Eduardo Galeano
36. O Livro dos Abraços
A acrobata
Luz Marina Acosta era menininha quando descobriu o circo Firuliche. O circo Firuliche emergiu certa noite, mágico barco de luzes, das profundidades do Lago da Nicarágua. Eram clarins guerreiros as cometas de papelão dos palhaços e bandeiras altas os farrapos que ondulavam anunciando a maior festa do mundo. A lona estava toda cheia de remendos, e também os leões, aposentados leões; mas a lona era um castelo e os leões, os reis da selva. E uma senhora rechonchuda, brilhante de lantejoulas, era a rainha dos céus, balançando nos trapézios a um metro do chão.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano
36. O Livro dos Abraços
A acrobata
Luz Marina Acosta era menininha quando descobriu o circo Firuliche. O circo Firuliche emergiu certa noite, mágico barco de luzes, das profundidades do Lago da Nicarágua. Eram clarins guerreiros as cometas de papelão dos palhaços e bandeiras altas os farrapos que ondulavam anunciando a maior festa do mundo. A lona estava toda cheia de remendos, e também os leões, aposentados leões; mas a lona era um castelo e os leões, os reis da selva. E uma senhora rechonchuda, brilhante de lantejoulas, era a rainha dos céus, balançando nos trapézios a um metro do chão.
Então, Luz Marina decidiu tornar-se acrobata. E saltou de verdade, lá do alto, e em sua primeira acrobacia, aos seis anos de idade, quebrou as costelas.
E assim foi, depois, a vida. Na guerra, longa guerra contra a ditadura de Somoza, e nos amores: sempre voando, sempre quebrando as costelas.
Porque quem entra no circo Firuliche não sai jamais.
As flores
O escritor brasileiro Nelson Rodrigues estava condenado à solidão. Tinha cara de sapo e língua de serpente, e a seu prestígio de feio e sua fama de venenoso somava-se a notoriedade de seu contagioso azar: as pessoas ao seu redor morriam de tiro, miséria ou infelicidade fatal.
As flores
O escritor brasileiro Nelson Rodrigues estava condenado à solidão. Tinha cara de sapo e língua de serpente, e a seu prestígio de feio e sua fama de venenoso somava-se a notoriedade de seu contagioso azar: as pessoas ao seu redor morriam de tiro, miséria ou infelicidade fatal.
Certo dia, Nelson conheceu Eleonora. Naquele dia, dia do descobrimento, quando pela primeira vez viu aquela mulher, uma violenta alegria atropelou-o e deixou-o abobado. Então, quis dizer alguma de suas frases brilhantes, mas as pernas bambearam e a língua se enrolou e não conseguiu outra coisa a não ser gaguejar ruidinhos.
Bombardeou-a de flores. Mandava flores para o apartamento dela, no alto de um edifício do Rio de Janeiro. A cada dia mandava um grande ramo de flores, flores sempre diferentes, sem repetir jamais as cores ou aromas, e ficava esperando lá embaixo: lá de baixo via a varanda de Eleonora, e da varanda ela atirava as flores na rua, todos os dias, e os automóveis as esmagavam.
E foi assim durante cinquenta dias. Até que um dia, um meio-dia, as flores que Nelson enviou não caíram na rua e não foram pisadas pelos automóveis.
Naquele meio-dia, ele subiu até o último andar, apertou a campainha e a porta se abriu.
As formigas
Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta.
Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram muito daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não vissem, mas que deixou-a paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.
A avó
A avó de Bertha Jensen morreu amaldiçoando. Ela tinha vivido a vida inteira na ponta dos pés, como se pedisse perdão por incomodar, consagrada ao serviço do marido e à sua prole de cinco filhos, esposa exemplar, mãe abnegada, silencioso exemplo de virtude: jamais uma queixa saíra de seus lábios, e muito menos um palavrão.
Quando a doença derrubou-a, chamou o marido, sentou-o na frente da cama, e começou. Ninguém suspeitava que ela conhecesse aquele vocabulário de marinheiro bêbado. A agonia foi longa. Durante mais de um mês, a avó, da cama, vomitou um incessante jorro de insultos e blasfêmias baixíssimas. Até a sua voz mudou. Ela, que nunca tinha fumado nem bebido outra coisa além de água ou leite, xingava com vozinha rouca. E assim, xingando, morreu; e foi um alívio geral na família e na vizinhança.
Morreu onde havia nascido, na aldeia de Dragor, na frente do mar, na Dinamarca. Chamava-se Inge. Tinha uma linda cara de cigana. Gostava de vestir-se de vermelho e de navegar ao sol.
O avô
Um homem chamado Amando, nascido numa aldeia que se chama Salitre, no litoral do Equador, me deu de presente a história de seu avô.
Os tataranetos se revezavam no plantão. Na porta, tinham posto corrente e cadeado. Dom Segundo Hidalgo dizia que por isso padecia os ataques:
— Tenho reumatismo de gato castrado — queixava-se.
Aos cem anos completos, Dom Segundo aproveitava qualquer descuido, montava em pelo e escapava para buscar namoradas por aí. Ninguém entendia tanto de mulheres e de cavalos. Ele tinha povoado esta aldeia de Salitre, e a comarca, e a região, desde que foi pai pela primeira vez, aos treze anos.
O avô confessava trezentas mulheres, embora todo mundo soubesse que eram mais de quatrocentas. Mas uma, uma que se chamava Blanquita, tinha sido a mais mulher de todas.
Fazia trinta anos que Blanquita tinha morrido, e ele ainda a convocava na hora do crepúsculo. Amando, o neto, o que me deu esta história de presente, escondia-se e espiava a cerimônia secreta. Na varanda, iluminado pela última luz, o avô abria uma caixinha de pó-de-arroz de outros tempos, uma caixa redonda, daquelas com anjinhos rosados na tampa, e levava o algodão ao nariz:
— Acho que te conheço — murmurava, aspirando o leve perfume daquele pó-de arroz —. Acho que te conheço.
E balançava-se muito suavemente, murmurando na cadeira de balanço.
No pôr-do-sol de cada dia, o avô prestava sua homenagem à mais amada. E uma vez por semana, a traía. Era infiel com uma gorda que cozinhava receitas complicadíssimas na televisão. O avô, dono do primeiro e único televisor na aldeia de Salitre, não perdia nunca esse programa. Tomava banho e fazia a barba e vestia-se de branco, vestia-se como para uma festa, o melhor chapéu, as botinas de verniz, o colete de botões dourados, a gravata de seda, e sentava-se grudado na tela. Enquanto a gorda batia seus cremes e erguia a colher, explicando os segredos de algum sabor único, exclusivo, incomparável, o avô piscava o olho e atirava beijos furtivos. A caderneta de poupança aparecia no bolso do paletó. O avô punha a caderneta assim, insinuada, como que por distração, para que a gorda visse que ele não era um pé-rapado qualquer.
As formigas
Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta.
Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram muito daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não vissem, mas que deixou-a paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.
A avó
A avó de Bertha Jensen morreu amaldiçoando. Ela tinha vivido a vida inteira na ponta dos pés, como se pedisse perdão por incomodar, consagrada ao serviço do marido e à sua prole de cinco filhos, esposa exemplar, mãe abnegada, silencioso exemplo de virtude: jamais uma queixa saíra de seus lábios, e muito menos um palavrão.
Quando a doença derrubou-a, chamou o marido, sentou-o na frente da cama, e começou. Ninguém suspeitava que ela conhecesse aquele vocabulário de marinheiro bêbado. A agonia foi longa. Durante mais de um mês, a avó, da cama, vomitou um incessante jorro de insultos e blasfêmias baixíssimas. Até a sua voz mudou. Ela, que nunca tinha fumado nem bebido outra coisa além de água ou leite, xingava com vozinha rouca. E assim, xingando, morreu; e foi um alívio geral na família e na vizinhança.
Morreu onde havia nascido, na aldeia de Dragor, na frente do mar, na Dinamarca. Chamava-se Inge. Tinha uma linda cara de cigana. Gostava de vestir-se de vermelho e de navegar ao sol.
O avô
Um homem chamado Amando, nascido numa aldeia que se chama Salitre, no litoral do Equador, me deu de presente a história de seu avô.
Os tataranetos se revezavam no plantão. Na porta, tinham posto corrente e cadeado. Dom Segundo Hidalgo dizia que por isso padecia os ataques:
— Tenho reumatismo de gato castrado — queixava-se.
Aos cem anos completos, Dom Segundo aproveitava qualquer descuido, montava em pelo e escapava para buscar namoradas por aí. Ninguém entendia tanto de mulheres e de cavalos. Ele tinha povoado esta aldeia de Salitre, e a comarca, e a região, desde que foi pai pela primeira vez, aos treze anos.
O avô confessava trezentas mulheres, embora todo mundo soubesse que eram mais de quatrocentas. Mas uma, uma que se chamava Blanquita, tinha sido a mais mulher de todas.
Fazia trinta anos que Blanquita tinha morrido, e ele ainda a convocava na hora do crepúsculo. Amando, o neto, o que me deu esta história de presente, escondia-se e espiava a cerimônia secreta. Na varanda, iluminado pela última luz, o avô abria uma caixinha de pó-de-arroz de outros tempos, uma caixa redonda, daquelas com anjinhos rosados na tampa, e levava o algodão ao nariz:
— Acho que te conheço — murmurava, aspirando o leve perfume daquele pó-de arroz —. Acho que te conheço.
E balançava-se muito suavemente, murmurando na cadeira de balanço.
No pôr-do-sol de cada dia, o avô prestava sua homenagem à mais amada. E uma vez por semana, a traía. Era infiel com uma gorda que cozinhava receitas complicadíssimas na televisão. O avô, dono do primeiro e único televisor na aldeia de Salitre, não perdia nunca esse programa. Tomava banho e fazia a barba e vestia-se de branco, vestia-se como para uma festa, o melhor chapéu, as botinas de verniz, o colete de botões dourados, a gravata de seda, e sentava-se grudado na tela. Enquanto a gorda batia seus cremes e erguia a colher, explicando os segredos de algum sabor único, exclusivo, incomparável, o avô piscava o olho e atirava beijos furtivos. A caderneta de poupança aparecia no bolso do paletó. O avô punha a caderneta assim, insinuada, como que por distração, para que a gorda visse que ele não era um pé-rapado qualquer.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
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1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano
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