Simone de Beauvoir
12. Fatos e Mitos
: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea
O IMENSO progresso que a psicanálise realizou na psico-fisiologia foi considerar que nenhum fator intervém na vida psíquica sem ter revestido um sentido humano; não é o corpo-objeto descrito pelos cientistas que exige concretamente e sim o corpo vivido pelo sujeito. A mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea. Há dados biológicos essenciais e que não pertencem à situação vivida. Assim é que a estrutura do ovário nela não se reflete; ao contrário, um órgão sem grande importância biológica, como o clitóris, nela desempenha um papel de primeiro plano. Não é a natureza que define a mulher: esta é que se define retomando a natureza em sua afetividade.
Dentro dessa perspectiva, edificou-se todo um sistema: não pretendemos aqui criticá-lo em seu conjunto, mas tão-somente examinar sua contribuição ao estudo da mulher. Não é empresa fácil discutir a psicanálise. Como todas as religiões — cristianismo, marxismo — ela se revela, sobre um fundo de conceitos rígidos, de uma elasticidade embaraçante. Ora as palavras são tomadas em seu sentido mais restrito — o termo falo, por exemplo, designando muito precisamente a excrescência carnosa que é o sexo do macho — ora num sentido indefinidamente ampliado e adquirindo um valor simbólico. Então, o falo exprimiria todo um conjunto do caráter e da situação viris. Se se ataca a letra da doutrina, o psicanalista afirma que lhe desconhecemos o espírito; se se lhe aprova o espírito, ele procura de imediato restringir-nos à letra. A doutrina não tem importância, diz um: a psicanálise é um método; mas o êxito do método fortalece a fé do doutrinário. E onde encontrar, afinal, a verdadeira psicanálise senão entre os psicanalistas? Mas entre estes, como entre os cristãos e os marxistas, existem heréticos, e mais de um psicanalista declarou que "os piores inimigos da psicanálise são os psicanalistas". A despeito de uma precisão escolástica, muitas vezes pedante, numerosos equívocos não foram ainda dissipados. Como o observar Sartre e Merleau-Ponty, a proposição: "A sexualidade é coextensiva à existência", pode entender-se de duas maneiras muito diferentes; pode-se dizer que todo avatar do existente tem uma significação sexual, ou que todo fenômeno sexual tem um sentido existencial: entre ambas as afirmativas uma conciliação é possível; mas muitas vezes limitam-se a passar de uma a outra. De resto, desde que se distingue "sexual" e "genital" a noção de sexualidade torna-se vaga. "O sexual em Freud é a aptidão intrínseca para animar o genital", diz Dalbiez. Mas nada é mais turvo do que a ideia de "aptidão", isto é, de possível: só a realidade fornece a prova indubitável da possibilidade. Freud recusou, não sendo filósofo, justificar filosoficamente seu sistema; seus discípulos pretendem que dessa maneira ele elude todo ataque de ordem metafísica. Há entretanto, por trás de todas as suas afirmações, postulados metafísicos; utilizar sua linguagem é adotar uma filosofia. São essas confusões que, tornando penosa a crítica, a exigem.
Freud não se preocupou muito com o destino da mulher; é claro que calcou a descrição do destino feminino sobre o masculino, restringindo-se a modificar alguns traços. Antes de Freud, o sexologista Marañon declarara: "Enquanto energia diferençada, a libido é, pode-se dizer, uma força de sentido viril. Diremos o mesmo do orgasmo". Na sua opinião, as mulheres que alcançam o orgasmo são mulheres "virilóides"; o impulso sexual tem uma "única direção" e a mulher encontra-se ainda no meio do caminho (1). Freud não vai tão longe; admite que a sexualidade da mulher é tão evoluída quanto a do homem; mas não a estuda, por assim dizer, em si mesma. Escreve: "A libido é de maneira constante e regular de essência masculina, surja ela no homem ou na mulher". Recusa-se a pôr a libido feminina em sua originalidade: ele a vê, por conseguinte, necessariamente como um desvio complexo da libido humana em geral.
Esta desenvolve-se primeiramente, pensa ele, de maneira idêntica nos dois sexos: todas as crianças atravessam uma fase oral que as fixa ao seio materno, em seguida uma fase anal e atingem finalmente a fase genital: é então que se diferenciam. Freud pôs em foco um fato cuja importância, antes dele, não se havia ainda reconhecido totalmente: o erotismo masculino localiza-se definitivamente no pênis, ao passo que há, na mulher, dois sistemas eróticos distintos: um, clitoridiano, que se desenvolve no estágio infantil e outro, vaginal, que surge após a puberdade, Quando o jovem atinge a fase genital, sua evolução está terminada; será necessário que passe da atitude auto-erótica, em que aspira ao prazer em sua subjetividade, a uma atitude hétero-erótica, que relacionará o prazer a um objeto, normalmente a mulher. Tal passagem efetuar-se-á no momento da puberdade, através de uma fase narcisística; mas o pênis, como na infância, permanecerá o órgão erótico privilegiado. A mulher deverá também, pelo narcisismo, objetivar, no homem, sua libido; porém o processo será muito mais complexo pois cumpre que passe do prazer clitoridiano ao vaginal. Há somente uma etapa genital para o homem enquanto há duas para a mulher; ela se arrisca bem mais do que ele a não atingir o termo de sua evolução sexual, a permanecer no estágio infantil e, consequentemente, a desenvolver neuroses.
Já no estágio auto-erótico, a criança liga-se mais ou menos fortemente a um objeto; o menino fixa-se na mãe e quer identificar-se com o pai; apavora-se com essa pretensão e teme que, para puni-lo, o pai o mutile; do "complexo de Édipo", nasce o "complexo de castração"; desenvolve, então, sentimentos de agressividade em relação ao pai, mas interioriza, ao mesmo tempo, sua autoridade. Assim se constitui o superego que censura as tendências incestuosas; essas tendências são recalcadas, o complexo desaparece e o filho liberta-se do pai que, de fato, instalou em si mesmo, sob forma de regras morais. O superego é tanto mais forte quanto mais o complexo de Édipo for definido e mais rigorosamente combatido. Freud descreveu inicialmente, de maneira inteiramente simétrica, a história da menina; em seguida atribuiu à forma feminina do complexo infantil, o nome de complexo de Eletra. Mas é claro que o definiu menos em si mesmo do que a partir da forma masculina; admite, entretanto, que há entre os dois importante diferença: a menina possui, inicialmente, uma fixação materna, enquanto o menino nunca é atraído sexualmente pelo pai. Essa fixação é uma sobrevivência da fase oral; a menina identifica-se, então, com o pai, mas por volta dos cinco anos descobre a diferença anatômica dos sexos e reage à ausência do pênis por um complexo de castração. Imagina ela ter sido mutilada e sofre por isso. Deve, assim, renunciar às suas pretensões viris, identifica-se com a mãe e procura seduzir o pai. Complexo de castração e complexo de Eletra fortalecem-se mutuamente; o sentimento de frustração da menina é tanto mais doloroso quanto, amando o pai, gostaria de assemelhar-se a ele; e, inversamente, essa tristeza de não poder, fortalece seu amor; é pela ternura que inspira ao pai que ela pode compensar sua inferioridade. A menina sente em relação à mãe um sentimento de rivalidade, de hostilidade. Depois, nela também o superego se constitui, as tendências incestuosas são recalcadas mas o superego é mais frágil: o complexo de Eletra é menos nítido do que o de Édipo, pelo fato de a primeira fixação ter sido materna. É, como o pai era, ele próprio, o objeto desse amor que ele condenava, suas proibições tinham menos força do que no caso do filho rival. Assim como sua evolução genital, vê-se que o conjunto do drama sexual é mais complexo na menina do que em seus irmãos; ela pode ser tentada a reagir ao complexo de castração recusando sua feminilidade, obstinando-se em cobiçar um pênis e em identificar-se ao pai; essa atitude conduzi-la-á a permanecer no estágio clitoridiano, a tornar-se frígida ou a voltar-se para a homossexualidade.
As duas críticas essenciais que podem ser feitas a essa descrição provém do fato de Freud tê-la calcado sobre um modelo masculino. Ele supõe que a mulher se sente um homem mutilado. Porém a ideia de mutilação implica uma comparação e uma valorização; muitos psicanalistas admitem hoje que a menina lamenta não ter pênis mas sem supor, entretanto, que lho tiraram; e nem isso é tão generalizado; não poderia tal sentimento nascer de simples confrontação anatômica; muitas meninas só tardiamente descobrem a constituição masculina e, se a descobrem, é apenas pela vista. Já o menino tem de seu pênis uma experiência viva que lhe permite orgulhar-se dele, mas esse orgulho não tem um correlativo imediato na humilhação de suas irmãs, porque estas só conhecem o órgão masculino na sua exterioridade. Essa excrescência, esse frágil caule de carne só lhe pode inspirar indiferença e até repugnância; a inveja da menina resulta de uma valorização prévia da virilidade. Freud a encara como existente quando seria preciso explicá-la (1). Por outro lado, por não se inspirar numa descrição original da libido feminina, a noção de complexo de Eletra permanece muito vaga. Mesmo entre os meninos, a presença de um complexo de Édipo de ordem propriamente genital está longe de ser geral; mas, salvo raríssimas exceções, não há como admitir que o pai seja, para a filha, uma fonte de excitação genital; um dos grandes problemas do erotismo feminino está em que o prazer clitoridiano se isola. É somente no momento da puberdade, em ligação com o erotismo vaginal, que se desenvolvem no corpo da mulher certas zonas erógenas. Dizer que na criança de dez anos os beijos e as carícias do pai têm "uma aptidão intrínseca" para despertar o prazer clitoridiano é uma asserção que na maioria dos casos não tem qualquer sentido. Se admitimos que o complexo de Eletra tem apenas um caráter afetivo muito difuso, coloca-se, então, todo o problema da afetividade, para cuja definição, desde que a separemos da sexualidade, o freudismo não nos fornece os meios. Se como for, não é a libido feminina que diviniza o pai; a mãe não é divinizada pelo desejo que inspira ao filho. O fato de o desejo feminino voltar-se para um ser soberano dá-lhe um caráter original, mas a menina não é constitutiva de seu objeto, ela o sofre. A soberania do pai é um fato de ordem social e Freud malogra em explicá-lo; ele próprio confessa que é impossível saber que autoridade decidiu, em um momento da história, que o pai superaria a mãe; essa decisão representa, a seu ver, um progresso mas cujas causas são ignoradas. "Não pode tratar-se aqui da autoridade paterna, porquanto essa autoridade só foi conferida ao pai pelo progresso", escreve em seu último livro (Moisés e Seu Povo).
Foi por ter compreendido a insuficiência de um sistema que assenta unicamente na sexualidade o desenvolvimento da vida humana, que Adler se separou de Freud; ele pretende reintegrá-la na personalidade total; enquanto, em Freud, todas as condutas surgem como provocadas pelo desejo, isto é, pela procura do prazer, em Adler, o homem se apresenta visando a certos fins: ao móvel, Adler substituiu motivos, finalidades, planos; ele dá à inteligência um lugar tão grande que muitas vezes o sexual adquire, a seus olhos, um olhar tão-somente simbólico. Segundo suas teorias, o drama humano decompõe-se em três momentos: há em todo indivíduo uma vontade de poder que se acompanha de um complexo de inferioridade; esse conflito o conduz a utilizar mil subterfúgios para evitar a prova do real que ele receia não poder vencer. O sujeito estabelece uma distância entre ele e a sociedade que teme; daí provêm as neuroses que são uma perpetuação do sentido social. No que concerne à mulher, seu complexo de inferioridade assume a forma de uma recusa envergonhada da feminilidade. Não é a ausência do pênis que provoca o complexo e sim o conjunto da situação; a menina não inveja o falo a não ser como símbolo dos privilégios concedidos aos meninos; o lugar que o pai ocupa na família, a preponderância universal dos machos, a educação, tudo a confirma na ideia da superioridade masculina. Mais tarde, em suas relações sexuais, a própria posição do coito, que coloca a mulher embaixo do homem, é uma nova humilhação. Ela reage por meio de um "protesto viril": ou procura masculinizar-se, ou luta contra o homem com armas femininas. É pela maternidade que ela pode encontrar na criança um equivalente do pênis. Mas isso supõe que começa a aceitar-se integralmente como mulher e, portanto, que aceita sua inferioridade. Ela é dividida contra si mesma muito mais profundamente do que o homem.
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O SEGUND O SEXO
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 11. Fatos e Mitos: afirmou-se muitas vezes que somente a fisiologia
O Segundo Sexo - 13. Fatos e Mitos: quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais
O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?
12. Fatos e Mitos
Primeira Parte
Destino
CAPITULO II
O PONTO DE VISTA PSICANALÍTICO
O PONTO DE VISTA PSICANALÍTICO
: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea
Dentro dessa perspectiva, edificou-se todo um sistema: não pretendemos aqui criticá-lo em seu conjunto, mas tão-somente examinar sua contribuição ao estudo da mulher. Não é empresa fácil discutir a psicanálise. Como todas as religiões — cristianismo, marxismo — ela se revela, sobre um fundo de conceitos rígidos, de uma elasticidade embaraçante. Ora as palavras são tomadas em seu sentido mais restrito — o termo falo, por exemplo, designando muito precisamente a excrescência carnosa que é o sexo do macho — ora num sentido indefinidamente ampliado e adquirindo um valor simbólico. Então, o falo exprimiria todo um conjunto do caráter e da situação viris. Se se ataca a letra da doutrina, o psicanalista afirma que lhe desconhecemos o espírito; se se lhe aprova o espírito, ele procura de imediato restringir-nos à letra. A doutrina não tem importância, diz um: a psicanálise é um método; mas o êxito do método fortalece a fé do doutrinário. E onde encontrar, afinal, a verdadeira psicanálise senão entre os psicanalistas? Mas entre estes, como entre os cristãos e os marxistas, existem heréticos, e mais de um psicanalista declarou que "os piores inimigos da psicanálise são os psicanalistas". A despeito de uma precisão escolástica, muitas vezes pedante, numerosos equívocos não foram ainda dissipados. Como o observar Sartre e Merleau-Ponty, a proposição: "A sexualidade é coextensiva à existência", pode entender-se de duas maneiras muito diferentes; pode-se dizer que todo avatar do existente tem uma significação sexual, ou que todo fenômeno sexual tem um sentido existencial: entre ambas as afirmativas uma conciliação é possível; mas muitas vezes limitam-se a passar de uma a outra. De resto, desde que se distingue "sexual" e "genital" a noção de sexualidade torna-se vaga. "O sexual em Freud é a aptidão intrínseca para animar o genital", diz Dalbiez. Mas nada é mais turvo do que a ideia de "aptidão", isto é, de possível: só a realidade fornece a prova indubitável da possibilidade. Freud recusou, não sendo filósofo, justificar filosoficamente seu sistema; seus discípulos pretendem que dessa maneira ele elude todo ataque de ordem metafísica. Há entretanto, por trás de todas as suas afirmações, postulados metafísicos; utilizar sua linguagem é adotar uma filosofia. São essas confusões que, tornando penosa a crítica, a exigem.
Freud não se preocupou muito com o destino da mulher; é claro que calcou a descrição do destino feminino sobre o masculino, restringindo-se a modificar alguns traços. Antes de Freud, o sexologista Marañon declarara: "Enquanto energia diferençada, a libido é, pode-se dizer, uma força de sentido viril. Diremos o mesmo do orgasmo". Na sua opinião, as mulheres que alcançam o orgasmo são mulheres "virilóides"; o impulso sexual tem uma "única direção" e a mulher encontra-se ainda no meio do caminho (1). Freud não vai tão longe; admite que a sexualidade da mulher é tão evoluída quanto a do homem; mas não a estuda, por assim dizer, em si mesma. Escreve: "A libido é de maneira constante e regular de essência masculina, surja ela no homem ou na mulher". Recusa-se a pôr a libido feminina em sua originalidade: ele a vê, por conseguinte, necessariamente como um desvio complexo da libido humana em geral.
(1) É curioso deparar-se com essa teoria em D. H. Lawrence. Em A Serpente Emplumada, Don Cipriano cuida de que sua amante não alcance nunca o orgasmo: ela deve vibrar de acordo com o homem e não se individualizar no prazer.
Esta desenvolve-se primeiramente, pensa ele, de maneira idêntica nos dois sexos: todas as crianças atravessam uma fase oral que as fixa ao seio materno, em seguida uma fase anal e atingem finalmente a fase genital: é então que se diferenciam. Freud pôs em foco um fato cuja importância, antes dele, não se havia ainda reconhecido totalmente: o erotismo masculino localiza-se definitivamente no pênis, ao passo que há, na mulher, dois sistemas eróticos distintos: um, clitoridiano, que se desenvolve no estágio infantil e outro, vaginal, que surge após a puberdade, Quando o jovem atinge a fase genital, sua evolução está terminada; será necessário que passe da atitude auto-erótica, em que aspira ao prazer em sua subjetividade, a uma atitude hétero-erótica, que relacionará o prazer a um objeto, normalmente a mulher. Tal passagem efetuar-se-á no momento da puberdade, através de uma fase narcisística; mas o pênis, como na infância, permanecerá o órgão erótico privilegiado. A mulher deverá também, pelo narcisismo, objetivar, no homem, sua libido; porém o processo será muito mais complexo pois cumpre que passe do prazer clitoridiano ao vaginal. Há somente uma etapa genital para o homem enquanto há duas para a mulher; ela se arrisca bem mais do que ele a não atingir o termo de sua evolução sexual, a permanecer no estágio infantil e, consequentemente, a desenvolver neuroses.
Já no estágio auto-erótico, a criança liga-se mais ou menos fortemente a um objeto; o menino fixa-se na mãe e quer identificar-se com o pai; apavora-se com essa pretensão e teme que, para puni-lo, o pai o mutile; do "complexo de Édipo", nasce o "complexo de castração"; desenvolve, então, sentimentos de agressividade em relação ao pai, mas interioriza, ao mesmo tempo, sua autoridade. Assim se constitui o superego que censura as tendências incestuosas; essas tendências são recalcadas, o complexo desaparece e o filho liberta-se do pai que, de fato, instalou em si mesmo, sob forma de regras morais. O superego é tanto mais forte quanto mais o complexo de Édipo for definido e mais rigorosamente combatido. Freud descreveu inicialmente, de maneira inteiramente simétrica, a história da menina; em seguida atribuiu à forma feminina do complexo infantil, o nome de complexo de Eletra. Mas é claro que o definiu menos em si mesmo do que a partir da forma masculina; admite, entretanto, que há entre os dois importante diferença: a menina possui, inicialmente, uma fixação materna, enquanto o menino nunca é atraído sexualmente pelo pai. Essa fixação é uma sobrevivência da fase oral; a menina identifica-se, então, com o pai, mas por volta dos cinco anos descobre a diferença anatômica dos sexos e reage à ausência do pênis por um complexo de castração. Imagina ela ter sido mutilada e sofre por isso. Deve, assim, renunciar às suas pretensões viris, identifica-se com a mãe e procura seduzir o pai. Complexo de castração e complexo de Eletra fortalecem-se mutuamente; o sentimento de frustração da menina é tanto mais doloroso quanto, amando o pai, gostaria de assemelhar-se a ele; e, inversamente, essa tristeza de não poder, fortalece seu amor; é pela ternura que inspira ao pai que ela pode compensar sua inferioridade. A menina sente em relação à mãe um sentimento de rivalidade, de hostilidade. Depois, nela também o superego se constitui, as tendências incestuosas são recalcadas mas o superego é mais frágil: o complexo de Eletra é menos nítido do que o de Édipo, pelo fato de a primeira fixação ter sido materna. É, como o pai era, ele próprio, o objeto desse amor que ele condenava, suas proibições tinham menos força do que no caso do filho rival. Assim como sua evolução genital, vê-se que o conjunto do drama sexual é mais complexo na menina do que em seus irmãos; ela pode ser tentada a reagir ao complexo de castração recusando sua feminilidade, obstinando-se em cobiçar um pênis e em identificar-se ao pai; essa atitude conduzi-la-á a permanecer no estágio clitoridiano, a tornar-se frígida ou a voltar-se para a homossexualidade.
As duas críticas essenciais que podem ser feitas a essa descrição provém do fato de Freud tê-la calcado sobre um modelo masculino. Ele supõe que a mulher se sente um homem mutilado. Porém a ideia de mutilação implica uma comparação e uma valorização; muitos psicanalistas admitem hoje que a menina lamenta não ter pênis mas sem supor, entretanto, que lho tiraram; e nem isso é tão generalizado; não poderia tal sentimento nascer de simples confrontação anatômica; muitas meninas só tardiamente descobrem a constituição masculina e, se a descobrem, é apenas pela vista. Já o menino tem de seu pênis uma experiência viva que lhe permite orgulhar-se dele, mas esse orgulho não tem um correlativo imediato na humilhação de suas irmãs, porque estas só conhecem o órgão masculino na sua exterioridade. Essa excrescência, esse frágil caule de carne só lhe pode inspirar indiferença e até repugnância; a inveja da menina resulta de uma valorização prévia da virilidade. Freud a encara como existente quando seria preciso explicá-la (1). Por outro lado, por não se inspirar numa descrição original da libido feminina, a noção de complexo de Eletra permanece muito vaga. Mesmo entre os meninos, a presença de um complexo de Édipo de ordem propriamente genital está longe de ser geral; mas, salvo raríssimas exceções, não há como admitir que o pai seja, para a filha, uma fonte de excitação genital; um dos grandes problemas do erotismo feminino está em que o prazer clitoridiano se isola. É somente no momento da puberdade, em ligação com o erotismo vaginal, que se desenvolvem no corpo da mulher certas zonas erógenas. Dizer que na criança de dez anos os beijos e as carícias do pai têm "uma aptidão intrínseca" para despertar o prazer clitoridiano é uma asserção que na maioria dos casos não tem qualquer sentido. Se admitimos que o complexo de Eletra tem apenas um caráter afetivo muito difuso, coloca-se, então, todo o problema da afetividade, para cuja definição, desde que a separemos da sexualidade, o freudismo não nos fornece os meios. Se como for, não é a libido feminina que diviniza o pai; a mãe não é divinizada pelo desejo que inspira ao filho. O fato de o desejo feminino voltar-se para um ser soberano dá-lhe um caráter original, mas a menina não é constitutiva de seu objeto, ela o sofre. A soberania do pai é um fato de ordem social e Freud malogra em explicá-lo; ele próprio confessa que é impossível saber que autoridade decidiu, em um momento da história, que o pai superaria a mãe; essa decisão representa, a seu ver, um progresso mas cujas causas são ignoradas. "Não pode tratar-se aqui da autoridade paterna, porquanto essa autoridade só foi conferida ao pai pelo progresso", escreve em seu último livro (Moisés e Seu Povo).
(1) Discutiremos mais longamente essa questão no volume II, cap. I.
Foi por ter compreendido a insuficiência de um sistema que assenta unicamente na sexualidade o desenvolvimento da vida humana, que Adler se separou de Freud; ele pretende reintegrá-la na personalidade total; enquanto, em Freud, todas as condutas surgem como provocadas pelo desejo, isto é, pela procura do prazer, em Adler, o homem se apresenta visando a certos fins: ao móvel, Adler substituiu motivos, finalidades, planos; ele dá à inteligência um lugar tão grande que muitas vezes o sexual adquire, a seus olhos, um olhar tão-somente simbólico. Segundo suas teorias, o drama humano decompõe-se em três momentos: há em todo indivíduo uma vontade de poder que se acompanha de um complexo de inferioridade; esse conflito o conduz a utilizar mil subterfúgios para evitar a prova do real que ele receia não poder vencer. O sujeito estabelece uma distância entre ele e a sociedade que teme; daí provêm as neuroses que são uma perpetuação do sentido social. No que concerne à mulher, seu complexo de inferioridade assume a forma de uma recusa envergonhada da feminilidade. Não é a ausência do pênis que provoca o complexo e sim o conjunto da situação; a menina não inveja o falo a não ser como símbolo dos privilégios concedidos aos meninos; o lugar que o pai ocupa na família, a preponderância universal dos machos, a educação, tudo a confirma na ideia da superioridade masculina. Mais tarde, em suas relações sexuais, a própria posição do coito, que coloca a mulher embaixo do homem, é uma nova humilhação. Ela reage por meio de um "protesto viril": ou procura masculinizar-se, ou luta contra o homem com armas femininas. É pela maternidade que ela pode encontrar na criança um equivalente do pênis. Mas isso supõe que começa a aceitar-se integralmente como mulher e, portanto, que aceita sua inferioridade. Ela é dividida contra si mesma muito mais profundamente do que o homem.
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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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O Segundo Sexo - 11. Fatos e Mitos: afirmou-se muitas vezes que somente a fisiologia
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