A Montanha Mágica
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn
(Fim)
...
Tiveram uma viagem excelente. Os quatro cavalos, todos eles malacaras, animais vivos,
fortes, bem alimentados e de pêlo lustroso, pisavam com ritmo firme a magnífica estrada, que a
essa época estava livre de poeira. Às vezes se aproximavam das margens rochedos anfractuosos,
com flores e capim crescendo entre as juntas das pedras. Postes telegráficos corriam em sentido
oposto. Surgiam bosques nas encostas. Curvas amenas, almejadas primeiro e em seguida
percorridas, mantinham alerta a curiosidade. Em regiões distantes, iluminadas pelo sol, via-se
sempre a cordilheira parcialmente coberta de neve. Já haviam perdido de vista a paisagem familiar
do vale, e a mudança do cenário cotidiano produzia sobre os espíritos um efeito animador. Pouco
depois, os coches pararam à beira da floresta. Tinha sido combinado que a partir desse ponto os
excursionistas prosseguiriam a pé até a meta do passeio; essa meta com a qual os seus sentidos,
sem se dar conta disso, tinham desde havia muito estabelecido um contato frouxo no início, mas
que se tornava cada vez mais intenso. Terminada a viagem de carro, todos notaram um ruído
longínquo, um suave rumor sibilante, vibrante, murmurante, que de vez em quando tornava a
esquivar-se à percepção. Os membros do grupo estacaram para ouvir melhor, e uns chamavam a
atenção dos outros.
– Por enquanto – disse Settembrini, que já conhecia o lugar – o ruído parece fraquinho.
Mas lá na cascata é fortíssimo nesta época do ano. Os senhores vão ver que não poderemos ouvir
as nossas próprias vozes.
Penetraram no bosque, por uma vereda coberta de úmidas agulhas de pinheiro.
Peeperkorn ia na frente, apoiado no braço da sua companheira, com o macio chapéu preto
repuxado sobre a testa, e com o seu típico andar oscilante. Atrás deles seguia Hans Castorp, sem
chapéu como todos os demais, com as mãos nos bolsos; inclinando a cabeça obliquamente,
olhava em torno e assobiava baixinho. Logo após vinham Naphta e Settembrini, depois Ferge
com Wehsal, e por fim o malaio, caminhando sozinho, com o cesto de víveres no braço. Falava
se do bosque.
Aquele bosque não era como todos os outros. Oferecia um aspecto singularmente
pitoresco, um aspecto exótico e ao mesmo tempo lúgubre. Existia ali em abundância uma espécie
de líquen musgoso, que pendia das árvores, carregava-as, envolvia-as por completo. Em longas
barbas incolores, as emaranhadas teias da planta parasita desciam bambaleando da ramagem
como que embrulhada e estofada. Quase não se viam agulhas; tudo desaparecia sob as grinaldas
de musgo. Era uma degeneração grave e esquisita, uma visão mágica e mórbida. O bosque não ia
bem de saúde, sofria da moléstia desse líquen exuberante, que ameaçava sufocá-lo, segundo a
opinião que todos manifestavam, enquanto o pequeno cortejo avançava pela vereda coberta de
agulhas, ouvindo o ruído que significava a meta da qual se aproximavam, aquele reboo e sussurro
que aos poucos se transformava em estrondo e prometia confirmar a predição de Settembrini.
Numa curva descortinava-se o panorama do desfiladeiro penhascoso que se abria no
meio do bosque e era atravessado por uma ponte. No seu fundo caía a catarata. No momento em
que os excursionistas depararam com ela, chegavam ao auge os efeitos acústicos. Era um barulho
infernal. A massa de água precipitava-se verticalmente, num único salto, de sete ou oito metros
de extensão e de considerável largura, e em seguida se lançava, branca, por sobre os rochedos.
Sua queda produzia um estrépito medonho, no qual pareciam mesclar-se todos os tipos de ruídos
e de tonalidades possíveis, trovões e silvos, bramidos, berros, fanfarras, estouros, estalidos,
ribombos e badaladas de sinos. Realmente, aquilo era capaz de aturdir os sentidos. Os visitantes
tinham-se adiantado muito sobre as rochas escorregadias, para chegar bem perto. Açoitados e
salpicados por um sopro úmido, envoltos no vapor de água, com os ouvidos abarrotados e
obstruídos pelo fragor, trocavam olhares e sacudiam a cabeça, sorrindo timidamente, ao
contemplarem esse espetáculo, essa catástrofe contínua, formada de espuma e de alarido, cujo
marulhar insensato e excessivo os estonteava, lhes causava medo e provocava ilusões acústicas.
Tinham a impressão de ouvir de trás, de cima, de todos os lados gritos de ameaça ou de
advertência, clarinadas ou vozes rudes de homens.
Agrupados atrás de Mynheer Peeperkorn – Mme. Chauchat encontrava-se entre os cinco
convidados – contemplavam com ele o turbilhão. Não divisavam o rosto do holandês, mas viam
como descobria a cabeça rodeada de labaredas brancas e inflava o peito, enchendo-o daquele ar
fresco. Comunicavam-se entre si por meio de olhares e de sinais, uma vez que quaisquer palavras,
inclusive as que se gritassem diretamente ao ouvido do vizinho, seriam, sem dúvida, abafadas
pelo fragor da queda. Os lábios articulavam expressões de surpresa e de admiração, que no
entanto permaneciam inaudíveis. Mediante acenos de cabeça, Hans Castorp, Settembrini e Ferge
combinaram escalar a encosta do desfiladeiro a cujo sopé se encontravam, a fim de chegar à
ponte superior e de ver as águas de cima. Não era difícil. Uma escada íngreme, com degraus
estreitos, talhados na rocha, conduzia a uma espécie de pavimento superior da floresta.
Galgaram-na um após outro; avançaram pela ponte; chegados ao meio, por cima do jorro curvo
da cascata, acenaram para os amigos que se achavam embaixo. A seguir atravessaram o resto da
pontezinha e realizaram a laboriosa descida pelo outro lado, até a outra margem da torrente, de
onde partia mais uma ponte, pela qual voltaram a reunir-se ao grupo.
A essa altura, a mímica referia-se à merenda. Alguns opinavam que seria conveniente
distanciarem-se, para esse fim, da zona do barulho, a fim de saborearem a refeição vesperal com
os ouvidos descansados e não à maneira de surdos-mudos. Mas não podiam deixar de perceber
que Peeperkorn não concordava com isso. Sacudiu a cabeça, repetidas vezes apontou com o
indicador para o chão, e os lábios gretados, repuxados com esforço, articularam um “Aqui!” Que
se podia fazer? Nessas questões de encenação, Peeperkorn era o diretor e o mestre. O peso da
sua personalidade teria sido decisivo, mesmo que não fosse ele, como sempre, o organizador e o
dono da empresa. Homens de tamanha envergadura foram e serão em todos os tempos tiranos e
autocratas. Mynheer tencionava merendar à vista da cascata, em plena trovoada. Assim mandava
o seu capricho soberano, e quem não quisesse renunciar à comida teria de ficar. A maioria estava
pouco satisfeita. O Sr. Settembrini, que via eliminada a possibilidade de um intercâmbio humano,
de uma palestra democrático-distinta ou ao menos de uma discussão, ergueu a mão por cima da
cabeça, com aquele seu peculiar gesto de resignação e desespero. O malaio apressou-se a executar
a ordem do amo. Levara consigo duas cadeiras dobradiças que armou junto à parede rochosa,
para Mynheer e madame. Depois estendeu uma toalha aos seus pés e espalhou sobre ela o
conteúdo do cesto – um aparelho de café, copos, garrafas térmicas, doces e vinho – que foi
avidamente disputado. Os convidados instalaram-se nas pedras ou na balaustrada da ponte, com
a xícara de café quente na mão e o prato cheio de bolo sobre os joelhos. Silenciosos, no meio do
fragor, começaram a comer a merenda.
Peeperkorn, com a gola do sobretudo levantada, e com o chapéu depositado no chão,
perto de si, bebia vinho do Porto num copo de prata, guarnecido de um monograma, e que
esvaziou várias vezes. E de repente se pôs a falar. Que homem estranho! Não era possível que
ouvisse a própria voz, e muito menos que os outros entendessem uma sílaba sequer daquilo que
lhes comunicava sem comunicá-lo. Levantou, entretanto, o dedo indicador. A seguir, mantendo o
copo na mão direita, estendeu o braço esquerdo, com a palma da mão voltada obliquamente para
cima. Viu-se então o rosto majestoso movimentar-se ao falar; viu-se a boca articulando palavras
que permaneciam desprovidas de som, como se fossem proferidas num vácuo. Todos pensavam
que logo desistiria desse esforço inútil, ao qual assistiam com um sorriso perplexo. Mas ele, com
uma gesticulação esmerada, fascinante, imperiosa, continuava, a arengar o fragor, fixando os
olhinhos lassos, apagados e muito abertos, ora num, ora noutro espectador, de modo que a
pessoa a quem parecia dirigir-se se via obrigada a dar-lhe um sinal de aprovação, com as
sobrancelhas alçadas, abrindo a boca e pondo a mão em concha na orelha, como se isso bastasse
para resolver a situação irremediável. A seguir, Mynheer até se levantou. Tinha ainda o copo na
mão. No surrado sobretudo de viagem que quase lhe ia até os pés, e cuja gola se achava erguida,
com a cabeça descoberta, e com a alta e rugosa testa de ídolo rodeada pelas labaredas brancas do
cabelo – assim se quedava junto ao penhasco e movia o semblante, à cuja frente elevava,
doutrinando, o anel do polegar e do indicador, dominado pelos outros dedos em riste, como para
remediar a indistinção do brinde mudo pelo sugestivo signo da exatidão. Compreendiam-se
através dos gestos e liam-se-lhes dos lábios algumas palavras isoladas que habitualmente saíam da
sua boca: “Absolutamente!”, “Basta!” e nada mais. A cabeça pendia para um lado, com uma
expressão de amargor nos lábios gretados: a perfeita imagem de um mártir. Em seguida, porém,
desabrochou a lasciva covinha, sinal do espírito sibarita, galhofeiro, e do impudor sagrado de um
sacerdote pagão que ao dançar arregaça as vestes. E Peeperkorn ergueu o copo, descreveu com
ele um semicírculo em direção aos seus convidados, e esvaziou-o completamente em dois ou três
tragos, de maneira que o fundo se voltava para o céu. Por fim, com o braço estendido, passou-o
ao malaio, que o recebeu com uma mesura, e deu o sinal de partida.
Depois de se terem inclinado diante dele, para expressar a sua gratidão, todos se
dispuseram a obedecer-lhe a ordem. Os que se achavam acocorados no chão levantaram-se de
um pulo; quem estava sentado na balaustrada da pontezinha desceu depressa. O delgado javanês,
com o chapéu-coco e a gola de peles, apanhou a baixela e os restos de comida. Na mesma ordem
de marcha que haviam observado na ida, voltaram pela vereda úmida, coberta de agulhas de
pinheiro, através da floresta desfigurada pelas grinaldas de líquen, até a estrada onde os
esperavam os coches.
Desta vez, Hans Castorp embarcou no carro do mestre e da sua companheira. Ocupou
um lugar em frente ao casal, ao lado do bom Ferge, que continuava alheio a quaisquer assuntos
elevados. Quase não se falou durante a viagem de regresso. Mynheer mantinha as mãos
espalmadas sobre o cobertor que envolvia as suas pernas e as de Clávdia, e deixava pender a
mandíbula inferior. Settembrini e Naphta desceram e despediram-se antes que os carros
atravessassem os trilhos e o curso de água. Wehsal permaneceu sozinho no segundo coche,
enquanto este subia pela curva da rampa e alcançava o portal do Berghof, onde todos se
separaram...
Na noite que se seguiu a esse dia, que é que houve com o sono de Hans Castorp? Foi ele
mais leve e mais superficial devido a uma certa prontidão interior, da qual a sua alma não se dava
conta, mas que tinha por consequência que a menor modificação do costumeiro silêncio noturno
do Sanatório Berghof – um alarma por mais abafado que fosse e a mal perceptível repercussão de
passos rápidos à distância – bastasse para tornar desperto e lúcido e para fazê-lo sobressaltar-se
na cama? O fato é que acordou muito antes que alguém batesse à sua porta, o que se deu pouco
depois das duas horas. Respondeu sem demora, clara e energicamente, com plena presença de
espírito. Ouviu então a voz aguda e hesitante de uma das enfermeiras auxiliares, ocupadas na
casa, e que lhe solicitava, em nome de Mme. Chauchat, que comparecesse imediatamente ao
primeiro andar. Com redobrada energia mandou dizer que logo iria. Levantou-se de um salto;
enfiou rapidamente as roupas; passou os dedos pelos cabelos, a fim de afastá-los da testa, e
desceu sem pressa, mas também não devagar, mais incerto quanto às circunstâncias do que ao
próprio fato que havia causado tal convite.
Encontrou aberta a porta do salão de Peeperkorn, bem como aquela que dava para o
quarto do holandês, onde todas as luzes estavam acesas. Ambos os médicos, a Superiora von
Mylendonk, Mme. Chauchat e o criado malaio achavam-se presentes. Este não estava vestido
como de costume, mas trazia uma espécie de traje nacional: uma jaqueta parecida com uma
camisa, de listras largas e com mangas muito amplas e compridas; uma saia de muitas cores em
lugar das calças; e um chapéu cônico de pano amarelo. Além disso se adornara com um colar de
amuletos que lhe pendiam sobre o peito. Mantinha-se imóvel, com os braços cruzados, à
esquerda da cabeceira da cama, na qual jazia Pieter Peeperkorn, de costas, com os braços
estendidos ao longo do corpo. Empalidecendo, o jovem abrangeu a cena com a vista, enquanto
entrava. Mme. Chauchat voltava-lhe as costas. Estava sentada numa poltrona baixa, ao pé da
cama, apoiando o cotovelo na colcha, com o queixo fincado na mão e os dedos cravados no lábio
inferior, e contemplava o rosto do seu companheiro de viagem.
– Boa noite, meu rapaz – disse Behrens, que acabava de conversar baixinho com o Dr.
Krokowski e com a Superiora. Sacudiu melancolicamente a cabeça e torceu o lábio com o
bigodinho branco. Trajava o avental de médico, com o estetoscópio sobressaindo do bolso de
cima. Calçava chinelos bordados e estava sem colarinho. – Não há remédio – acrescentou num
murmúrio. – Trabalho perfeito. Pode ir mais perto e examiná-lo com olhar de perito. O senhor
deve admitir que aí se fez tudo para sabotar a arte médica.
Sobre as pontas dos pés, Hans Castorp aproximou-se da cama. Os olhos do malaio
vigiavam cada um dos seus movimentos; acompanhavam-nos, sem que o homem virasse a
cabeça, de modo que se via o branco do globo ocular. Com um olhar de esguelha, o jovem
verificou que Mme. Chauchat não dava atenção à sua presença. Postou-se ao lado do leito, na sua
posição típica, com o peso do corpo a repousar sobre uma das pernas, as mãos juntas à frente da
barriga, inclinando a cabeça para o lado, numa contemplação reverente e pensativa. Peeperkorn
achava-se estatelado sob a colcha de seda vermelha, naquela camisola de malha que Hans Castorp
tantas vezes o vira usar. As mãos, bem como partes do rosto, mostravam manchas de um roxo
enegrecido, o que contribuía consideravelmente para desfigurar o holandês, se bem que, fora isso,
as feições majestosas permanecessem inalteradas. Também em estado de descanso, e apesar das
pálpebras cerradas, ressaltavam fortemente as rugas da alta fronte circundada de labaredas
brancas, essas rugas pregueadas como num ídolo, que se estendiam horizontalmente em quatro
ou cinco fileiras, antes de descerem em ângulo reto por ambas as têmporas, e pareciam
acentuadas pelos esforços habituais de uma vida inteira. Os lábios gretados e amargurados
estavam entreabertos. A cianose indicava uma interrupção brusca, um impedimento veemente,
apoplético, das funções vitais.
Hans Castorp quedou-se alguns instantes imóvel, observando tudo isso com reverência.
Vacilava em modificar a sua posição e esperava que a “viúva” lhe dirigisse a palavra. Mas, como
tal não se desse, preferiu não incomodá-la por enquanto e voltou-se para o grupo das outras
pessoas que se achavam atrás dele. O conselheiro fez um sinal de cabeça em direção ao salão.
Hans Castorp seguiu-o até ali.
– Suicidium? – perguntou baixinho, com objetividade profissional.
– Se é! – respondeu Behrens, dando de ombros; e acrescentou: – Cem por cento. No
superlativo. O senhor já viu uma coisa destas numa casa de miudezas? – E puxou do bolso do
avental um estojo de forma irregular, do qual tirou um pequeno objeto que apresentou ao jovem. – Eu, nunca. Mas vale a pena olhá-lo. Vivendo e aprendendo. Um troço fantástico e muito
engenhoso. Tirei-o das mãos dele. Cuidado! Basta que uma gota lhe caia sobre a pele para que o
senhor fique com bolhas.
Hans Castorp revolveu entre as mãos o objeto misterioso. Era feito de aço, marfim, ouro
e borracha e oferecia aspecto bem estranho. Viam-se dois dentes de garfo, recurvos, de aço
polido, e com pontas muito afiadas; havia uma parte central, de marfim, levemente retorcida e
incrustada de ouro, cujo mecanismo elástico permitia mover os dentes até certo ponto e
aproximá-los um do outro; e tudo terminava numa espécie de saquinho de borracha preta e meio
dura. O tamanho do objeto não ia além de umas poucas polegadas.
– Que é isto? – perguntou Hans Castorp.
– Isto – respondeu Behrens – é a encarnação de uma seringa hipodérmica. Ou, sob um
outro ponto de vista, é a cópia mecânica das presas da naja. O senhor me compreende? Parece
que não – continuou ao ver que Hans Castorp não deixava de fitar, como que hipnotizado,
aquele objeto curioso. – Aqui estão os dentes. Não são completamente maciços, mas passa por
eles um tubo capilar, um canal finíssimo, cuja extremidade exterior se vê nitidamente, na parte
dianteira, um pouco acima das pontas. Claro que os tubinhos têm outro orifício na raiz dos
dentes e ali comunicam-se com o conduto excretor da glândula de borracha, que se estende
através da peça central de marfim. No momento da mordida, os dentes executam um movimento
elástico de contração, como é fácil perceber, e exercem uma pressão sobre o depósito de veneno,
que então impele o seu conteúdo para dentro dos canais, de maneira que no mesmo instante em
que as pontas entram na carne a dose de veneno penetra na circulação do sangue. É muito
simples quando já se vê pronto. Difícil era inventá-lo. Provavelmente foi feito segundo as
próprias indicações dele.
– Acho que sim – disse Hans Castorp.
– A carga não pode ter sido muito grande – prosseguiu o conselheiro. – O que lhe faltava
em quantidade, sobrava-lhe em...
– ...dinamismo – completou Hans Castorp.
– Certo. Já verificaremos do que se trata. Pode-se esperar com certa curiosidade o
resultado da análise, porque não duvido de que nos dará uma oportunidade para aprender alguma
coisa. Aposto que aquela personagem exótica que ali está de sentinela e se endomingou para a
ocasião saberia perfeitamente informar-nos. Na minha opinião foi usada uma combinação de
substâncias animais e vegetais, o melhor que existe no ramo, pois o efeito deve ter sido
fulminante. Tudo leva a crer que lhe cortou imediatamente a respiração; paralisia do centro
respiratório, entende? Asfixia rápida, sem esforços nem dores, segundo todas as probabilidades.
– Quisera Deus! – disse Hans Castorp piamente. Com um suspiro devolveu ao
conselheiro o sinistro instrumentozinho e voltou ao quarto do holandês.
Unicamente o malaio e Mme. Chauchat encontravam-se ainda ali. Desta vez, Clávdia
levantou a cabeça e olhou o jovem, que novamente se aproximava da cama.
– O senhor tinha direito a que eu o mandasse chamar – disse ela.
– Foi muito gentil da sua parte – respondeu Hans Castorp. – E a senhora tem razão.
Éramos amigos e nos tratávamos de “tu”. Tenho vergonha até o fundo do meu coração de me
ter esquivado a tuteá-lo na frente de terceiros e de ter recorrido a subterfúgios... A senhora
achava-se a seu lado durante os últimos instantes?
– O criado me avisou quando tudo estava terminado – explicou ela.
– A envergadura dele era tamanha – recomeçou Hans Castorp – que o fracasso do
sentimento em face da vida lhe causava a sensação de uma catástrofe cósmica e de um
aviltamento de Deus. Pois a senhora deve saber que ele se considerava o órgão nupcial de Deus.
Era uma fantasia de rei... Quando estamos comovidos, temos a coragem de empregar expressões
que soam rudes e desapiedadas, mas são mais solenes do que as palavras da devoção
convencional.
– C’est une abdication – disse ela. – Sabia ele da nossa loucura?
– Não me foi possível negá-la, madame. Ele adivinhara tudo, quando me recusei a beijar
lhe a fronte na presença dele. Embora esta presença seja antes simbólica do que real neste
momento, a senhora me permitirá que o faça agora?
Num movimento breve, como que de convite, ela elevou até o jovem a cabeça, com os
olhos fechados. E Hans Castorp aproximou os lábios da sua testa. Os olhos castanhos, de animal,
do malaio observavam a cena, mirando de esguelha, a ponto de mostrar o branco do globo
ocular.
continua pág 411...
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Leia também:
Capítulo I
A Chegada
A Chegada
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn (Fim) - [b]
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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