quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Massa e Poder - As Entranhas do Poder: A Ânsia de Destruição nos Macacos e nos Homens

Elias Canetti

AS ENTRANHAS DO PODER

     A Ânsia de Destruição nos Macacos e nos Homens

      Pode-se muito bem contemplar a ânsia de destruição nos macacos e nos homens como exercícios de dureza para a mão e os dedos. A utilização dos galhos colocou o macaco a trepar nas árvores, bem como suas mãos, em contato constante com um material mais duro que as próprias mãos. A fim de vencer os galhos, ele tinha de segurar-se neles, mas tinha também de saber parti-los. Para ele, experimentar o “terreno” era experimentar ramos e galhos; o que lograva partir com facilidade constituía um terreno ruim para o seu avanço. A investigação desse mundo dos galhos traduziu-se numa confrontação incessante com sua dureza; testá-los permaneceu uma necessidade, mesmo tendo já o macaco adquirido grande experiência no assunto. O bastão — que, tanto quanto para os homens, tornou-se também para ele a primeira arma — deu início à série de instrumentos duros. As mãos mediam-se com ele, assim como, posteriormente, com as pedras. Os frutos e a carne dos animais eram macios, e o mais macio de tudo era a pele. Coçando a pele e catando piolhos exercitou-se a delicadeza dos dedos; quebrando tudo o que estes alcançavam, a sua dureza.
     Existe, portanto, uma ânsia de destruição particular das mãos, não voltada diretamente para a captura e a morte da presa. Tal ânsia é de natureza mecânica, e teve prosseguimento em invenções mecânicas. Ela se fez perigosa precisamente em sua inocência. Sabendo-se livre da intenção de matar, permite-se qualquer empreitada. E o que faz causa a impressão de dizer respeito apenas às mãos, a sua agilidade e capacidade, a sua utilidade inofensiva. Onde quer que essa ânsia de destruição mecânica das mãos — transformada hoje num sistema tecnológico complexo — alie-se à real intenção de matar, ela produz a porção automática, impensada do processo resultante — o vazio e, para nós, o que há de particularmente sinistro nele, pois ninguém pretendeu que fosse assim: tudo se deu como que por si só.
     Individualmente, e em pequena escala, todos experimentam em si próprios esse mesmo processo, ao brincar distraidamente com os dedos, quebrar palitos de fósforo ou amassar papéis. As variadas ramificações que esse impulso destrutivo mecânico exibe no homem estão intimamente relacionadas com o desenvolvimento da tecnologia de suas ferramentas. Embora tenha aprendido a vencer a dureza com a dureza, o que lhe resta como instância última para tudo é a mão. A vida própria desta teve, também aí, as consequências mais monstruosas. Em mais de um aspecto, ela foi o nosso destino.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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