domingo, 27 de agosto de 2017

Gente Pobre - 18. Onde gosto mais de viver, é onde já me encontro - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


18.




27 de junho



Querido Makar Alexeievitch:


Fédora disse-me que conhece pessoas que seriam capazes de se interessar pela minha situação e, se eu quisesse, me poderiam arranjar um bom lugar como governante em qualquer casa. Que lhe parece, meu amigo? Aceito ou não? Não queria continuar a ser-lhe pesada, e o referido lugar parece muito bom. Por outro lado, atemoriza-me um pouco a ideia de ter de entrar ao serviço de gente estranha. Dizem que se trata de uma família de proprietários rurais. E se quiserem obter informações acerca do meu passado, que deverei dizer-lhes? Além disso, insociável e amiga da solidão como sou! Onde gosto mais de viver, é onde já me encontro. Sinto-me mais contente e alegre neste cantinho a que já estou habituada; embora, por vezes, passe dificuldades, sempre é preferível a qualquer outro. Além disso, ver-me-ia obrigada a viajar para me trasladar para as propriedades da referida família; e sabe-se lá que serviço me dariam? Eram capazes de me pôr a olhar por crianças! E que gente será aquela para, nestes últimos dois anos, haverem já tido três governantes? Aconselhe-me, querido Makar Alexeievitch, a fazer o que achar ser melhor: devo aceitar a proposta ou deixar-me ficar aqui? Porque não nos vem visitar? Vejo-o tão poucas vezes! Tirante os domingos, na igreja, durante a semana quase não nos vemos. O senhor é assim insociável? Então é como eu! E não admira, pois, ao fim e ao cabo, somos parentes. Ou já me não tem amor, Makar Alexeievitch? A solidão, às vezes, entristece-me, sobretudo à hora do crepúsculo, quando me encontro sozinha em casa. Se Fédora sai, às compras ou a qualquer coisa, fico para aqui a pensar e a recordar o passado — as alegrias e as tristezas —, pois tudo perpassa diante de mim como uma nuvem. Surgem outra vez na minha frente os rostos conhecidos — parece-me vê-los, acordada, como se fosse em sonhos-, sendo frequente ver a mamã... E o que eu sonho! Penso que a minha saúde está abalada. Sinto-me tão fraca! De manhã, ao levantar-me da cama, achei-me muito mal, e esta aborrecida tosse não há forma de me passar! Pressinto — sei-o bem — que pouco durarei. Quem me acompanhará à última morada? Quem chorará por mim? E se morrer numa casa estranha, no meio de desconhecidos? Meu Deus, como esta vida é triste, Makar Alexeievitch! Meu amigo, porque me está sempre a mandar doces? Não posso compreender como arranja dinheiro para estas coisas. Guarde-o para outras de mais utilidade, guarde! Fédora arranjou comprador para o tapete que fiz. Dão-me por ele quinze rublos. Já é bem pago; julguei que me ofereceriam menos. Tocam três rublos a Fédora, e com o resto comprarei um bocado de tecido qualquer, barato, para um vestido simplesinho. Ao meu amigo, quero dar-lhe um colete muito bonito, de bom pano, que eu mesma farei. Fédora arranjou-me um livro — Contos de Bielkin — que junto lhe envio, a fim de que o leia também. Apenas lhe peço que não o demore muito aí, porque não é meu. É da autoria de Pouchkine. Há dois anos li estes contos na companhia da mamã; por isso, ao lê-lo agora, acudiram-me à mente tristes recordações. Se tiver por aí algum livro, mande-mo, contanto que não seja de Ratazaiev. Ele é capaz de lhe oferecer alguma obra da sua autoria, se é que tem alguma publicada. Como é possível que o senhor goste tanto dos seus escritos, Makar Alexeievitch? São verdadeiramente disparatados. Bem, adeus! O que eu para aqui rabisquei! Quando me assalta a melancolia, o meu gosto é ter com quem falar! É o melhor remédio para o mal; sinto-me logo mais aliviada, sobretudo quando posso deitar cá para fora tudo o que me aflige o coração. Adeus, adeus, meu amigo! Sua



B. D.





28 de junho


Minha querida Bárbara Alexeievna:


Para longe as tristezas! Não tem vergonha? Acabe com essas mágoas! Como pode ter semelhantes pensamentos? A sua doença já lá vai; está completamente boa, meu anjo! Até dá gosto vê-la, é a pura verdade, creia; apenas um bocadinho pálida, mas, apesar disso, é bem nítida a sua louçania. Deixe-se desses sonhos, pesadelos e espectros! Isso é vergonhoso, sabe? Não pense nessas coisas, minha querida! Se não se preocupar com esses estúpidos sonhos, eles não a apoquentarão mais. Não há nada mais simples. Porque é que eu durmo bem? Será por não me faltar nada? Repare em mim. Sinto-me contente e alegre, durmo a sono solto, tenho saúde a rodos, numa palavra, sou da pele do diabo; e gabo-me disso! Deixe-se dessas coisas, repito, tenha vergonha e corrija-se. Mas eu conheço bem essa cabecita; a mínima insignificância entristece-a e preocupa-a, e atormenta o espírito com pensamentos de toda a espécie. Acabe com esses desvarios, quanto mais não seja, para me fazer a vontade! Ir servir gente estranha? Isso nunca. Não, e mil vezes não! Que ideia foi essa? Como se fosse uma coisa sem importância ir para longe daqui! Não, minha querida; ainda me não conhece bem; nunca consentirei em tal; oponho-me com todas as minhas forças a semelhante projeto! Nem que tivesse de vender o casaco e ficar em camisa, meu amor, nunca a deixaria passar necessidade! Não, eu conheço-a bem! Isso é uma loucura e nada mais. A culpada de tudo, é essa tonta da Fédora, tenho a certeza; é ela que lhe mete essas ideias na cabeça. Mas você não deve ligar importância ao que ela diz. Sabe muito bem que essa mulher é uma imbecil, uma charlatã incorrigível que amargurou a vida do falecido marido com as suas loucuras! Decerto tem-na atormentado, como fazia ao infeliz. Não, minha querida; nada do que escreveu se poderá realizar! E que seria de mim, aqui sozinho? Não, Bárbara, meu amor, deixe-se disso. Que falta nessa casa? Para mim é uma alegria tê-la aqui perto, e para si esta proximidade representa também uma satisfação. Não vá, e vivamos todos juntos, em paz e na graça de Deus! Faça o que quiser — costure ou leia, ou não costure —, mas não nos abandone. Se assim fizesse, diga-me: que seria de nós? De vez em quando daremos o nosso passeio. O que é preciso é afastar de si, de uma vez para sempre, esses pensamentos, procurar ser razoável e não se preocupar nem afligir com bagatelas! Irei visitá-la brevemente e então falaremos. Mas espero que não faça isso; com certeza não o fará. Não sou, naturalmente, um homem culto. Mais do que ninguém, preciso de me instruir, pois pouco mais aprendi além das primeiras letras. Mas não se trata agora disso, nem era a este ponto que eu queria chegar. Pretendia apenas dizer que, por Ratazaiev , seria capaz de tudo; e não leve a mal esta minha confissão! É meu amigo e cumpre-me defendê-lo. Escreve bem, mesmo muito bem. Não posso, de modo algum, estar de acordo consigo. O seu estilo é colorido, sóbrio, cheio de imagens e pensamentos. Numa palavra: escreve muitíssimo bem! Talvez o haja lido superficialmente, querida Bárbara; se calhar Fédora incomodou-a com alguma das suas, ou então, estava maldisposta nesse dia. Não; há de voltar a lê-lo, mas com interesse e atenção, quando estiver contente e bem-humorada; por exemplo, com um docinho na boca... Só nestas condições deverá tentar fazê-lo. Não quero dizer — o que seria um disparate — que Ratazaiev é incomparável; porém, admitindo mesmo que há escritores muito melhores do que ele, isso não é razão para o declarar mau. Todos são bons: ele escreve bem, e os outros também, quanto a mim. Além disso, não esqueçamos que ele escreve apenas para se entreter; só pega na pena nos momentos livres... o que bem se nota; e, para dizer a verdade, não perde nada com isso. Por agora, adeus, meu amor; hoje não lhe escrevo mais; tenho de copiar umas coisas, e por isso não posso demorar-me. Veja se me tranquiliza. Deus a guarde, queridinha, e a conserve sob a Sua proteção. Seu fiel amigo



Makar Dievuchkin



P. S. — Muito obrigado pelo livro, minha querida. Vou ler, seguido, este volume de Pouchkine, e logo à noite, sem falta, irei aí.






28 de junho


Meu querido Makar Alexeievitch:


Não, meu amigo; não posso continuar aqui por mais tempo. Pensei bem no caso e cheguei à conclusão de que não devia deixar fugir uma colocação tão boa. Ali, ao menos terei garantido o pão de cada dia. Trabalharei o mais possível, procurarei conquistar a simpatia desses estranhos e, se tanto for necessário, esforçar-me-ei até por mudar de feitio. Bem sei que é difícil e doloroso viver entre estranhos, fazer-lhes todas as vontades, dissimular e depender deles em tudo; mas conto para isso com a ajuda de Deus. Não posso ficar toda a vida presa! Já em tempos passei por transes semelhantes, por exemplo, quando estava no colégio. Aos sábados ia para casa e passava o domingo inteiro a brincar e a saltar como uma verdadeira selvagem, e quando por acaso a mamã me ralhava — o que às vezes fazia —, nem por isso eu deixava de continuar contente e sentir o coração radiante e quente. Mas quando chegava a tarde, sentia-me outra vez imensamente infeliz; às nove tinha de regressar ao colégio. Tudo ali era estranho, frio, severo: as professoras, aos domingos, estavam sempre maldispostas, e invadia-me tal tristeza, caía num abatimento tal, que não conseguia conter as lágrimas. Devagarinho, escondia-me num canto e ali me punha a chorar, sozinha e abandonada. Se me viam naquele preparo, logo diziam que era preguiçosa e não queria estudar. Mas não era esse o motivo do meu pranto. E, por fim, que sucedeu? Acabei por me habituar, e quando me vi obrigada a deixar o colégio, foi com lágrimas que me despedi das minhas companheiras. Não; não devo continuar aqui, pois represento um encargo para si e para Fédora. Pensar nisto é para mim um verdadeiro tormento. Digo-lhe isto com toda a franqueza, porque estou afeita a não lhe ocultar seja o que for. Pensa que não vejo a Fédora levantar-se ainda não é bem dia e ir lavar, prosseguindo depois numa lida constante até altas horas da noite? As pessoas de idade precisam de descanso. Sei também quanto o senhor se sacrifica por mim, privando-se por vezes do necessário para gastar comigo tudo o que ganha. Não ignoro, meu bom amigo, que faz por esta infeliz mais do que pode. Dizia-me o senhor, na sua carta, que preferia ficar sem nada, a consentir que eu passasse necessidade. Acredito, meu protetor; sei-o muito bem, conheço o seu bondoso coração. Mas pense um pouco! É possível que presentemente tenha dinheiro de sobra, talvez haja recebido uma gratificação inesperada. Mas, e depois? Sabe bem que passo a maior parte do tempo doente. Não posso trabalhar como o Makar Alexeievitch, apesar de ser esse o meu desejo, e mesmo nem sempre há trabalho. Que devo fazer? Sofrer e torturar-me, sem fazer coisa alguma, deixando que entretanto o senhor e Fédora tratem de mim? Como poderia eu retribuir o menor dos seus desvelos, fosse no que fosse? Não lhe sou, certamente, tão indispensável como o meu amigo diz. Já lhe fiz, porventura, algum bem? Fiz uma coisa apenas: querer-lhe do fundo do coração; e é tudo quanto posso fazer. O meu destino cruel persegue-me outra vez! Sei amar, mas não posso fazer bem, retribuir com ações os benefícios com que me tem cumulado. Por isso, não me retenha por mais tempo, pense maduramente no meu projeto e dê-me depois, com sinceridade, a sua opinião. Fica na expectativa a sua.



B D.







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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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