com uma paciência de Jó.
     O velho relógio do tribunal mexeu suas engrenagens e deu oito ensurdecedoras batidas que fizeram nossos ossos estremecerem.
     Quando o relógio bateu onze horas, eu já estava fora do ar; cansada de lutar contra o sono, cochilei encostada no confortável braço do reverendo. Acordei de repente e me esforcei para continuar assim, olhando para baixo e me concentrando nas cabeças que estavam lá: havia dezesseis carecas, catorze homens que podiam ser considerados ruivos, quarenta que iam do castanho ao preto e… Lembrei de uma coisa que Jem tinha me explicado uma vez, quando passou por uma curta fase de estudos psíquicos. Jem disse que, se um determinado número de pessoas (um estádio esportivo lotado, por exemplo) se concentrasse em uma coisa, como em fazer uma árvore pegar fogo na floresta, ela se incendiaria. Brinquei com a ideia de pedir que todos se concentrassem na libertação de Tom Robinson, mas concluí que, se eles estivessem cansados como eu, não ia funcionar.
     Dill dormia profundamente, com a cabeça no ombro de Jem, que estava quieto. 

— Não está demorando? — perguntei a Jem. 
— Claro que sim, Scout — ele respondeu, animado. 
— Bom, do jeito que você falou, parecia que não ia levar mais de cinco minutos. Jem franziu o cenho. 
— Tem certas coisas que você não entende — ele disse, e eu estava cansada demais para discutir.

     Mas eu devia estar razoavelmente desperta, porque uma estranha sensação foi tomando conta de mim, não muito diferente da que tinha sentido no inverno anterior. Senti um calafrio, apesar de a noite estar quente. A sensação foi aumentando até a atmosfera do tribunal ficar fria como uma manhã de inverno, quando os rouxinóis pararam de cantar e os carpinteiros de martelar na casa nova da srta. Maudie e todas as portas do bairro estavam tão bem fechadas quanto as da Residência Radley. A rua estava deserta, vazia, à espera, enquanto o tribunal estava lotado de gente. Uma noite sufocante de verão não era diferente de uma gélida manhã de inverno. O sr. Heck Tate, que tinha retornado ao tribunal e estava falando com Atticus, podia estar de botas longas e jaqueta de couro. Atticus interrompeu sua tranquila caminhada e apoiou o pé na trava inferior de uma cadeira enquanto ouvia o sr. Tate e passava lentamente a mão pela coxa. Era como se eu estivesse esperando que a qualquer momento o sr. Tate dissesse: “Atire nele, sr. Finch...”

Em vez disso, o sr. Tate disse: 

— Silêncio no tribunal — com uma voz cheia de autoridade, e as pessoas na plateia levantaram a cabeça, assustadas.

     O sr. Tate saiu da sala e voltou acompanhado de Tom Robinson. Levou Tom para seu lugar ao lado de Atticus e ficou lá. O juiz Taylor tinha se levantado e estava alerta, empertigado, olhando para o lugar vazio destinado aos jurados.
     O que aconteceu depois disso pareceu um sonho: vi os jurados voltarem, andando como se estivessem embaixo d’água, e a voz do juiz veio de longe, fraca. Vi algo que só a filha de um advogado poderia ter visto, algo a que só a filha de um advogado ficaria atenta, e foi como observar Atticus ir até a rua, apoiar o rifle no ombro e puxar o gatilho, mas observar sabendo o tempo todo que a arma estava descarregada.
     Um júri nunca olha para um réu que ele tenha condenado, e quando os jurados entraram, nenhum deles olhou para Tom Robinson. O primeiro jurado entregou um papel para o sr. Tate, que o passou para o funcionário do tribunal, que o passou para o juiz…
     Fechei os olhos. O juiz Taylor estava lendo o resultado da votação: 

— Culpado… culpado… culpado… culpado…

     Olhei para Jem: suas mãos estavam brancas de segurar com força na balaustrada do balcão e ele encolhia os ombros como se cada “culpado” fosse uma punhalada no peito.
     O juiz Taylor estava dizendo alguma coisa. Segurava o martelo, mas não o usava. Envolto numa espécie de névoa, vi Atticus enfiando na pasta os papéis que estavam na mesa. Fechou a pasta, disse alguma coisa para o estenógrafo, acenou com a cabeça para o sr. Gilmer, foi até Tom Robinson e murmurou algo para ele. Atticus pôs a mão no ombro de Tom enquanto sussurrava. Tirou o paletó das costas da cadeira e colocou-o por cima do ombro. Depois, saiu do tribunal, mas não pela porta de sempre. Certamente queria tomar o caminho mais curto para casa, pois percorreu rápido o corredor central em direção à saída sul. Acompanhei o topo da cabeça dele enquanto se encaminhava para a porta. Ele não olhou para cima.
     Alguém estava me cutucando, mas eu não queria desviar os olhos das pessoas na plateia e da caminhada solitária de Atticus pelo corredor. 

— Srta. Jean Louise? — alguém chamou.

     Olhei em volta. Estavam todos de pé. À nossa volta e no balcão na parede oposta os negros estavam se levantando. A voz do reverendo Sykes estava tão distante quanto a do juiz Taylor: 

— Srta. Jean Louise, levante-se. O seu pai está passando.

continua página 148...
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Leia também:

O Sol é para todos: 2ª Parte (21)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.

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