sexta-feira, 8 de março de 2019

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: XLVI - Perda da Auréola

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa



XLVI

PERDA DE AURÉOLA


— Olá! Você por aqui, meu caro! Num lugar mal frequentado! Você, o bebedor de quintessências! Você, o comedor de ambrosia! Palavra que me surpreende! 

— Meu caro, você conhece o meu pavor dos cavalos e dos veículos. Ainda há pouco, ao atravessar a avenida, muito apressado, escorreguei na lama, esse caos movediço onde a morte aparece de todos os lados. Minha auréola, num movimento brusco, saiu-me da cabeça e foi parar no barro do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Achei menos desagradável perder minhas insígnias do que quebrar os ossos. Afinal de contas, pensei, há males que são para bem. Posso, agora, andar incógnito, praticar atos baixos e cair na devassidão, como os simples mortais. E eis-me aqui, igual a você, como está vendo! 

— Mas deveria ao menos anunciar a perda da auréola, ou fazê-la reclamar pelo comissário. 

— Isso, não! Estou bem aqui. Só você me reconhece. Além disso, ando farto de dignidade. E depois acho que não faltará um poeta para apanhá-la e cobrir-se com ela. Fazer alguém feliz, que prazer! Sobretudo um feliz que me fará rir! Pense no X ou no Z! Hein? Vai ser um gozo!



XLVII

A SENHORITA BISTURI 


Ao chegar ao fim do arrabalde, sob os clarões do gás, senti um braço passar devagarinho debaixo do meu, e ouvi uma voz dizer-me ao ouvido: — O sr. é médico? Voltei-me e vi uma moça alta e robusta, olhos arregalados, semi uniformizada, cabelos flutuando ao vento com as fitas do boné. 

— Não, não sou. Deixe-me passar. 

— Oh! Sim! O sr. é médico! Vejo bem que o é. Venha comigo. Garanto que ficará contente. Venha! Que diabo! Mais tarde, depois do médico, irei vê-lo. 

E, sempre dependurada no meu braço e rebentando-se de rir: — Hahaha! O sr. é um médico muito tapeador. Conheço vários assim. Vamos! Eu sempre tive uma grande paixão pelo mistério, nunca perdendo a esperança de desvendá-lo. Deixei-me, por isso, arrastar por essa companheira, ou antes, por esse enigma inesperado
Vou omitir a descrição da choupana, que se poderia encontrar em uma porção de velhos poetas franceses bastante conhecidos. Somente dois ou três retratos de doutores célebres — detalhe que passou despercebido a Régnier (42) — havia pendurados nas paredes. 
Como fui bem tratado! Um grande fogo, vinho quente, charutos. Oferecendo-me essas coisas e acendendo também um charuto, dizia-me a engraçada criatura: — Aqui é como se estivesse em sua casa, meu amigo, esteja à vontade. Assim se lembrará do hospital e do bom tempo em que era moço. Onde arranjou esses cabelos brancos? O sr. não era assim, ainda não faz muito tempo, quando trabalhava como interno de L... Lembro-me de que era quem o assistia nas operações graves. Que homem para gostar de cortar, talhar, esgravatar! Era o sr. quem lhe entregava os instrumentos, os fios e as esponjas. E, feita a operação, com que orgulho ele dizia, puxando o relógio: “Cinco minutos, senhores!” Oh! Eu ando em toda parte. Conheço bem esses senhores! Instantes mais tarde, tratando-me por você, continuou com a mesma cantilena, dizendo-me: — Você é médico, não é, meu gatinho? 

Esse ininteligível refrão fez-me saltar: — Não! — gritei, indignado. 

— Cirurgião, então? 

— Não, e não! Só se fosse para cortar a sua cabeça! Com mil diabos! 

— Espere e verá, — disse ela. 

Tirou de um armário um maço de papéis, que não era outra coisa senão a coleção dos retratos dos médicos ilustres da época, litografados por Maurin, que durante muitos anos puderam ser vistos no cais Voltaire. 

— Pronto! Reconhece este? 

— Sim, é X. O nome está embaixo, aliás. Mas, eu o conheço pessoalmente. 

— Eu sabia! Veja! Aqui está o Z, aquele que dizia na aula, referindo-se a X: “Esse monstro traz no rosto o negrume que tem na alma!” Tudo isso porque o outro não era da opinião dele sobre um mesmo assunto! Como nos ríamos disso na Escola, naquele tempo! Lembra-se? Mais outro, veja: é o K, aquele que denunciava ao governo os revoltosos que tratava no hospital. Era uma época de levantes. Como se explica que um homem tão bonito fosse tão ruim? Veja agora o W , o famoso médico inglês; apanhei-o numa viagem a Paris. Tem um arzinho de mulher, não tem? 

E como eu tocasse num pacote amarrado, que estava em cima de uma mesa, ela me disse: — Espere um pouco, esses são os internos. Estes aqui são os externos. 

E arrumou em leque um maço de fotografias, representando caras muito moças. 

— Quando nos tornarmos a ver, você me dará o seu retrato, não é, querido? 

— Mas, — disse-lhe eu, seguindo por minha vez o curso de minha ideia fixa, — por que pensa que sou médico? 

— É porque você é tão gentil e tão bom para as mulheres! 

— Que lógica esquisita! — murmurei. 

— Oh! Não me engano, conheci uma porção. Gosto tanto desses homens que, embora eu não seja doente, costumo procurá-los, só pelo prazer de vê-los. Há os que me dizem friamente: “A senhora não tem nada!” Mas, há outros que me compreendem, porque os trato com carinho. 

— E quando não compreendem? 

— Ora! Quando os amolo inutilmente, deixo dez francos em cima do aquecedor. São tão bons e tão amáveis! Na Santa Casa, descobri um moço interno que é bonito como um anjo! Tão delicado! E como trabalha, o pobrezinho! Os companheiros dele me disseram que não tem um vintém, porque os pais são pobres e não podem mandar nada para ele. Isso me encorajou. Além disso, sou bonita, embora ainda muito moça. Eu lhe disse: “Vá me visitar, vá me visitar de vez em quando. Não se preocupe comigo, pois não preciso de dinheiro.” Mas, você compreende que lhe dei a entender isso com uma porção de rodeios, sem lhe dizer a coisa cruamente. Eu tinha tanto medo de humilhar o queridinho! Pois bem, acredita que tenho um desejo estranho que não me atrevo a dizer-lhe? Eu desejava que ele fosse visitar-me com a maleta e de avental, mesmo que estivesse um pouco sujo de sangue! Disse isso com um ar de ingenuidade, como um homem sensível diria a uma comediante que amasse: “Quero vê-la vestida com a roupa que trazia no famoso papel de sua criação!” 

Obstinado, repliquei-lhe: — Não se recorda da época e da ocasião em que lhe nasceu essa paixão estranha? 
Foi difícil fazer-me compreender. Afinal, quando o consegui, ela respondeu-me com um ar muito triste e, se não me engano, desviando o olhar: — Não sei... Não me lembro mais... 
Que maravilhas não se encontram numa grande cidade, quando se sabe passear e observar? A vida regurgita de monstros inocentes. 
Meu Deus! Vós, que sois o Criador, que sois o Soberano; vós, que fizestes a Lei e a Liberdade; vós, rei indulgente e juiz que perdoa; vós, que sois cheio de motivos e de causas e que talvez tenhais posto no meu espírito o prazer do horror para converter-me o coração, como a cura na extremidade de uma lâmina; tende piedade, Senhor, tende piedade dos loucos e das loucas! Poderão existir monstros aos olhos do Criador, que sabe por que eles existem, como foram feitos e como não poderiam deixar de ser feitos?


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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris..

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Leia também:

(42) Henri de RÉGNIER, poeta e romancista francês, nascido em 1864, um dos chefes da escola simbolista. Tem como obra Medalhas de Argila e outras.



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