terça-feira, 8 de agosto de 2017

16.O Estrangeiro: Logo a seguir à minha prisão - Albert Camus

Albert Camus


SEGUNDA PARTE


Capítulo 1


16. Logo a seguir à minha prisão



 LOGO A SEGUIR À MINHA PRISÃO, fui interrogado por várias vezes. Mas tratava-se de interrogatórios de identidade, que não duraram muito tempo. A primeira vez, no comissariado, o meu caso parecia não interessar a ninguém. Oito dias depois, ao contrário, o juiz de instrução olhou-me com curiosidade. Mas, para começar, perguntou-me apenas o nome e a morada, a profissão, a data e o local do nascimento. Depois quis saber se eu já escolhera advogado. Respondi que não e perguntei-lhe se era absolutamente necessário ter advogado. "Porquê?", disse ele. Repliquei, afirmando que achava o meu caso muito simples. Sorriu, dizendo: "É uma opinião. No entanto, a lei é a lei. Se o senhor não quer quem o defenda, nós nomeamos automaticamente advogado". Achei que era muito cômodo, a justiça encarregar-se desses pormenores. Disse-lho. Concordou comigo e concluiu que a lei estava bem feita. 

 No começo, não o tomei a sério. Recebeu-me numa sala com reposteiros nas paredes. Tinha em cima da secretária um único candeeiro, que iluminava a cadeira onde me mandou sentar, enquanto ele ficava na sombra. Tinha já lido descrições parecidas em livros, e tudo isto me pareceu uma brincadeira. Depois da nossa conversa, pelo contrário, olhei-o e vi um homem de traços finos, profundos olhos azuis, muito alto, com um comprido bigode grisalho e uma abundante cabeleira quase branca. Afigurou-se-me uma pessoa razoável e, no fim de contas, simpática, apesar dos tiques nervosos que, de quando em quando, lhe deformavam a boca. À saída ia mesmo para lhe estender a mão, mas lembrei-me a tempo de que era um assassino. 

 No dia seguinte, um advogado veio falar comigo à prisão. Era baixo e gordo, bastante novo ainda, os cabelos cuidadosamente penteados com fixador. Apesar do calor (eu estava em mangas de camisa), envergava um fato escuro, um colarinho duro e uma gravata esquisita, com grandes riscas pretas e brancas. Pôs em cima da cama a pasta que trazia debaixo do braço, apresentou-se e disse que estudara o meu processo. O meu caso era delicado, mas se eu tivesse confiança nele, não duvidava do êxito final. Agradeci-lhe e ele disse-me: "Entremos no fundo da questão". 

 Sentou-se na cama e explicou-me que tinham andado a investigar a minha vida privada. Tinham descoberto que a minha mãe morrera recentemente no asilo. Procedera-se então a um inquérito em Marengo. Os investigadores tinham sabido que eu "dera provas de insensibilidade" no dia do enterro. "Veja se compreende, disse o advogado, custa-me um bocado perguntar-lhe isto. Mas é muito importante. E será um grande argumento para a acusação, se eu não conseguir dar resposta". Queria que eu o ajudasse. Perguntou-me se eu, nesse dia, tinha tido pena da minha mãe. Esta pergunta muito me espantou e parecia-me que não era capaz de a fazer a alguém. Não obstante, respondi que perdera um pouco o hábito de me interrogar a mim mesmo e que era difícil dar-lhe uma resposta. É claro que gostava da minha mãe, mas isso não queria dizer nada. Todos os seres saudáveis tinham, em certas ocasiões, desejado mais ou menos, a morte das pessoas que amavam. Aqui, o advogado cortou-me a palavra e mostrou-se muito agitado. Obrigou-me a prometer que não diria isto na audiência, nem ao juiz de instrução. Expliquei-lhe, no entanto, que a minha natureza era feita de tal modo que as minhas necessidades físicas perturbavam frequentemente os meus sentimentos. No dia do enterro, estava muito cansado e com muito sono. De forma que não dei lá muito bem pelo que se passou. O que podia afirmar, com toda a certeza, era que preferia que a mãe não tivesse morrido. Mas o advogado não ficou contente. Disse: "Isso não chega".

 Pôs-se a pensar. Perguntou-me se se poderia dizer que, nesse dia, eu reprimira os meus sentimentos naturais. Respondi: "Não, porque não é verdade". Olhou-me de um modo estranho, como se eu lhe inspirasse uma certa repulsa. Disse-me quase maldosamente que, de qualquer forma, o diretor e o pessoal do asilo seriam ouvidos como testemunhas, o que "seria sem dúvida muito mau para mim". Fiz-lhe notar que essa história não tinha nenhuma relação com o meu caso, mas ele respondeu-me que se via bem que eu não conhecia a justiça de perto.

 Foi-se embora com um ar zangado. Teria querido retê-lo, explicar-lhe que desejava a simpatia dele, não para ser mais bem defendido, mas, se assim me posso exprimir, naturalmente. Percebia sobretudo que o punha pouco à vontade. Não me compreendia e desconfiava um bocadinho de mim. Desejava afirmar-lhe que era como toda a gente, absolutamente como toda a gente. Mas tudo isso, no fundo, não era de grande utilidade e, por preguiça, renunciei a esta intenção. 

 Pouco tempo depois, fui outra vez levado ao juiz de instrução. Eram duas horas da tarde e, desta vez, o escritório estava cheio de luz, uma luz que a cortina da janela mal conseguia abrandar. O calor apertava. Mandou-me sentar e, muito amavelmente, declarou que o meu advogado, "devido a um contratempo", não pudera comparecer. Mas eu tinha todo o direito de não lhe responder às perguntas, e de esperar até que o advogado pudesse estar presente. Disse que podia perfeitamente responder sozinho. Apoiou um dedo numa campainha, debaixo da mesa. Um escrivão ainda novo veio colocar-se atrás das minhas costas. 

 Instalamo-nos os dois confortavelmente nas nossas poltronas. O interrogatório principiou. Disse-me antes de mais nada, que me pintavam como tendo um carácter taciturno e fechado, e quis saber a minha opinião a este respeito. Respondi: " que, como nunca tenho quase nada a dizer, prefiro calar-me". Sorriu como da primeira vez, concordou que era uma razão de peso e acrescentou: "Aliás, não tem importância nenhuma". Calou-se, olhou para mim, e levantou-se bruscamente na cadeira, dizendo: "O que me interessa, é o senhor!" Não compreendi o que ele queria dizer e não respondi. "Há coisas, acrescentou ainda, que me escapam, no seu gesto. Estou certo de que me ajudará a compreender melhor". Repliquei que era muito simples. Pediu-me para lhe contar o que fizera nesse dia. Voltei a descrever o que já lhe tinha contado: Raimundo, a praia, o banho, a disputa, outra vez a praia, a pequena nascente, o sol e os cinco disparos do revólver. 

 A cada frase, ele dizia: "Bem, bem". Quando cheguei ao corpo estendido na areia, aprovou-me, dizendo: "Bom." Quanto a mim, estava cansado de repetir sempre a mesma história e tinha a impressão de nunca ter falado tanto. Depois de um silêncio, o juiz levantou-se e disse que me queria ajudar, que o meu caso o interessava e, com a ajuda de Deus, faria qualquer coisa por mim. Mas antes, queria dirigir-me ainda algumas perguntas. Sem transição, perguntou se eu gostava da minha mãe. Redargui: "Sim, como toda a gente". E o escrivão que, até aqui escrevia em ritmo normal à máquina, enganou-se e teve que voltar atrás. Ainda sem lógica aparente, o juiz perguntou-me então se disparara os cinco tiros a seguir. Pensei um bocado e especifiquei que disparara primeiro um só tiro e, alguns segundos depois, os outros quatro. "Porque fez uma pausa entre o primeiro e o segundo tiro?", disse ele. Mais uma vez, voltei a ver a praia avermelhada e senti na testa a ardência do sol. Mas desta vez, não respondi nada. Durante todo o silêncio que se seguiu, o juiz pareceu agitado. Sentou-se, mexeu nos cabelos, pôs os cotovelos em cima da secretária e debruçou-se um pouco para mim com um ar estranho: "Porque foi o senhor, porque foi o senhor disparar contra um corpo caído?" Também não soube responder. O juiz passou a mão pela testa e repetiu a pergunta, com a voz um pouco alterada: "Porquê? É preciso que me diga. Porquê?" Eu continuava calado. 

 Bruscamente levantou-se, dirigiu-se com grandes passadas para a extremidade da secretária e abriu uma gaveta. Tirou um crucifixo de prata e, agitou-o no ar, voltando para o pé de mim. E, com uma voz completamente diferente, quase trémula, gritou: "Conhece-O, conhece-O?" Respondi: "Sim, é claro que conheço". Disse-me então muito depressa e de um modo apaixonado que acreditava em Deus, que nenhum homem era suficientemente culpado para que Deus não lhe perdoasse, mas que para isso era necessário que o homem, pelo seu arrependimento, se transformasse como que numa criança, cuja alma está vazia e pronta a acolher tudo. Todo o seu corpo se debruçava sobre a mesa. Agitava o crucifixo diante dos meus olhos. Para dizer a verdade, eu mal seguira o raciocínio dele, primeiro porque tinha calor e porque voavam no escritório grandes moscas que me vinham pousar na cara, e em seguida, porque me assustava um bocadinho. 

 Reconhecia ao mesmo tempo que esta sensação era ridícula, pois afinal o criminoso era eu. Continuou, no entanto. Compreendi pouco a pouco que, na opinião dele, havia apenas um ponto obscuro na minha confissão, o facto de ter esperado entre o primeiro e o segundo disparo. Quanto ao resto estava bem, mas isso é que ele não conseguia compreender. 

 Ia dizer-lhe que não valia a pena obstinar-se: este último ponto não tinha tanta importância como isso. Mas ele interrompeu-me e exortou-me pela última vez, olhando-me de alto e perguntando-me se eu acreditava em Deus. Respondi que não. 

 Sentou-se indignadamente. Disse-me que era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo os que não o queriam ver. A convicção dele era essa e, se um dia duvidasse, a vida deixaria de ter sentido. "Quer o senhor, exclamou, que a minha vida deixe de ter sentido?" Eu achava que não tinha nada com isso, e disse-lho. Mas, através da mesa, estendeu a imagem de Cristo e exclamou: "Eu, sou cristão. Peço perdão pelos teus pecados a Este. 

 Como podes não acreditar que Ele sofreu por ti?"

 Reparei que me estava a tratar por tu... mas estava farto. O calor apertava cada vez mais. Como sempre que me quero desembaraçar de alguém que já nem estou a ouvir, fiz menção de aprovar. Com grande surpresa minha, tomou um ar de triunfo: "Vês, vês!" dizia ele. Não é verdade que crês e que te vais confiar a Ele?" É claro que, uma vez mais, disse que não. Voltou a deixar-se cair na cadeira. 

 Tinha um ar muito cansado. Deixou-se ficar calado durante alguns momentos, enquanto a máquina de escrever, que não deixara de seguir o diálogo, prolongava ainda as últimas frases. Em seguida, olhou-me atentamente e com um bocadinho de tristeza: Murmurou: "Nunca tinha visto uma alma tão empedernida como a sua. Os criminosos que aqui vieram, choraram sempre diante desta imagem da dor". Ia responder que isso sucedia porque, justamente eram criminosos. Mas pensei que, afinal, também eu era como eles. Não me conseguia habituar a esta ideia... O juiz levantou-se então, como se quisesse significar que o interrogatório acabara. Perguntou-me apenas, com o mesmo ar um pouco fatigado, se estava arrependido do - meu gesto. Meditei e disse que, mais do que verdadeiro arrependimento, experimentava um certo aborrecimento. Tive a impressão de que não me compreendia. Mas nesse dia, as coisas não foram mais longe. 

 Mais tarde, voltei a estar várias vezes com o juiz. Mas agora, sempre acompanhado do advogado. Limitavam-se a pedir-me para pormenorizar certos pontos das minhas anteriores declarações. Ou então, o juiz discutia as acusações com o advogado. Mas nesse momento não se ocupavam de mim. Pouco a pouco, em todos os casos, o tom do interrogatório foi-se modificando. Parecia que o juiz já se não interessava por mim e que, de algum modo, classificara já o meu caso. Não voltou a falar-me de Deus e não voltei a vê-lo com a excitação do primeiro dia. O resultado é que as nossas conversas se tornaram mais cordiais. Algumas perguntas, umas frases trocadas com o meu advogado e pronto, o interrogatório acabara. O caso seguia o seu curso, na expressão do juiz. Por vezes, quando a conversa era de ordem geral, eu também entrava. Começava a poder respirar. Ninguém era mau comigo, nesses momentos. Tudo era tão natural, tão bem regulado e tão sobriamente representado, que tinha a impressão ridícula de "fazer parte da família". E ao fim dos onze meses que durou a instrução do processo, posso dizer que quase me espantava de alguma vez ter gostado tanto de uma coisa, como desses raros instantes em que o juiz me levava à porta do gabinete, batendo-me no ombro e dizendo com um ar cordial: "Por hoje acabou, sr. Anti-Cristo". Entregavam-me então outra vez nas mãos dos polícias.




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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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1.O Estrangeiro: Hoje, minha mãe morreu - Albert Camus



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