sábado, 16 de março de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XVII

O PRIMEIRO ADJUNTO

O, how this spring of love resembleth 
The uncertain glory of an April day; 
Which now shows all the beauty of the sun 
And by and by a cloud takes all away!

TWO GENTLEMEN OF VERONA0




UM DIA, AO ENTARDECER, sentado junto de sua amiga, no fundo do pomar, longe dos importunos, ele sonhava profundamente. Momentos tão doces, pensava, durarão sempre? Sua alma estava inteiramente ocupada com a dificuldade de escolher uma profissão, ele deplorava esse grande acesso de infelicidade que encerra a infância e estraga os primeiros anos da mocidade. 

– Ah!, exclamou, como Napoleão era de fato o homem enviado por Deus para os jovens franceses! Quem o substituirá? Que farão sem ele os infelizes, mesmo mais ricos que eu, que têm os escudos necessários para prover-se uma boa educação, mas não o bastante para comprar um homem aos vinte anos e progredir numa carreira? Não importa o que façamos, acrescentou com um profundo suspiro, essa lembrança fatal sempre nos impedirá de sermos felizes! 

No mesmo instante, viu a sra. de Rênal franzir a sobrancelha e tomar um ar frio e desdenhoso; essa maneira de pensar parecia-lhe convir a um criado. Educada na ideia de que era muito rica, parecia supor que Julien o fosse também. Ela o amava mil vezes mais que a vida e não dava nenhuma importância ao dinheiro. 

Julien estava longe de adivinhar tais ideias. Aquele franzir de sobrancelha trouxe-o de volta à terra. Teve suficiente presença de espírito para compor uma frase, dando a entender à nobre dama, sentada perto dele no jardim, que as palavras que acabava de repetir, ele as ouvira durante a viagem à casa de seu amigo madeireiro. Era o raciocínio dos ímpios. 

– Pois bem, não se misture a essa gente, disse a sra. de Rênal, conservando ainda um pouco daquele ar gla​cial que, de repente, sucedera à expressão da mais viva ternura. 

Aquele franzir de sobrancelha, ou melhor, o remorso por sua imprudência, foi o primeiro golpe contra a ilusão que acalentava Julien. Ele pensou: Ela é boa e meiga, gosta muito de mim, mas foi educada no campo inimigo. Eles devem ter medo sobretudo dessa classe de homens corajosos que, após uma boa educação, não têm bastante dinheiro para seguir uma carreira. Que seria desses nobres, se nos fosse dado combatê-los com armas iguais? Eu, por exemplo, prefeito de Verrières, bem-intencionado, honesto como o é no fundo a sra. de Rênal! Como haveria de punir o vigário, o sr. Valenod e todas as suas falcatruas! Como a justiça triunfaria em Verrières! Os talentos deles não se​riam um obstáculo para mim; eles vivem tateando.

A felicidade de Julien esteve, nesse dia, a ponto de tornar-se durável. Faltou a nosso herói ousar ser sincero. Era preciso ter a coragem de travar combate, mas naquela hora; a sra. de Rênal ficara espantada com as palavras de Julien, porque os homens de sua sociedade repetiam que a volta de Robespierre era possível por causa desses jovens das classes baixas, muito bem-educados. O ar frio da sra. de Rênal durou bastante tempo, e a Julien pareceu acentua​do. É que o temor de ter-lhe dito uma coisa desagradável sucedeu à repugnância inicial às palavras dele. Esse desgosto refletiu-se vivamente em seus traços, tão puros e ingênuos quando ela estava feliz e longe dos maçadores. 

Julien não ousou mais falar de seus devaneios. Mais calmo e menos amoroso, achou que era imprudente ir ver a sra. de Rênal em seu quarto. Seria melhor que ela viesse até o dele; se um criado a surpreendesse correndo pela casa, vinte pretextos diferentes podiam explicar esse comportamento. 

Mas esse arranjo também tinha seus inconvenientes. Julien recebera de Fouqué livros que ele, aluno de teologia, jamais teria podido pedir a um livreiro. Só ousava abri-los à noite. Geralmente não havia risco de ser interrompido por uma visita cuja espera, ainda na véspera desta cena no pomar, o deixaria sem condições de ler. 

Ele devia à sra. de Rênal o fato de compreender os livros de uma maneira inteiramente nova. Tinha ousado fazer-lhe perguntas sobre uma porção de coisas, cuja ignorância bloqueia a inteligência de um jovem não nascido entre os ricos, seja qual for o talento natural que possua. 

Essa educação do amor, dada por uma mulher extremamente ignorante, foi uma felicidade. Julien conseguiu ver diretamente a sociedade tal como é hoje. Seu espírito não foi ofuscado pelo relato do que ela fora outrora, há dois mil anos, ou apenas há sessenta anos, no tempo de Voltaire e de Luís XV . Com uma inexprimível alegria, viu cair um véu ante seus olhos e compreendeu enfim as coisas que se passavam em Verrières. 

Apareceram em primeiro plano intrigas muito complicadas, urdidas, de dois anos para cá, pelo governador de Besançon. Apoiavam-se em cartas vindas de Paris e escritas pelo que há de mais ilustre. Tratava-se de fazer do sr. de Moirod, que era o homem mais devoto da região, o primeiro, e não o segundo adjunto do prefeito de Verrières. 

Ele tinha por concorrente um fabricante muito rico, que era preciso absolutamente rechaçar para a posição de segundo adjunto. 

Julien compreendeu, enfim, as meias palavras que surpreendera, quando a alta sociedade da região vinha jantar na casa do sr. de Rênal. Essa sociedade privilegiada estava muito ocupada com a escolha do primeiro adjunto, cuja possibilidade o resto da cidade e sobretudo os liberais nem sequer suspeitavam. A importância disso é que assim, sabia-se, o lado oriental da rua principal de Verrières recuaria cerca de três metros, pois essa rua tornara-se estrada real. 

Ora, se o sr. de Moirod, que tinha três casas amea​çadas por esse recuo, viesse a ser o primeiro adjunto, e eventualmente prefeito caso o sr. de Rênal fosse nomeado deputado, ele fecharia os olhos, e poderiam fazer, nas casas que avançam sobre a via pública, pequenos reparos imperceptíveis, graças aos quais elas durariam cem anos. Apesar da grande piedade e da probidade reconhecidas do sr. de Moirod, tinha-se certeza de que ele seria indulgente, pois tinha muitos filhos. Entre as casas que deviam recuar, nove pertenciam a tudo o que há de melhor em Verrières. 

Aos olhos de Julien, essa intriga era bem mais importante que a história da batalha de Fontenoy, cujo nome ele via pela primeira vez num dos livros que Fouqué lhe enviara. Havia coisas que espantavam Julien desde que há cinco anos passara a frequentar a casa do cura. Mas, como a discrição e a humildade eram as primeiras qualidades de um aluno de teologia, sempre lhe fora impossível fazer perguntas. 

Um dia, a sra. de Rênal dava uma ordem ao cama​rei​ro de seu marido, o inimigo de Julien. 

– Mas senhora, hoje é a última sexta-feira do mês, respondeu esse homem com um jeito singular. 

– Está bem, disse a sra. de Rênal. 

– Ora vejam!, comentou a seguir Julien, ele vai reunir-se nesse depósito de feno, igreja outrora, e recentemente restituído ao culto; mas por quê? eis um dos mistérios que nunca pude compreender. 

– É uma instituição muito salutar, mas muito singular, respondeu a sra. de Rênal; as mulheres não são admitidas: tudo o que sei é que todos se tratam por tu. Por exem​plo, esse criado vai encontrar lá o sr. Valenod, e esse homem tão orgulhoso e tão tolo não se importará de ser tratado com intimidade por Saint-Jean, e lhe responderá no mesmo tom. Se insiste em saber o que fazem lá, pedirei detalhes ao sr. de Maugiron e ao sr. Valenod. Pagamos vinte francos por criado a fim de que um dia não nos decapitem. 

O tempo voava. A lembrança dos encantos de sua amante mantinha Julien afastado de sua negra ambição. A necessidade de não lhe falar de coisas tristes e razoáveis, já que eram de partidos contrários, aumentava, sem que ele suspeitasse, a felicidade que devia a ela e o domínio que ela adquiria sobre ele. 

Nos momentos em que a presença de crianças muito inteligentes os restringia a falar apenas a linguagem da fria razão, era com uma docilidade perfeita que Julien, mirando-a com olhos faiscantes de amor, escutava suas explicações de como funciona a sociedade. Com frequência, em meio ao relato de alguma patifaria engenhosa, por ocasião de uma estrada ou de um fornecimento, o espírito da sra. de Rênal de repente extraviava-se, chegando quase ao delírio; Julien tinha necessidade de repreendê-la; ela permitia-se com ele os mesmos gestos íntimos que com os filhos. É que havia dias em que ela tinha a ilusão de amá-lo como a um filho. Acaso não tinha de responder a toda hora a suas perguntas ingênuas sobre mil coisas que uma criança bem-nascida não ignora aos quinze anos? Um instante depois, ela o admirava como seu mestre. Seu talento chegava a assustá-la; acreditava perceber mais nitidamente, a cada dia, o grande homem futuro nesse jovem padre. Via-o papa, via-o primeiro-ministro, como Richelieu. 

– Viverei o bastante para ver tua glória?, dizia ela a Julien. O lugar está preparado para um grande homem; a monarquia, a religião têm necessidade dele.




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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)


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