sábado, 13 de dezembro de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Mynheer Peeperkorn (Fim) - [b]

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn
(Fim)
...
     Tiveram uma viagem excelente. Os quatro cavalos, todos eles malacaras, animais vivos, fortes, bem alimentados e de pêlo lustroso, pisavam com ritmo firme a magnífica estrada, que a essa época estava livre de poeira. Às vezes se aproximavam das margens rochedos anfractuosos, com flores e capim crescendo entre as juntas das pedras. Postes telegráficos corriam em sentido oposto. Surgiam bosques nas encostas. Curvas amenas, almejadas primeiro e em seguida percorridas, mantinham alerta a curiosidade. Em regiões distantes, iluminadas pelo sol, via-se sempre a cordilheira parcialmente coberta de neve. Já haviam perdido de vista a paisagem familiar do vale, e a mudança do cenário cotidiano produzia sobre os espíritos um efeito animador. Pouco depois, os coches pararam à beira da floresta. Tinha sido combinado que a partir desse ponto os excursionistas prosseguiriam a pé até a meta do passeio; essa meta com a qual os seus sentidos, sem se dar conta disso, tinham desde havia muito estabelecido um contato frouxo no início, mas que se tornava cada vez mais intenso. Terminada a viagem de carro, todos notaram um ruído longínquo, um suave rumor sibilante, vibrante, murmurante, que de vez em quando tornava a esquivar-se à percepção. Os membros do grupo estacaram para ouvir melhor, e uns chamavam a atenção dos outros. 

– Por enquanto – disse Settembrini, que já conhecia o lugar – o ruído parece fraquinho. Mas lá na cascata é fortíssimo nesta época do ano. Os senhores vão ver que não poderemos ouvir as nossas próprias vozes.

     Penetraram no bosque, por uma vereda coberta de úmidas agulhas de pinheiro. Peeperkorn ia na frente, apoiado no braço da sua companheira, com o macio chapéu preto repuxado sobre a testa, e com o seu típico andar oscilante. Atrás deles seguia Hans Castorp, sem chapéu como todos os demais, com as mãos nos bolsos; inclinando a cabeça obliquamente, olhava em torno e assobiava baixinho. Logo após vinham Naphta e Settembrini, depois Ferge com Wehsal, e por fim o malaio, caminhando sozinho, com o cesto de víveres no braço. Falava se do bosque. 
     Aquele bosque não era como todos os outros. Oferecia um aspecto singularmente pitoresco, um aspecto exótico e ao mesmo tempo lúgubre. Existia ali em abundância uma espécie de líquen musgoso, que pendia das árvores, carregava-as, envolvia-as por completo. Em longas barbas incolores, as emaranhadas teias da planta parasita desciam bambaleando da ramagem como que embrulhada e estofada. Quase não se viam agulhas; tudo desaparecia sob as grinaldas de musgo. Era uma degeneração grave e esquisita, uma visão mágica e mórbida. O bosque não ia bem de saúde, sofria da moléstia desse líquen exuberante, que ameaçava sufocá-lo, segundo a opinião que todos manifestavam, enquanto o pequeno cortejo avançava pela vereda coberta de agulhas, ouvindo o ruído que significava a meta da qual se aproximavam, aquele reboo e sussurro que aos poucos se transformava em estrondo e prometia confirmar a predição de Settembrini.   
     Numa curva descortinava-se o panorama do desfiladeiro penhascoso que se abria no meio do bosque e era atravessado por uma ponte. No seu fundo caía a catarata. No momento em que os excursionistas depararam com ela, chegavam ao auge os efeitos acústicos. Era um barulho infernal. A massa de água precipitava-se verticalmente, num único salto, de sete ou oito metros de extensão e de considerável largura, e em seguida se lançava, branca, por sobre os rochedos. Sua queda produzia um estrépito medonho, no qual pareciam mesclar-se todos os tipos de ruídos e de tonalidades possíveis, trovões e silvos, bramidos, berros, fanfarras, estouros, estalidos, ribombos e badaladas de sinos. Realmente, aquilo era capaz de aturdir os sentidos. Os visitantes tinham-se adiantado muito sobre as rochas escorregadias, para chegar bem perto. Açoitados e salpicados por um sopro úmido, envoltos no vapor de água, com os ouvidos abarrotados e obstruídos pelo fragor, trocavam olhares e sacudiam a cabeça, sorrindo timidamente, ao contemplarem esse espetáculo, essa catástrofe contínua, formada de espuma e de alarido, cujo marulhar insensato e excessivo os estonteava, lhes causava medo e provocava ilusões acústicas. Tinham a impressão de ouvir de trás, de cima, de todos os lados gritos de ameaça ou de advertência, clarinadas ou vozes rudes de homens.
     Agrupados atrás de Mynheer Peeperkorn – Mme. Chauchat encontrava-se entre os cinco convidados – contemplavam com ele o turbilhão. Não divisavam o rosto do holandês, mas viam como descobria a cabeça rodeada de labaredas brancas e inflava o peito, enchendo-o daquele ar fresco. Comunicavam-se entre si por meio de olhares e de sinais, uma vez que quaisquer palavras, inclusive as que se gritassem diretamente ao ouvido do vizinho, seriam, sem dúvida, abafadas pelo fragor da queda. Os lábios articulavam expressões de surpresa e de admiração, que no entanto permaneciam inaudíveis. Mediante acenos de cabeça, Hans Castorp, Settembrini e Ferge combinaram escalar a encosta do desfiladeiro a cujo sopé se encontravam, a fim de chegar à ponte superior e de ver as águas de cima. Não era difícil. Uma escada íngreme, com degraus estreitos, talhados na rocha, conduzia a uma espécie de pavimento superior da floresta. Galgaram-na um após outro; avançaram pela ponte; chegados ao meio, por cima do jorro curvo da cascata, acenaram para os amigos que se achavam embaixo. A seguir atravessaram o resto da pontezinha e realizaram a laboriosa descida pelo outro lado, até a outra margem da torrente, de onde partia mais uma ponte, pela qual voltaram a reunir-se ao grupo.
     A essa altura, a mímica referia-se à merenda. Alguns opinavam que seria conveniente distanciarem-se, para esse fim, da zona do barulho, a fim de saborearem a refeição vesperal com os ouvidos descansados e não à maneira de surdos-mudos. Mas não podiam deixar de perceber que Peeperkorn não concordava com isso. Sacudiu a cabeça, repetidas vezes apontou com o indicador para o chão, e os lábios gretados, repuxados com esforço, articularam um “Aqui!” Que se podia fazer? Nessas questões de encenação, Peeperkorn era o diretor e o mestre. O peso da sua personalidade teria sido decisivo, mesmo que não fosse ele, como sempre, o organizador e o dono da empresa. Homens de tamanha envergadura foram e serão em todos os tempos tiranos e autocratas. Mynheer tencionava merendar à vista da cascata, em plena trovoada. Assim mandava o seu capricho soberano, e quem não quisesse renunciar à comida teria de ficar. A maioria estava pouco satisfeita. O Sr. Settembrini, que via eliminada a possibilidade de um intercâmbio humano, de uma palestra democrático-distinta ou ao menos de uma discussão, ergueu a mão por cima da cabeça, com aquele seu peculiar gesto de resignação e desespero. O malaio apressou-se a executar a ordem do amo. Levara consigo duas cadeiras dobradiças que armou junto à parede rochosa, para Mynheer e madame. Depois estendeu uma toalha aos seus pés e espalhou sobre ela o conteúdo do cesto – um aparelho de café, copos, garrafas térmicas, doces e vinho – que foi avidamente disputado. Os convidados instalaram-se nas pedras ou na balaustrada da ponte, com a xícara de café quente na mão e o prato cheio de bolo sobre os joelhos. Silenciosos, no meio do fragor, começaram a comer a merenda.
     Peeperkorn, com a gola do sobretudo levantada, e com o chapéu depositado no chão, perto de si, bebia vinho do Porto num copo de prata, guarnecido de um monograma, e que esvaziou várias vezes. E de repente se pôs a falar. Que homem estranho! Não era possível que ouvisse a própria voz, e muito menos que os outros entendessem uma sílaba sequer daquilo que lhes comunicava sem comunicá-lo. Levantou, entretanto, o dedo indicador. A seguir, mantendo o copo na mão direita, estendeu o braço esquerdo, com a palma da mão voltada obliquamente para cima. Viu-se então o rosto majestoso movimentar-se ao falar; viu-se a boca articulando palavras que permaneciam desprovidas de som, como se fossem proferidas num vácuo. Todos pensavam que logo desistiria desse esforço inútil, ao qual assistiam com um sorriso perplexo. Mas ele, com uma gesticulação esmerada, fascinante, imperiosa, continuava, a arengar o fragor, fixando os olhinhos lassos, apagados e muito abertos, ora num, ora noutro espectador, de modo que a pessoa a quem parecia dirigir-se se via obrigada a dar-lhe um sinal de aprovação, com as sobrancelhas alçadas, abrindo a boca e pondo a mão em concha na orelha, como se isso bastasse para resolver a situação irremediável. A seguir, Mynheer até se levantou. Tinha ainda o copo na mão. No surrado sobretudo de viagem que quase lhe ia até os pés, e cuja gola se achava erguida, com a cabeça descoberta, e com a alta e rugosa testa de ídolo rodeada pelas labaredas brancas do cabelo – assim se quedava junto ao penhasco e movia o semblante, à cuja frente elevava, doutrinando, o anel do polegar e do indicador, dominado pelos outros dedos em riste, como para remediar a indistinção do brinde mudo pelo sugestivo signo da exatidão. Compreendiam-se através dos gestos e liam-se-lhes dos lábios algumas palavras isoladas que habitualmente saíam da sua boca: “Absolutamente!”, “Basta!” e nada mais. A cabeça pendia para um lado, com uma expressão de amargor nos lábios gretados: a perfeita imagem de um mártir. Em seguida, porém, desabrochou a lasciva covinha, sinal do espírito sibarita, galhofeiro, e do impudor sagrado de um sacerdote pagão que ao dançar arregaça as vestes. E Peeperkorn ergueu o copo, descreveu com ele um semicírculo em direção aos seus convidados, e esvaziou-o completamente em dois ou três tragos, de maneira que o fundo se voltava para o céu. Por fim, com o braço estendido, passou-o ao malaio, que o recebeu com uma mesura, e deu o sinal de partida.
     Depois de se terem inclinado diante dele, para expressar a sua gratidão, todos se dispuseram a obedecer-lhe a ordem. Os que se achavam acocorados no chão levantaram-se de um pulo; quem estava sentado na balaustrada da pontezinha desceu depressa. O delgado javanês, com o chapéu-coco e a gola de peles, apanhou a baixela e os restos de comida. Na mesma ordem de marcha que haviam observado na ida, voltaram pela vereda úmida, coberta de agulhas de pinheiro, através da floresta desfigurada pelas grinaldas de líquen, até a estrada onde os esperavam os coches.
     Desta vez, Hans Castorp embarcou no carro do mestre e da sua companheira. Ocupou um lugar em frente ao casal, ao lado do bom Ferge, que continuava alheio a quaisquer assuntos elevados. Quase não se falou durante a viagem de regresso. Mynheer mantinha as mãos espalmadas sobre o cobertor que envolvia as suas pernas e as de Clávdia, e deixava pender a mandíbula inferior. Settembrini e Naphta desceram e despediram-se antes que os carros atravessassem os trilhos e o curso de água. Wehsal permaneceu sozinho no segundo coche, enquanto este subia pela curva da rampa e alcançava o portal do Berghof, onde todos se separaram...
     Na noite que se seguiu a esse dia, que é que houve com o sono de Hans Castorp? Foi ele mais leve e mais superficial devido a uma certa prontidão interior, da qual a sua alma não se dava conta, mas que tinha por consequência que a menor modificação do costumeiro silêncio noturno do Sanatório Berghof – um alarma por mais abafado que fosse e a mal perceptível repercussão de passos rápidos à distância – bastasse para tornar desperto e lúcido e para fazê-lo sobressaltar-se na cama? O fato é que acordou muito antes que alguém batesse à sua porta, o que se deu pouco depois das duas horas. Respondeu sem demora, clara e energicamente, com plena presença de espírito. Ouviu então a voz aguda e hesitante de uma das enfermeiras auxiliares, ocupadas na casa, e que lhe solicitava, em nome de Mme. Chauchat, que comparecesse imediatamente ao primeiro andar. Com redobrada energia mandou dizer que logo iria. Levantou-se de um salto; enfiou rapidamente as roupas; passou os dedos pelos cabelos, a fim de afastá-los da testa, e desceu sem pressa, mas também não devagar, mais incerto quanto às circunstâncias do que ao próprio fato que havia causado tal convite.
     Encontrou aberta a porta do salão de Peeperkorn, bem como aquela que dava para o quarto do holandês, onde todas as luzes estavam acesas. Ambos os médicos, a Superiora von Mylendonk, Mme. Chauchat e o criado malaio achavam-se presentes. Este não estava vestido como de costume, mas trazia uma espécie de traje nacional: uma jaqueta parecida com uma camisa, de listras largas e com mangas muito amplas e compridas; uma saia de muitas cores em lugar das calças; e um chapéu cônico de pano amarelo. Além disso se adornara com um colar de amuletos que lhe pendiam sobre o peito. Mantinha-se imóvel, com os braços cruzados, à esquerda da cabeceira da cama, na qual jazia Pieter Peeperkorn, de costas, com os braços estendidos ao longo do corpo. Empalidecendo, o jovem abrangeu a cena com a vista, enquanto entrava. Mme. Chauchat voltava-lhe as costas. Estava sentada numa poltrona baixa, ao pé da cama, apoiando o cotovelo na colcha, com o queixo fincado na mão e os dedos cravados no lábio inferior, e contemplava o rosto do seu companheiro de viagem. 

– Boa noite, meu rapaz – disse Behrens, que acabava de conversar baixinho com o Dr. Krokowski e com a Superiora. Sacudiu melancolicamente a cabeça e torceu o lábio com o bigodinho branco. Trajava o avental de médico, com o estetoscópio sobressaindo do bolso de cima. Calçava chinelos bordados e estava sem colarinho. – Não há remédio – acrescentou num murmúrio. – Trabalho perfeito. Pode ir mais perto e examiná-lo com olhar de perito. O senhor deve admitir que aí se fez tudo para sabotar a arte médica.
  
     Sobre as pontas dos pés, Hans Castorp aproximou-se da cama. Os olhos do malaio vigiavam cada um dos seus movimentos; acompanhavam-nos, sem que o homem virasse a cabeça, de modo que se via o branco do globo ocular. Com um olhar de esguelha, o jovem verificou que Mme. Chauchat não dava atenção à sua presença. Postou-se ao lado do leito, na sua posição típica, com o peso do corpo a repousar sobre uma das pernas, as mãos juntas à frente da barriga, inclinando a cabeça para o lado, numa contemplação reverente e pensativa. Peeperkorn achava-se estatelado sob a colcha de seda vermelha, naquela camisola de malha que Hans Castorp tantas vezes o vira usar. As mãos, bem como partes do rosto, mostravam manchas de um roxo enegrecido, o que contribuía consideravelmente para desfigurar o holandês, se bem que, fora isso, as feições majestosas permanecessem inalteradas. Também em estado de descanso, e apesar das pálpebras cerradas, ressaltavam fortemente as rugas da alta fronte circundada de labaredas brancas, essas rugas pregueadas como num ídolo, que se estendiam horizontalmente em quatro ou cinco fileiras, antes de descerem em ângulo reto por ambas as têmporas, e pareciam acentuadas pelos esforços habituais de uma vida inteira. Os lábios gretados e amargurados estavam entreabertos. A cianose indicava uma interrupção brusca, um impedimento veemente, apoplético, das funções vitais.
     Hans Castorp quedou-se alguns instantes imóvel, observando tudo isso com reverência. Vacilava em modificar a sua posição e esperava que a “viúva” lhe dirigisse a palavra. Mas, como tal não se desse, preferiu não incomodá-la por enquanto e voltou-se para o grupo das outras pessoas que se achavam atrás dele. O conselheiro fez um sinal de cabeça em direção ao salão. Hans Castorp seguiu-o até ali.

Suicidium? – perguntou baixinho, com objetividade profissional. 
– Se é! – respondeu Behrens, dando de ombros; e acrescentou: – Cem por cento. No superlativo. O senhor já viu uma coisa destas numa casa de miudezas? – E puxou do bolso do avental um estojo de forma irregular, do qual tirou um pequeno objeto que apresentou ao jovem. – Eu, nunca. Mas vale a pena olhá-lo. Vivendo e aprendendo. Um troço fantástico e muito engenhoso. Tirei-o das mãos dele. Cuidado! Basta que uma gota lhe caia sobre a pele para que o senhor fique com bolhas. 

     Hans Castorp revolveu entre as mãos o objeto misterioso. Era feito de aço, marfim, ouro e borracha e oferecia aspecto bem estranho. Viam-se dois dentes de garfo, recurvos, de aço polido, e com pontas muito afiadas; havia uma parte central, de marfim, levemente retorcida e incrustada de ouro, cujo mecanismo elástico permitia mover os dentes até certo ponto e aproximá-los um do outro; e tudo terminava numa espécie de saquinho de borracha preta e meio dura. O tamanho do objeto não ia além de umas poucas polegadas. 

– Que é isto? – perguntou Hans Castorp. 
– Isto – respondeu Behrens – é a encarnação de uma seringa hipodérmica. Ou, sob um outro ponto de vista, é a cópia mecânica das presas da naja. O senhor me compreende? Parece que não – continuou ao ver que Hans Castorp não deixava de fitar, como que hipnotizado, aquele objeto curioso. – Aqui estão os dentes. Não são completamente maciços, mas passa por eles um tubo capilar, um canal finíssimo, cuja extremidade exterior se vê nitidamente, na parte dianteira, um pouco acima das pontas. Claro que os tubinhos têm outro orifício na raiz dos dentes e ali comunicam-se com o conduto excretor da glândula de borracha, que se estende através da peça central de marfim. No momento da mordida, os dentes executam um movimento elástico de contração, como é fácil perceber, e exercem uma pressão sobre o depósito de veneno, que então impele o seu conteúdo para dentro dos canais, de maneira que no mesmo instante em que as pontas entram na carne a dose de veneno penetra na circulação do sangue. É muito simples quando já se vê pronto. Difícil era inventá-lo. Provavelmente foi feito segundo as próprias indicações dele. 
– Acho que sim – disse Hans Castorp. 
– A carga não pode ter sido muito grande – prosseguiu o conselheiro. – O que lhe faltava em quantidade, sobrava-lhe em... 
 – ...dinamismo – completou Hans Castorp. 
– Certo. Já verificaremos do que se trata. Pode-se esperar com certa curiosidade o resultado da análise, porque não duvido de que nos dará uma oportunidade para aprender alguma coisa. Aposto que aquela personagem exótica que ali está de sentinela e se endomingou para a ocasião saberia perfeitamente informar-nos. Na minha opinião foi usada uma combinação de substâncias animais e vegetais, o melhor que existe no ramo, pois o efeito deve ter sido fulminante. Tudo leva a crer que lhe cortou imediatamente a respiração; paralisia do centro respiratório, entende? Asfixia rápida, sem esforços nem dores, segundo todas as probabilidades. 
– Quisera Deus! – disse Hans Castorp piamente. Com um suspiro devolveu ao conselheiro o sinistro instrumentozinho e voltou ao quarto do holandês.

     Unicamente o malaio e Mme. Chauchat encontravam-se ainda ali. Desta vez, Clávdia levantou a cabeça e olhou o jovem, que novamente se aproximava da cama. 

– O senhor tinha direito a que eu o mandasse chamar – disse ela. 
– Foi muito gentil da sua parte – respondeu Hans Castorp. – E a senhora tem razão. Éramos amigos e nos tratávamos de “tu”. Tenho vergonha até o fundo do meu coração de me ter esquivado a tuteá-lo na frente de terceiros e de ter recorrido a subterfúgios... A senhora achava-se a seu lado durante os últimos instantes? 
– O criado me avisou quando tudo estava terminado – explicou ela. 
– A envergadura dele era tamanha – recomeçou Hans Castorp – que o fracasso do sentimento em face da vida lhe causava a sensação de uma catástrofe cósmica e de um aviltamento de Deus. Pois a senhora deve saber que ele se considerava o órgão nupcial de Deus. Era uma fantasia de rei... Quando estamos comovidos, temos a coragem de empregar expressões que soam rudes e desapiedadas, mas são mais solenes do que as palavras da devoção convencional. 
C’est une abdication – disse ela. – Sabia ele da nossa loucura? 
– Não me foi possível negá-la, madame. Ele adivinhara tudo, quando me recusei a beijar lhe a fronte na presença dele. Embora esta presença seja antes simbólica do que real neste momento, a senhora me permitirá que o faça agora?

     Num movimento breve, como que de convite, ela elevou até o jovem a cabeça, com os olhos fechados. E Hans Castorp aproximou os lábios da sua testa. Os olhos castanhos, de animal, do malaio observavam a cena, mirando de esguelha, a ponto de mostrar o branco do globo ocular.

continua pág 411...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Mynheer Peeperkorn (Fim) - [b]
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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