Simone de Beauvoir
13. Fatos e Mitos
: quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais
NÃO CABE INSISTIR aqui nas diferenças teóricas que separam Adler de Freud e nas possibilidades de uma reconciliação: nem a explicação pelo móvel, nem a explicação pelo motivo, são suficientes. Todo móvel põe um motivo, mas o motivo nunca é apreendido senão através de um móvel; uma síntese do adlerismo e do freudismo parece pois realizável. Na realidade, fazendo intervir noções de objetivo e de finalidade, Adler conserva integralmente a ideia de uma casualidade psíquica; ele está um pouco em relação a Freud como o energetismo ao mecanicismo: quer se trate de choque ou de força de atração, o físico admite sempre o determinismo. É o postulado comum a todos os psicanalistas. A história humana explica-se, segundo eles, por um jogo de elementos determinados. Todos atribuem à mulher o mesmo destino. O drama desta reduz-se ao conflito entre suas tendências "virilóides" e "femininas"; as primeiras realizam-se no sistema clitoridiano, as segundas no erotismo vaginal; infantilmente, ela se identifica ao pai, depois experimenta um sentimento de inferioridade em relação ao homem e é colocada na alternativa de manter sua autonomia, de se virilizar — o que sobre o fundo de um complexo de inferioridade provoca uma tensão suscetível de acarretar neuroses — ou de encontrar, na submissão amorosa, uma feliz realização de si mesma, solução que lhe é facilitada pelo amor que devota ao pai soberano. É ele que ela busca no amante ou no marido, e o amor sexual acompanha-se nela do desejo de ser dominada. Será recompensada pela maternidade que lhe restitui uma espécie de autonomia. Esse drama apresenta-se dotado de um dinamismo próprio; procura desenrolar-se através de todos os acidentes que o desfiguram e cada mulher aceita-o passivamente.
Não é difícil aos psicanalistas encontrar confirmações empíricas para suas teorias. Sabe-se que complicando muito sutilmente o sistema de Ptolomeu pôde-se, durante muito tempo, sustentar que explicava exatamente a posição dos planetas; superpondo ao Édipo um Édipo invertido, mostrando em toda angústia um desejo, conseguir-se-á integrar no freudismo os próprios fatos que o contradizem. Só se pode apreender uma forma a partir de um fundo e a maneira pela qual a forma é apreendida recorta por trás dela esse fundo em traços positivos; assim, se nos obstinarmos em descrever uma história singular dentro de uma perspectiva freudiana, encontramos por trás o esquema freudiano; só que quando uma doutrina obriga a multiplicar as explicações secundárias de uma maneira indefinida e arbitrária, quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais, é preferível abandonar os antigos quadros. Por isso mesmo, hoje todos os psicanalistas esforçam-se por abrandar, à sua maneira, os conceitos freudianos; tentam conciliações. Um psicanalista contemporâneo escreve, por exemplo: "Desde que há complexo, há, por definição, vários componentes. . . o complexo consiste no agrupamento desses elementos díspares e não na representação de um deles pelos outros" (Baudouin, L'Âme enjantine et la Psychanalyse). Mas a ideia de um simples agrupamento de elementos é inaceitável; a vida psíquica não é um mosaico; toda ela existe em cada um de seus momentos e cumpre respeitar essa unidade. Isso só é possível reencontrando, através dos fatos díspares, a intencionalidade original da existência. Em não remontando a essa fonte, o homem se apresenta como um campo de batalha entre impulsos e proibições igualmente destituídos de sentido e contingentes.
Há, em todos os psicanalistas, uma recusa sistemática da ideia de escolha e da noção de valor que lhe é correlativa; é o que constitui a fraqueza intrínseca do sistema. Tendo desligado impulsos e proibições da escolha existencial, Freud malogra em explicar-lhes a origem: toma-os por todos. Tenta substituir a noção de valor pela de autoridade; mas, em Moisés e seu Povo, ele convém em que não há meio de explicar essa autoridade. O incesto, por exemplo, é proibido porque o pai o proibiu: mas por que essa proibição? Mistério. O superego interioriza ordens e proibições emanando de uma tirania arbitrária; as tendências instintivas existem não se sabe por quê; as duas realidades são heterogêneas porque se considerou a moral alheia à sexualidade; a unidade humana apresenta-se quebrada, não há passagem do indivíduo à sociedade; Freud é obrigado a inventar estranhos romances para reuni-los (Totem e Tabu). Adler percebeu muito bem que o complexo de castração só se poderia explicar num contexto social; abordou o problema da valorização, mas não remontou à fonte ontológica dos valores reconhecidos pela sociedade e não compreendeu que, na sexualidade propriamente dita, se empenham valores, o que o levou a menosprezar-lhes a importância.
Seguramente a sexualidade desempenha na vida humana um papel considerável: pode-se dizer que ela a penetra por inteira. A fisiologia já nos mostrou que a vida dos testículos e a dos ovários confundem-se com a do soma. O existente é um corpo sexuado; nas suas relações com os outros existentes, que são também corpos sexuados, a sexualidade está, portanto, sempre empenhada; mas, se corpo e sexualidade são expressões concretas da existência, é também a partir desta que se pode descobrir-lhes as significações: sem essa perspectiva, a psicanálise toma, por verdadeiros, fatos inexplicados. Dizem-nos, por exemplo, que a menina tem vergonha de urinar de cócoras com as nádegas à mostra: mas que é a vergonha? Assim também, antes de indagar se o macho se orgulha de ter um pênis ou se seu orgulho se exprime pelo pênis, cumpre saber o que é o orgulho e como a pretensão do sujeito pode encarnar-se em um objeto. Não se deve encarar a sexualidade como um dado irredutível; há, no existente, uma "procura do ser" mais original; a sexualidade é apenas um de seus aspectos. É o que mostra Sartre em L'Être et la Néant; é o que diz também Bachelard em suas obras sobre a Terra, o Ar, a Água: os psicanalistas consideram que a verdade primeira do homem é uma relação com seu próprio corpo e com o corpo de seus semelhantes no seio da sociedade. Mas o homem vota um interesse primordial à substância do mundo natural que o cerca e que procura descobrir no trabalho, no jogo, em todas as experiências da "imaginação dinâmica". O homem pretende alcançar concretamente a existência através do mundo inteiro, apreendido de todas as maneiras possíveis. Amassar o barro, cavar um buraco são atividades tão originais como o amplexo, o coito: enganam-se os que vêem nelas símbolos sexuais tão-somente; o buraco, o visgo, o entalhe, a dureza, a integridade são realidades primeiras; o interesse que o homem lhes vota não é ditado pela libido, mas esta é que é colorida pela maneira por que elas se lhes descobriram. Não é porque simboliza a virgindade feminina que a integridade fascina o homem: é seu amor à integridade que torna preciosa a virgindade. O trabalho, a guerra, o jogo, a arte definem maneiras de ser no mundo e não se deixam reduzir a nenhuma outra; elas descobrem qualidades que interferem com as que revela a sexualidade; é, ao mesmo tempo através delas e através das experiências eróticas, que o indivíduo se escolhe. Mas só um ponto de vista ontológico permite restituir a unidade dessa escolha.
É essa noção de escolha que o psicanalista rechaça mais violentamente em nome do determinismo e do "inconsciente coletivo"; este forneceria ao homem imagens feitas e um simbolismo universal; ele é que explicaria as analogias dos sonhos, dos atos falhos, dos delírios, das alegorias e dos destinos humanos; falar de liberdade seria recusar a possibilidade de explicar tão perturbadoras concordâncias. Mas a ideia de liberdade não é incompatível com a existência de certas constantes. Se o método psicanalítico é muitas vezes fecundo, apesar dos erros da teoria, é porque há em toda história singular dados cuja generalidade ninguém nega: as situações e as condutas repetem-se; é no seio da generalidade e da repetição que surge o momento da decisão. "A anatomia é o destino", dizia Freud; essa expressão encontra eco em Merleau-Ponty: "O corpo é a generalidade". A existência é una através da separação dos existentes; ela manifesta-se em organismos análogos; haverá, portanto, constantes na ligação do ontológico ao sexual. Em dada época, as técnicas, a estrutura econômica e social de uma coletividade descobrem, a todos os seus membros, um mundo idêntico; haverá também uma relação constante da sexualidade com as formas sociais; indivíduos análogos, colocados em condições análogas, perceberão no dado significações análogas; essa analogia não cria uma universalidade rigorosa, mas permite encontrar tipos gerais nas histórias individuais. O símbolo não se nos apresenta mais como uma alegoria elaborada por um inconsciente misterioso: é a apreensão de uma significação através de um analogon do objeto significante. Do fato da identidade da situação existencial através de todos os existentes e da identidade da facticidade que lhes cumpre enfrentar, as significações se revelam, da mesma maneira, a muitos indivíduos. O simbolismo não caiu do céu nem jorrou das profundezas subterrâneas: foi elaborado, como uma linguagem, pela realidade humana que é mitsein ao mesmo tempo que separação, e isso explica que a invenção singular nele tenha seu lugar. Praticamente o método psicanalítico é forçado a admiti-lo, autorize-o ou não a doutrina.
Essa perspectiva permite-nos, por exemplo, compreender o valor geralmente dado ao pênis (1). É impossível explicá-lo sem partir de um fato existencial: a tendência do sujeito para a alienação. A angústia de sua liberdade conduz o sujeito a procurar-se nas coisas, o que é uma maneira de fugir de si mesmo; é uma tendência tão fundamental que logo após a desmama, quando se acha separado do Todo, a criança esforça-se por apreender nos espelhos, no olhar dos pais, sua existência alienada. Os primitivos alienam-se no mana, no totem; os civilizados em sua alma individual, em seu eu, em seu nome, em sua propriedade, em sua obra: é a primeira tentação da inautenticidade. O pênis é singularmente indicado a desempenhar, para o menino, o papel de "duplo": é para ele um objeto estranho e, ao mesmo tempo, ele próprio; é um brinquedo, uma boneca e é sua própria carne; pais e amas tratam-no como um pequeno personagem. Concebe-se então que se torne para a criança "um alter ego em geral mais malandro, mais inteligente e mais hábil do que o indivíduo" (Alice Balint, La Vie intime de l'enfant ); do fato de que a função urinaria e mais tarde a ereção se encontram a meio caminho entre os processos voluntários e os processos espontâneos; do fato de que é uma fonte caprichosa, quase alheia de um prazer subjetivamente sentido, o pênis é posto pelo sujeito como si mesmo e outro que não si mesmo; a transcendência específica encarna-se nele de maneira apreensível e ele é fonte de orgulho; é porque o falo é separado que o homem pode integrar na sua individualidade a vida que o ultrapassa. Concebe-se então que o comprimento do pênis, a força do jato de urina, da ereção, da ejaculação tornem-se, para o sujeito, a medida de seu próprio valor (2). Por isso é constante que o falo encarna carnalmente a transcendência. Como é igualmente constante que a criança sinta-se transcendida, isto é, frustrada de sua transcendência pelo pai, encontrar-se-á portanto a ideia freudiana de "complexo de castração". Privada desse alter ego, a menina não se aliena numa coisa apreensível, não se recupera; em conseqüência, ela é levada a fazer-se por inteira objeto, a pôr-se como o Outro; a questão de saber se se comparou ou não aos meninos é secundária; o importante é que, mesmo não conhecida por ela, a ausência do pênis a impede de se tornar presente a si própria enquanto sexo; disso resultarão muitas conseqüências. Mas essas constantes que assinalamos não definem entretanto um destino: o falo assume tão grande valor porque simboliza uma soberania que se realiza em outros campos. Se a mulher conseguisse afirmar-se como sujeito, inventaria equivalentes para o falo: a posse de uma boneca, em quem se encarna a promessa do filho, pode tornar-se mais preciosa do que a do pênis (3). Há sociedades de filiação uterina em que as mulheres detêm as máscaras em que a coletividade se aliena. O pênis perde então muito de seu prestígio. É só no seio da situação apreendida em sua totalidade que o privilégio anatômico cria um verdadeiro privilégio humano. A psicanálise só conseguiria encontrar sua verdade no contexto histórico.
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O SEGUND O SEXO
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 12. Fatos e Mitos: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea
O Segundo Sexo - 14. Fatos e Mitos: o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai
O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?
13. Fatos e Mitos
Primeira Parte
Destino
CAPITULO II
O PONTO DE VISTA PSICANALÍTICO
O PONTO DE VISTA PSICANALÍTICO
: quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais
Não é difícil aos psicanalistas encontrar confirmações empíricas para suas teorias. Sabe-se que complicando muito sutilmente o sistema de Ptolomeu pôde-se, durante muito tempo, sustentar que explicava exatamente a posição dos planetas; superpondo ao Édipo um Édipo invertido, mostrando em toda angústia um desejo, conseguir-se-á integrar no freudismo os próprios fatos que o contradizem. Só se pode apreender uma forma a partir de um fundo e a maneira pela qual a forma é apreendida recorta por trás dela esse fundo em traços positivos; assim, se nos obstinarmos em descrever uma história singular dentro de uma perspectiva freudiana, encontramos por trás o esquema freudiano; só que quando uma doutrina obriga a multiplicar as explicações secundárias de uma maneira indefinida e arbitrária, quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais, é preferível abandonar os antigos quadros. Por isso mesmo, hoje todos os psicanalistas esforçam-se por abrandar, à sua maneira, os conceitos freudianos; tentam conciliações. Um psicanalista contemporâneo escreve, por exemplo: "Desde que há complexo, há, por definição, vários componentes. . . o complexo consiste no agrupamento desses elementos díspares e não na representação de um deles pelos outros" (Baudouin, L'Âme enjantine et la Psychanalyse). Mas a ideia de um simples agrupamento de elementos é inaceitável; a vida psíquica não é um mosaico; toda ela existe em cada um de seus momentos e cumpre respeitar essa unidade. Isso só é possível reencontrando, através dos fatos díspares, a intencionalidade original da existência. Em não remontando a essa fonte, o homem se apresenta como um campo de batalha entre impulsos e proibições igualmente destituídos de sentido e contingentes.
Há, em todos os psicanalistas, uma recusa sistemática da ideia de escolha e da noção de valor que lhe é correlativa; é o que constitui a fraqueza intrínseca do sistema. Tendo desligado impulsos e proibições da escolha existencial, Freud malogra em explicar-lhes a origem: toma-os por todos. Tenta substituir a noção de valor pela de autoridade; mas, em Moisés e seu Povo, ele convém em que não há meio de explicar essa autoridade. O incesto, por exemplo, é proibido porque o pai o proibiu: mas por que essa proibição? Mistério. O superego interioriza ordens e proibições emanando de uma tirania arbitrária; as tendências instintivas existem não se sabe por quê; as duas realidades são heterogêneas porque se considerou a moral alheia à sexualidade; a unidade humana apresenta-se quebrada, não há passagem do indivíduo à sociedade; Freud é obrigado a inventar estranhos romances para reuni-los (Totem e Tabu). Adler percebeu muito bem que o complexo de castração só se poderia explicar num contexto social; abordou o problema da valorização, mas não remontou à fonte ontológica dos valores reconhecidos pela sociedade e não compreendeu que, na sexualidade propriamente dita, se empenham valores, o que o levou a menosprezar-lhes a importância.
Seguramente a sexualidade desempenha na vida humana um papel considerável: pode-se dizer que ela a penetra por inteira. A fisiologia já nos mostrou que a vida dos testículos e a dos ovários confundem-se com a do soma. O existente é um corpo sexuado; nas suas relações com os outros existentes, que são também corpos sexuados, a sexualidade está, portanto, sempre empenhada; mas, se corpo e sexualidade são expressões concretas da existência, é também a partir desta que se pode descobrir-lhes as significações: sem essa perspectiva, a psicanálise toma, por verdadeiros, fatos inexplicados. Dizem-nos, por exemplo, que a menina tem vergonha de urinar de cócoras com as nádegas à mostra: mas que é a vergonha? Assim também, antes de indagar se o macho se orgulha de ter um pênis ou se seu orgulho se exprime pelo pênis, cumpre saber o que é o orgulho e como a pretensão do sujeito pode encarnar-se em um objeto. Não se deve encarar a sexualidade como um dado irredutível; há, no existente, uma "procura do ser" mais original; a sexualidade é apenas um de seus aspectos. É o que mostra Sartre em L'Être et la Néant; é o que diz também Bachelard em suas obras sobre a Terra, o Ar, a Água: os psicanalistas consideram que a verdade primeira do homem é uma relação com seu próprio corpo e com o corpo de seus semelhantes no seio da sociedade. Mas o homem vota um interesse primordial à substância do mundo natural que o cerca e que procura descobrir no trabalho, no jogo, em todas as experiências da "imaginação dinâmica". O homem pretende alcançar concretamente a existência através do mundo inteiro, apreendido de todas as maneiras possíveis. Amassar o barro, cavar um buraco são atividades tão originais como o amplexo, o coito: enganam-se os que vêem nelas símbolos sexuais tão-somente; o buraco, o visgo, o entalhe, a dureza, a integridade são realidades primeiras; o interesse que o homem lhes vota não é ditado pela libido, mas esta é que é colorida pela maneira por que elas se lhes descobriram. Não é porque simboliza a virgindade feminina que a integridade fascina o homem: é seu amor à integridade que torna preciosa a virgindade. O trabalho, a guerra, o jogo, a arte definem maneiras de ser no mundo e não se deixam reduzir a nenhuma outra; elas descobrem qualidades que interferem com as que revela a sexualidade; é, ao mesmo tempo através delas e através das experiências eróticas, que o indivíduo se escolhe. Mas só um ponto de vista ontológico permite restituir a unidade dessa escolha.
É essa noção de escolha que o psicanalista rechaça mais violentamente em nome do determinismo e do "inconsciente coletivo"; este forneceria ao homem imagens feitas e um simbolismo universal; ele é que explicaria as analogias dos sonhos, dos atos falhos, dos delírios, das alegorias e dos destinos humanos; falar de liberdade seria recusar a possibilidade de explicar tão perturbadoras concordâncias. Mas a ideia de liberdade não é incompatível com a existência de certas constantes. Se o método psicanalítico é muitas vezes fecundo, apesar dos erros da teoria, é porque há em toda história singular dados cuja generalidade ninguém nega: as situações e as condutas repetem-se; é no seio da generalidade e da repetição que surge o momento da decisão. "A anatomia é o destino", dizia Freud; essa expressão encontra eco em Merleau-Ponty: "O corpo é a generalidade". A existência é una através da separação dos existentes; ela manifesta-se em organismos análogos; haverá, portanto, constantes na ligação do ontológico ao sexual. Em dada época, as técnicas, a estrutura econômica e social de uma coletividade descobrem, a todos os seus membros, um mundo idêntico; haverá também uma relação constante da sexualidade com as formas sociais; indivíduos análogos, colocados em condições análogas, perceberão no dado significações análogas; essa analogia não cria uma universalidade rigorosa, mas permite encontrar tipos gerais nas histórias individuais. O símbolo não se nos apresenta mais como uma alegoria elaborada por um inconsciente misterioso: é a apreensão de uma significação através de um analogon do objeto significante. Do fato da identidade da situação existencial através de todos os existentes e da identidade da facticidade que lhes cumpre enfrentar, as significações se revelam, da mesma maneira, a muitos indivíduos. O simbolismo não caiu do céu nem jorrou das profundezas subterrâneas: foi elaborado, como uma linguagem, pela realidade humana que é mitsein ao mesmo tempo que separação, e isso explica que a invenção singular nele tenha seu lugar. Praticamente o método psicanalítico é forçado a admiti-lo, autorize-o ou não a doutrina.
Essa perspectiva permite-nos, por exemplo, compreender o valor geralmente dado ao pênis (1). É impossível explicá-lo sem partir de um fato existencial: a tendência do sujeito para a alienação. A angústia de sua liberdade conduz o sujeito a procurar-se nas coisas, o que é uma maneira de fugir de si mesmo; é uma tendência tão fundamental que logo após a desmama, quando se acha separado do Todo, a criança esforça-se por apreender nos espelhos, no olhar dos pais, sua existência alienada. Os primitivos alienam-se no mana, no totem; os civilizados em sua alma individual, em seu eu, em seu nome, em sua propriedade, em sua obra: é a primeira tentação da inautenticidade. O pênis é singularmente indicado a desempenhar, para o menino, o papel de "duplo": é para ele um objeto estranho e, ao mesmo tempo, ele próprio; é um brinquedo, uma boneca e é sua própria carne; pais e amas tratam-no como um pequeno personagem. Concebe-se então que se torne para a criança "um alter ego em geral mais malandro, mais inteligente e mais hábil do que o indivíduo" (Alice Balint, La Vie intime de l'enfant ); do fato de que a função urinaria e mais tarde a ereção se encontram a meio caminho entre os processos voluntários e os processos espontâneos; do fato de que é uma fonte caprichosa, quase alheia de um prazer subjetivamente sentido, o pênis é posto pelo sujeito como si mesmo e outro que não si mesmo; a transcendência específica encarna-se nele de maneira apreensível e ele é fonte de orgulho; é porque o falo é separado que o homem pode integrar na sua individualidade a vida que o ultrapassa. Concebe-se então que o comprimento do pênis, a força do jato de urina, da ereção, da ejaculação tornem-se, para o sujeito, a medida de seu próprio valor (2). Por isso é constante que o falo encarna carnalmente a transcendência. Como é igualmente constante que a criança sinta-se transcendida, isto é, frustrada de sua transcendência pelo pai, encontrar-se-á portanto a ideia freudiana de "complexo de castração". Privada desse alter ego, a menina não se aliena numa coisa apreensível, não se recupera; em conseqüência, ela é levada a fazer-se por inteira objeto, a pôr-se como o Outro; a questão de saber se se comparou ou não aos meninos é secundária; o importante é que, mesmo não conhecida por ela, a ausência do pênis a impede de se tornar presente a si própria enquanto sexo; disso resultarão muitas conseqüências. Mas essas constantes que assinalamos não definem entretanto um destino: o falo assume tão grande valor porque simboliza uma soberania que se realiza em outros campos. Se a mulher conseguisse afirmar-se como sujeito, inventaria equivalentes para o falo: a posse de uma boneca, em quem se encarna a promessa do filho, pode tornar-se mais preciosa do que a do pênis (3). Há sociedades de filiação uterina em que as mulheres detêm as máscaras em que a coletividade se aliena. O pênis perde então muito de seu prestígio. É só no seio da situação apreendida em sua totalidade que o privilégio anatômico cria um verdadeiro privilégio humano. A psicanálise só conseguiria encontrar sua verdade no contexto histórico.
(1) Voltaremos mais longamente ao assunto no capítulo I do volume II.
(2) Citaram-se o caso de meninos camponeses que se divertiam em concursos de excrementos: quem tivesse as nádegas mais volumosas e sólidas, gozava de um prestígio que nenhum outro êxito, nos jogos ou na luta, podia compensar. A matéria fecal desempenhava o mesmo papel que o pênis: havia igualmente alienação.
(3) Voltaremos a essas idéias na segunda parte; indicamo-las tão-somente a título metódico.
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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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O Segundo Sexo - 14. Fatos e Mitos: o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai
O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?
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