segunda-feira, 18 de março de 2019

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIV — O modo de pensar de Monsenhor Bemvindo

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo



XIV — 
O modo de pensar de Monsenhor Bemvindo



Mais uma palavra. 

Como os pormenores desta natureza, especialmente na época atual, poderiam, para nos servirmos duma expressão atualmente em voga, dar ao bispo de Digne certa fisionomia «panteísta» e fazer acreditar, em seu desabono ou em seu elogio, que ele possuía alguma dessas filosofias pessoais, peculiares ao nosso século, que às vezes germinam nos espíritos solitários e vão gradualmente tomando vulto até fazer desaparecer as crenças religiosas, repetimos que ninguém, de entre as pessoas que conheceram Monsenhor Bemvindo, se julgou nunca autorizado a crer semelhante coisa. O que iluminava aquele homem era o coração. A sua sabedoria dava-lhe a luz que dele nasce. 

Poucos sistemas e muitas obras. Não há indício de que ele aventurasse o espírito na averiguação de apocalipses. O apóstolo pode ser ousado, mas o bispo deve ser tímido. É natural que tivesse escrúpulo de sondar muito profundamente certos problemas, de algum modo reservados aos grandes e terríveis espíritos. Os pórticos do enigma inspiram terror religioso. Vemos aquelas sombrias portas abertas de par em par, porém, uma voz desconhecida nos diz, a nós, caminheiros desta vida, que não entremos. Desgraçado de quem lá entrar! 

Os gênios, nas profundezas incomensuráveis da abstração e da especulação pura, situados, por assim dizer, acima dos dogmas, expõem as suas ideias a Deus. O seu orar é uma audaciosa proposta de discussão. A sua oração interroga. Eis o que é a religião direta, cheia de ansiedade e responsabilidade para quem se aventura às suas escabrosidades.

A meditação humana não tem limites. Por sua conta e risco analisa e esquadrinha o seu próprio deslumbramento. Quase poderíamos dizer que, por uma espécie de fulgurante reação, ela deslumbra também a natureza; o misterioso mundo que nos cerca, restitui o que recebe; é provável que os contempladores sejam contemplados. Seja como for, na terra há homens serão homens? que no fundo dos horizontes da meditação descobrem distintamente as alturas do absoluto e avistam a terrível montanha infinita. 

Monsenhor Bemvindo não pertencia ao número desses homens; não era um gênio. Para ele, seriam objeto de temor essas sublimidades, do cimo das quais alguns, como Swedenborg e Pascal, resvalaram na demência. Não há dúvida que essas loucuras têm sua utilidade moral e que por esses árduos caminhos é que o homem se aproxima da perfeição ideal, porém, o bispo seguia o caminho mais curto, o do Evangelho. 

Ninguém dirá que ele tentava dar à sua murça as dobras do manto de Elias, que projetava algum raio do futuro sobre o tenebroso redemoinho dos acontecimentos ou que procurava transformar em chama o clarão das coisas; nada tinha de profeta nem de mago. Era uma alma amante, e nada mais. 

É provável que dilatasse a oração até à aspiração sobrenatural, mas tão-pouco pode haver excesso em orar como em amar; e, se fosse heresia rezar sem ser pelos textos, hereges seriam Santa Teresa e S. Jerônimo. 

Não recusava o seu auxílio nem aos que gemem nem aos que expiam. O Universo apresentava-se-lhe como que imensa enfermidade; por toda a parte sentia febre, por toda a parte auscultava sofrimento, e, sem pretender decifrar o enigma, diligenciava curar a ferida. O grandioso espetáculo das coisas criadas tornava-lhe mais intensamente compassiva a índole benfazeja. A sua constante ocupação era procurar para si próprio e inspirar aos outros o melhor modo de consolar e suavizar infortúnios alheios. Para o virtuoso sacerdote, era quanto existe um motivo permanente de tristeza, mas tristeza que se desvelava em consolações para com todos os infelizes. 

Há homens que se ocupam na extração do ouro; ele ocupava-se em extrair piedade. As suas minas eram a miséria universal, e o sofrimento tornava-se uma ocasião para ele mostrar sempre a sua natural bondade. Amai-vos uns aos outros eis toda a sua doutrina que ele plenamente executava e que fora seu mais ardente desejo ver geralmente posta em prática. 

Um dia, o homem que se julgava «filósofo», o tal senador que já conhecemos, disse-lhe: 

— Ora veja o espetáculo que o mundo apresenta: a guerra de todos contra todos; o mais forte é o que tem razão. O tal amai-vos uns aos outros é um absurdo! 

— Pois seja — respondeu o bispo, sem discutir — mas, nesse caso, a alma deve encerrar-se nela como a pérola dentro da concha! 

E ele assim fazia. Vivia satisfeito, plenamente satisfeito com isso, sem se intrometer nessas maravilhosas questões que atraem e amedrontam, nas perspectivas insondáveis da abstração, nos princípios da metafísica, em nenhuma dessas profundezas convergentes, aos olhos do apóstolo, para Deus, aos olhos do ateu para o nada; o destino, o bem e o mal, a guerra da criatura contra a criatura, a consciência do homem, o sonambulismo melancólico do animal, a transformação da morte, a recapitulação de existências encerradas num túmulo, a incompreensível filiação dos amores sucessivos do eu persistente, a essência, a substância, a alma, a natureza, a liberdade e a necessidade; problemas indecifráveis, densidades sinistras, sobre as quais se debruçam os arcanjos do espírito humano; abismos temerosos que Lucrécio, S. Paulo e Dante contemplam com esse olhar fulgurante que parece despontar estrelas no infinito em que se fixa. O bispo era apenas um homem que observava exteriormente as questões misteriosas, sem as perscrutar nem debater, nem se cansar a averiguá-las, um homem que respeitava os mistérios do incompreensível.





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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862



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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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