sábado, 9 de março de 2019

O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia

Simone de Beauvoir



40. Fatos e Mitos


Terceira Parte
Os Mitos

CAPITULO I


V




"A Alma e a Ideia"




Vê-se a que ponto a figura da mulher se espiritualizou desde o aparecimento do cristianismo; a beleza, o calor, a intimidade que o homem deseja ter através dela não são mais qualidades sensíveis; em lugar de resumir a saborosa aparência das coisas ela torna-se a alma delas; mais profundo do que o mistério carnal, há em seu coração uma secreta e pura presença em que se reflete a verdade do mundo. Ela é a alma da casa, da família, do lar. Ela é também a das coletividades mais amplas; cidade, província, nação. Jung observa que as cidades sempre foram assimiladas à Mãe pelo fato de conterem os cidadãos em seu seio: eis por que Cibele se apresenta coroada de torres; pela mesma razão fala-se em "mãe-pátria"; mas não é somente o solo nutriz, é uma realidade mais sutil que encontra seu símbolo na mulher. No Antigo Testamento e no Apocalipse, Jerusalém e Babilônia não são somente mães: são igualmente esposas. Há cidades virgens e cidades prostitutas como Babel e Tiro. Também se diz da França que é a "filha mais velha" da Igreja; a França e a Itália são irmãs latinas. A função da mulher não é especificada, mas tão-sòmente sua feminilidade, nas estátuas que representam a França, Roma, a Germânia, ou nas que, na praça da Concórdia, evocam Estrasburgo e Lião. Essa assimilação não é apenas alegórica, ela é efetivamente realizada por muitos homens  (1)


(1) Ela é alegórica no vergonhoso poema que Claudel cometeu recentemente e em que chama a Indo-China "esta mulher amarela"; ela é afetiva, ao contrário nos versos do poeta negro:

A alma do negro país onde dormem os antigos
vive e fala
esta noite
na força inquieta ao longo de teus rins côncavos.


É frequente o viajante pedir à mulher a chave das regiões que visita: quando aperta uma italiana nos braços, ou uma espanhola, parece-lhe possuir a essência saborosa da Itália, da Espanha. "Quando chego numa nova cidade, começo indo ao bordel", dizia um jornalista. Se um chocolate com canela pode revelar a Gide toda a Espanha, com muito mais razão os beijos de uma boca exótica dão ao amante um país com sua flora, sua fauna, suas tradições, sua cultura. Não lhes resume a mulher as instituições políticas nem as riquezas econômicas, mas ela encarna sua polpa carnal e seu mana místico ao mesmo tempo. Desde Graziella de Lamartine aos romances de Loti e às novelas de Morand, é através da mulher que vemos o estrangeiro tentar apropriar-se da alma de uma região. Mignon, Sylvie, Mireilk, Colomba, Carmen desvendam a mais íntima verdade da Itália, do Vaiais, da Provença, da Córsega, da Andaluzia. O fato de Goethe se fazer amar pela alsaciana Frederica pareceu aos alemães um símbolo de anexação dessa região à Alemanha; reciprocamente, quando Colette Baudoche se recusa a desposar um alemão, aos olhos de Barres, a Alsácia recusa-se à Alemanha. Ele simboliza Aigues-Mortes e toda uma civilização requintada e friorenta na pequena Berenice; ela representa também a sensibilidade do próprio escritor. Porque naquela que é a alma da Natureza, das cidades, do universo, o homem reconhece também seu duplo misterioso; a alma do homem é Psique, uma mulher.

Psique tem traços femininos em Ulalume de Edgard Poe: "Aqui, certa vez, através de uma alameda titânica de ciprestes errava com minha alma — uma alameda de ciprestes com Psique minha alma. .. Assim pacifiquei Psique e a beijei. . . e disse: que está escrito na porta, doce irmã?"

E Mallarmé, dialogando no teatro com "uma alma ou nossa ideia" (isto é, a divindade presente no espírito do homem), chama-a "uma tão requintada dama anormal (sic)".


Harmoniosa eu diferente de um sonho
Mulher flexível e rija de silêncios seguidos
De atos puros!...
Misteriosa eu. .. (1),


(1) Harmonieuse moi différente d'un songe
Femme flexible et ferme aux silences suivis
D'actes purs!. , .
Mystérieuse moi...



eis como Valéry a interpela. Às ninfas e às fadas o mundo cristão substituiu presenças menos carnais. Mas os lares, as paisagens, as cidades e os próprios indivíduos continuam habitados por uma impalpável feminilidade. 

Essa verdade enterrada na noite das coisas resplende também no céu. Perfeita imanência, a Alma é ao mesmo tempo o transcendente, a Ideia. Não somente as cidades e as nações mas também entidades, instituições abstratas apresentam traços femininos: a Igreja, a Sinagoga, a República, a Humanidade são mulheres, e também a Paz, a Guerra, a Liberdade, a Revolução, a Vitória. O ideal que o homem põe diante de si como o Outro essencial, ele o feminiza porque a mulher é a figura sensível da alteridade; eis por que quase todas as alegorias, tanto na linguagem como na iconografia, são mulheres (2). Alma e Ideia, a mulher é também mediadora entre uma e outra; ela é a Graça que conduz o cristão a Deus, ela é Beatriz guiando Dante no além, Laura chamando Petrarca para os altos cumes da poesia. Em todas as doutrinas que assimilam a Natureza ao Espírito, ela se apresenta como Harmonia, Razão, Verdade. As seitas gnósticas tinham feito da Sabedoria uma mulher: Sofia. Atribuíam-lhe a redenção do mundo e até sua criação. A mulher não é mais carne então, mas corpo glorioso; não se pretende mais possuí-la, veneram-na em seu esplendor intato; as mortas pálidas de Edgard Poe são fluidas como a água, como o vento, como a lembrança; para o amor cortês, para os preciosos e em toda a tradição galante a mulher não mais é uma criatura animal e sim um ser etéreo, um sopro, uma luz. Assim é que a opacidade da Noite feminina se converte em transparência, a negridão em pureza como nos textos de Novalis: 

"Êxtase noturno, sono celeste, desceste sobre mim; a paisagem elevou-se docemente, acima da paisagem flutuou meu espírito liberto, regenerado. O texto tornou-se uma nuvem através da qual percebi os traços transfigurados da Bem-Amada." 

(2) A filologia é neste ponto algo misteriosa; todos os linguistas concordam em reconhecer que a distribuição das palavras concretas em gêneros é puramente acidental. Entretanto, em francês, as entidades são em sua maioria do gênero feminino: beleza, lealdade etc. E, em alemão, em geral as palavras importadas, estrangeiras, outras,, são femininas: die Bar etc.

"Somos então agradáveis a ti também, noite sombria?... Um bálsamo precioso escorre de tuas mãos, uma réstia de luz cai de tua girândola. Reténs as asas pesadas da alma. Uma emoção obscura e indizível nos invade: vejo um rosto sério, alegremente assustado inclinar-se para mim com doçura e recolhimento e reconheço sob os cachos enlaçados a querida juventude da Mãe.. . Mais celestes do que as estrelas cintilantes parecem-nos os olhos infinitos que a Noite abriu em nós." 

Inverteu-se a atração descendente exercida pela mulher; ela não chama mais o homem para o coração da terra e sim para o céu:


O Eterno Feminino
Atrai-nos para o alto

proclama Goethe no fim do Segundo Fausto. 

Sendo a Virgem Maria a imagem mais perfeita, mais geralmente venerada da mulher regenerada e consagrada ao Bem, é interessante ver através da literatura e da iconografia como ela se apresenta. Eis um excerto das litanias que lhe endereçava na Idade Média a cristandade fervorosa: 

"Alta Virgem, tu és o Orvalho fecundo, a Fonte da Alegria, O Canal das misericórdias, o Poço das águas vivas que apaziguam nossos ardores. 

"Es o Seio com que Deus amamenta os órfãos... 

"És a Medula, o Miolo, o Núcleo de todos os bens. 

"És a Mulher sem ardis e cujo amor nunca muda. .. 

"És a Piscina probática, o Remédio das vidas leprosas, a Médica sutil que não encontra semelhante nem em Salermo nem em Montpellier. . . 

"És a Dama das mãos que curam e cujos dedos tão belos, tão brancos, tão alongados restauram os narizes e as bocas, fazem novos olhos e novas orelhas. Acalmas os ardentes, reanimas os paralíticos, retesas os covardes, ressuscitas os mortos." 

Encontra-se nessas invocações a maior parte das atribuições femininas que assimilamos. A Virgem é fecundidade, orvalho, fonte de vida; muitas imagens mostram-na no poço, na nascente, na fonte; a expressão "fonte de vida" é uma das mais difundidas; ela não é criadora, mas fertiliza, faz jorrar à luz o que se escondia na terra. Ela é a profunda realidade encerrada sob a aparência das coisas: o Núcleo, a Medula. Através dela, aplacam-se os desejos: ela é o que é dado ao homem para satisfazê-lo. Por toda parte onde a vida se acha ameaçada, ela a salva e a restaura; cura e fortalece. E como a vida emana de Deus, sendo intermediária entre o homem e a vida, ela é intermediária entre a humanidade e Deus. "Porta do diabo", dizia Tertuliano. Mas, transfigurada, ela é a porta do céu; pinturas no-la representam abrindo uma porta ou uma janela para o paraíso; ou ainda, erguendo uma escada entre a terra e o firmamento. Mais claramente, ei-la advogada, intercedendo junto de seu Filho pela salvação dos homens. Inúmeros quadros do Juízo Final mostram a Virgem descobrindo os seios e suplicando a Cristo em nome de sua gloriosa maternidade. Ela protege nas dobras de seu manto os filhos dos homens; seu amor misericordioso acompanha-os pelos oceanos, pelos campos de batalha, através dos perigos. Em nome da caridade, atenua a justiça divina; vêem-se "Virgens com balança" que fazem, sorrindo, pender para o lado do Bem o prato em que são pesadas as almas.

Esse papel misericordioso e terno é um dos mais importantes que foram atribuídos à mulher. Mesmo integrada na sociedade, a mulher ultrapassa-lhe sutilmente as fronteiras porque tem a generosidade insidiosa da Vida. É essa distância entre as construções voluntárias dos homens e a contingência da Natureza que parece, em certos casos, inquietante, mas ela torna-se benéfica quando a mulher, demasiado dócil para ameaçar a obra dos homens, limita-se a enriquecê-la e amaciar-lhe as linhas por demais acentuadas. Os deuses masculinos representam o Destino; ao lado das deusas encontra-se uma benevolência arbitrária, uma proteção caprichosa. O Deus cristão tem os rigores da Justiça; a Virgem tem a doçura da caridade. Na terra, os homens são defensores das leis, da razão, da necessidade; a mulher conhece a contingência original do próprio homem e dessa necessidade em que ele crê; daí a misteriosa ironia que floresce em seus lábios e sua flexível generosidade. Ela pariu na dor, pensou as feridas dos machos, amamenta o recém-nascido e sepulta os mortos; conhece tudo o que freia o orgulho e humilha a vontade do homem. Embora inclinando-se diante dele, sujeitando a carne ao espírito, situa-se nas fronteiras carnais do espírito; contesta a seriedade das duras arquiteturas masculinas, adoça-lhe os ângulos; introduz nelas um luxo gratuito, uma graça imprevista. Seu poder sobre os homens decorre do fato de guiá-los ternamente para uma consciência modesta da autêntica condição deles; eis o segredo de sua sabedoria desabusada, dolorosa, irônica e amorosa. Mesmo a frivolidade, o capricho, a ignorância são nelas virtudes encantadoras, porque elas desabrocham aquém e além do mundo em que o homem escolhe viver, mas onde não gosta de se sentir encerrado, tal face das significações assentadas, dos instrumentos moldados para fins úteis, ela ergue o mistério das coisas intatas; faz passar pelas ruas das cidades e pelos campos cultivados o sopro da poesia. A poesia pretende captar o que existe além da prosa quotidiana: a mulher é uma realidade eminentemente poética, porquanto nela o homem projeta tudo o que não se decide a ser. Ela encarna o Sonho; o sonho é para o homem a presença mais íntima e mais estranha, o que ele não quer, o que não faz, aquilo a que ele aspira e que não pode ser atingido; a Outra misteriosa que é a profunda imanência e a longínqua transcendência empresta-lhe os traços. Assim é que Aurélia visita Nerval em sonho, e dá-lhe oniricamente todo o universo. "Ela pôs-se a crescer sob uma clara réstia de luz de maneira que, pouco a pouco, o jardim assumia a sua forma e os canteiros e as árvores tornavam-se as rosáceas e os festões de suas vestimentas; enquanto seu rosto e seus braços imprimiam seus contornos às nuvens purpurinas do céu. Eu a perdia de vista na medida em que ela se transfigurava, porque parecia esvair-se na sua própria grandeza. — Oh! não me fujas, exclamei, pois a Natureza morre contigo."

Sendo a própria substância das atividades poéticas do homem, compreende-se que a mulher se apresente como sua inspiradora: as Musas são mulheres. A Musa é mediadora entre o criador e as fontes naturais em que deve haurir. É através da mulher, cujo espírito se acha profundamente ligado à Natureza, que o homem sondará os abismos do silêncio e da noite fecunda. A Musa não cria nada por si mesma; é uma Sibila ajuizada que documente se fez serva de um senhor. Mesmo nos domínios concretos e práticos, seus conselhos serão úteis. O homem quer, sem o auxílio de seus semelhantes, atingir as metas que inventa e não raro a opinião de outro homem se lhe afigura importuna, mas ele imagina que a mulher lhe fala em nome de outros valores, em nome de uma sabedoria que ele não pretende possuir, mais instintiva do que a dele, mais imediatamente adequada ao real; são "intuições" que Egéria oferece ao consulente; ele a interroga sem amor-próprio, como interrogaria os astros. Essa "intuição" introduz-se até nos negócios e na política: Aspásia e Mme de Maintenon ainda hoje fazem carreira florescente (3).


(3) É inútil dizer que exibem, em verdade, qualidades intelectuais perfeitamente idênticas às dos homens.




continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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O Segundo Sexo - 35. Fatos e Mitos: A hesitação do macho entre o medo e o desejo

O Segundo Sexo - 36. Fatos e Mitos: "Está cheio de teia de aranha lá dentro..."

O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado

O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo

O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe

O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...




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