terça-feira, 2 de julho de 2019

O Brasil Nação - v2: § 64 – O passe de 1871 e o abolicionismo imperial - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2




SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 7
as revoluções brasileiras



§ 64 – O passe de 1871 e o abolicionismo imperial




A política nacional renegara de tudo que é digno, degradara-se, principalmente para com os escravos; no entanto, em 1871, o governo imperial faz votar ostensivamente uma reforma emancipadora... Não será difícil dar a explicação de como, sem saírem os governantes da miséria em que fermentavam, houve a lei de 28 de setembro. Apreciaremos os motivos reais da reforma em que se ostentava o abolicionismo do imperante, em correspondência com as convicções dos políticos encarregados da tarefa. Tanto foi a efetiva valia da célebre lei do ventre livre

Destaquem-se, em primeiro lugar, as datas: em 1851, emerge o novo abolicionismo, com Silva Guimarães; acentua-se, em 1857-59-61, com Silveira da Mota, Jequitinhonha, Teixeira de Freitas; generaliza-se em 1861-63, no mundo da jurisprudência, na imprensa, com a vigorosa intervenção de Tavares Bastos; brame e despenha-se em 1863-65-68... com a formidável propaganda sentimental de Castro Alves; em 1869-70, é a formidável avalanche, já tangida por Luiz Gama e Rui Barbosa... No entanto, só em 1866 a fala do trono faz uma rapidíssima insinuação, para que o Parlamento pense no caso; e o estadista áulico Pimenta Bueno é incumbido de arranjar um plano de lei, a ser estudado pelo Conselho de Estado; amanha-se um projeto mais retrógrado do que qualquer dos já conhecidos –, Montezuma ou Silveira da Mota. Apesar disso, o monstrengo é estudado, antes afastado, até 1868, data em que Nabuco de Araújo apresenta ao mesmo conselho um projeto seu, que é fortemente combatido. E vem assim, quando, em 1871, estoura a bomba do imperial projeto emancipador, atirado ao Parlamento pelo intrépido empreiteiro Paranhos da Silva. Note-se, no entanto, que, afora as insignificantes linhas da fala do trono com Zacarias, tudo que se faz, de 1866 a 70, é no segredo morto do Conselho de Estado; altos políticos, exteriores a ele desconheciam os planos. E, com isto, mesmo neste segredo morto, a nota de abolicionismo, tépido e inócuo só se ouve quando já reboavam por todo o Brasil as inflamadas reivindicações de Castro Alves, quando se sentiam os frêmitos da dura campanha de que iam sair livres os negros norte-americanos, e nadavam no ambiente os programas que, antes de Rio Branco – ventre livre, libertariam todos os escravos das próprias colônias espanholas, para que ficasse, único do mundo cristão, vivendo do trabalho escravo, o país governado pelos Olindas e Sinimbus. 

Estas datas dizem muito, por conseguinte, como valor da política nacional, e dizem tudo quando se sabe que, mesmo assim, tarde e mal, a reforma suscitada e realizada em 1871 foi obra exclusiva do monarca – concepção e realização. E por que veio Pedro II para a causa dos escravos, ele, que levava o seu império no fastígio quase vertiginoso de 1865, sem dar qualquer prova, de qualquer interesse pela sorte dos escravos? São muitas as causas do emancipacionismo reverso e tardo, de Pedro II. A guerra do Paraguai era, como indisfarçado motivo íntimo, o seu grande empenho. Toda a América, todo o mundo, só tinha simpatias para o pequeno povo heroico, condenado ao extermínio; Lopez, tratado pela diplomacia imperial de déspota, cruel e tirano imperdoável, incompatível com a liberdade, defendia-se apontando ao mundo o Estado realmente incompatível com a liberdade, e que vivia sobre a escravidão. Pedro II, sempre a campar de liberal, teve de mostrar que, por si, era a favor da libertação dos negros: primeira causa – desmentir o Lopez. Abolia-se a escravidão legal em todo o resto do Ocidente; estendiam-se por todo o país as vagas de uma propaganda que iria à revolução; não era mais possível fingir que o Brasil se conformara com a condição de ser o apanágio de negreiros e da sua descendência; e a mesma escassa capacidade política de Pedro II compreendera que não se podia mais adiar em achar a forma de transigência com a necessidade de emancipação dos escravos; segunda causa – evidência da oportunidade. A terceira causa, que até parece fútil, foi, no entanto, a decisiva: a Sociedade Abolicionista Francesa, nos nomes do príncipe e do Duque de Broglie, Conde de Montalembert, Sr. de Pressensé, Guizot, Henri Martin, Laboulaye... dirigiu uma mensagem ao imperador do Brasil, apelando para os seus sentimentos de justiça e de liberdade... Ora, Pedro II desde sempre havia decidido ser tudo aquilo; estava convencido de possuir todos esses dotes, e, pronto, fez a resposta; o ministro só teve que lhe copiar o borrão. É coisa decidida; só lhe falta a forma e oportunidade... oportunidade muito limitada. Era questão de liquidar o Paraguai. De fato, a campanha terminou em 1870, e, na sessão parlamentar do ano seguinte, Rio Branco entrava com o fruto do imperial abolicionismo. 

A gestação do monstro foi por entre dissídios, avança-e-recua, e muito segredo atrás dos pesados reposteiros do Conselho de Estado. Elaborado o projeto Pimenta Bueno, concertado de acordo com as ideias de Nabuco foi ao dito conselho, para muitos pareceres, sepultados sob o mais espesso silêncio. Escreveu e discursou Otoni que nem aos ministros foram comunicados tais pareceres. Num rápido entremez, foi Pimenta Bueno presidente do conselho, com um gabinete bem misturado, de sorte a fazer a reforma, e que ninguém duvidasse de que era fruto da coroa. O fraco S. Vicente não foi homem para a empreitada, que só pôde ser realizada pelo expedito Paranhos. Apareceu o projeto, nos termos em que o devia ser, e, de fato foi votado. Nunca se falou tão ostensivamente em política da coroa. Nem a reforma constitucional da República esteve mais acima das discussões: os pontos essenciais não podiam ser modificados “– isto é o que ficou assentado com S. Majestade antes do embarque”. E o projeto não estudado, não debatido (afirma Otoni, que foi parte) assim mesmo, foi feito lei. O Parlamento não conhecia nem os célebres pareceres do Conselho de Estado. O conselheiro Teixeira Júnior disse no parecer ao projeto: “... sob caráter confidencial e com a recomendação reiterada da maior reserva (grifos do parecer) foi mostrada à comissão... uma cópia... Nestas condições, pois, a comissão não pode revelar nenhuma das opiniões exaradas...” Não se perdendo em razões para justificar o projeto, o delicioso parecer destacou, todavia, esta: “Um Pedro II (o que roubou ao irmão – o trono a liberdade e a esposa) proclamou a liberdade dos índios, outro Pedro II realizará a da raça africana.” Uma coisa não disse, no entanto, o sigiloso parecer: que isso, negado em 1871 ao parlamento brasileiro, tinha sido comunicado, desde 1867, aos abolicionistas amigos, da França. 

Foi Pedro II quem produziu a primeira reforma em favor dos escravos, mas, em sinceridade, ele não era abolicionista. Esta sua atuação veio acentuar aquilo mesmo que já assinalamos: apesar de tudo, ele estava acima dos dirigentes com quem teve de fazer o seu reinado. Afrânio Peixoto, na sua imensa generosidade, faz desse monarca o propulsor do movimento emancipador, e como não tem fundamento para o conceito, justifica as falhas e hesitações do imperial abolicionismo com as peias constitucionais, que lhe embaraçavam a ação. E como isso não é a história, nada temos a embargar na generosa referência. Pedro II, o onipotente, a reinar, governar e administrar, desde que ainda era um adolescente, se houvera nele qualquer fração de legítimo abolicionismo, não esperaria que o tráfico se extinguisse sob a pressão do inglês, nem haveria aquela oportunidade de 1871. Em 1849-50, o imperador era o rapaz de 25 anos, com dez anos de experiência política, na idade ótima – das afirmações pessoais, sobretudo em generosidade e em poder. O governo do Império era a sua vontade; o tráfico se fechou quando ele o quis, sem nenhuma consulta à nação; libertação do ventre da mulher se fez quando ele o quis. Teria sido em 1852, em 60, em 65... se ele tivesse sido tocado de qualquer inspiração análoga à que determinou a lei de 8 de setembro. Nem a secura de coração de Pedro II lhe permitia nutrir os sentimentos, compassivos e exaltados, de que se fazia o legítimo abolicionismo. Caráter incompleto e de convenção, o imperador foi abolicionista convencionalmente, quando motivos exteriores o levaram para aí, para ser um abolicionista incompleto, antes nocivo. Em face do trono, competindo com ele, quem era abolicionista era a propaganda republicana. Abolicionista, ele chamou o gabinete Dantas, em 1885, quando lhe pareceu já muito viva a agitação, mas foi somente para um ensaio, disse, ele, e assim o demonstrou, negando a Dantas a dissolução que garantiria, como aconteceu com Paranhos, a Câmara para votar o projeto governamental. Em vez disto, preparou uma solução monstruosa. Teve Dantas como seu chefe do gabinete, mas pronto a puxar-lhe a casaca, até que o deixou cair, para que viesse Saraiva, com a sua abolição ainda mais dosimétrica. E, não abolicionista, continuou Pedro II depois de 1871, como não o era antes. Toda a sua política, antes de Dantas, como no fim da sua viagem à Europa, não sobre à de Cotegipe, a quem encarregou de ultimar a segunda fase do seu emancipacionismo, que só não foi definitivo por que havia a alma do Brasil. Quando iniciada a decisiva campanha abolicionista, B. Otoni o disse com todas as letras: “O imperador queria a emancipação remunerada, e o país começou a pronunciar-se pela simples abolição”. (1) Nabuco, em 1886, com toda a sua indesmentida dedicação dinástica, não hesitou em notar a verdade: “A reação atual e conservadora tem a responsabilidade do Partido Conservador, mas quem ideou essa reação, quem fez retroceder a sombra do sol no disco da segunda independência brasileira, foi o imperador”. (2) 


(1) O Eclipse do Abolicionismo, pág. 40. 

(2) Otoni, Biografia de D. Pedro de Alcântara, e opúsculo sobre o elemento servil, publicado em 1871. Melo Moraes, op. cit.


Emancipador por convenção, em vista dos seus interesses, Pedro II fez questão de dar arras, para que a reforma de 1871 se contasse como coisa exclusivamente sua; e timbrou em não na realizar com estadistas emancipadores – Silveira da Mota, Nabuco de Araújo, Martin Francisco... Essa reforma não precisava de ser abolicionista; sendo obra própria do simples empreiteiro Paranhos, ela se ajustava admiravelmente ao momento de emancipacionismo de Pedro II. Paranhos que, em 1866-68, fizera objeção à parca emancipação de Pimenta Bueno, era bem o avesso de Zacarias, sem deixar de lhe ser idêntico: Zacarias, o primeiro a lembrar que se fizesse emancipação, e que, três anos depois, votou contra a emancipação, como Paranhos, fora contra ela e a realizou. É que o primeiro lembrou e o segundo realizou, por inspiração ordenativa da coroa. Era a segunda pessoa no gabinete do ventre livre. Saião Lobato, foi sagrado, por isso, abolicionista, ou porque propusera que negro escravo fosse para a roça... Ora, Otoni lembra que, de tão escravocrata, Saião Lobato, numa sessão secreta da Câmara, adotara, para o caso, a opinião do pétreo Cairu: “Nenhum esforço humano curará o mal da escravidão...” É por isso, que Paranhos e Saião demitiram aquele delegado da coroa da corte, o qual, baseado no direito romano, fez declarar livres 400 escravas cafetinizadas pelos respectivos senhores... Quem o refere é Melo Morais. 

De tudo isto resultou a lei de 28 de setembro, com que se iludiu a nação, que já clamava impetuosamente contra o crime da escravidão, lei que, de positivo, só teve estes resultados: retardou, uns dez anos, a libertação efetiva dos escravos, condenou à morte a grande maioria das decantadas crianças livres, nascidas de ventre escravo, e permitiu aos senhores aumentar o número de escravos, inscrevendo como tal, na matrícula criada, milhares de brasileiros indiscutivelmente livres. Tudo somando, e bem calculado, a lei de 28 de setembro só deu satisfação aos interesses vis ligados à escravidão. Otoni, no momento mesmo em que se discutia a famosa emancipação, apontou o crime: “... das crianças, salvar-se-ão cinco, e serão sacrificadas 95 às gloriosas ovações que S. Majestade Imperial foi colher na Europa.” Em carta ao Centro Abolicionista da Politécnica, Benedito Otoni é taxativo: “Lei de transação, a de 28 de setembro, manda aceitar para matrículas, sem exames, as relações de escravos que os senhores apresentam, aliás, notório que imenso número, talvez a maioria não tinham contra si nem a tolerância da lei escrita.” E por que era isso, a reforma de Pedro II-Paranhos foi duramente condenada no momento mesmo em que a levantaram. José de Alencar teve, com relação à qualidade dela, o melhor argumento para combatê-la: “...a ideia da libertação do ventre foi sempre combatida pela Inglaterra, a França, Estados Unidos e outros países...” Sales Torres Homem que a defendeu no Senado, teve de reconhecer: “... tímida e incompleta, a lei transigiu com os interesses, mal-entendidos, em preterição das exigências na Justiça e dos direitos da humanidade.” Logo em 1874, quando não previa, sequer, a República, Rui Barbosa mostrou, patenteou, com a lucidez do seu discorrer, o que valia o monstro:


... expressão de generosidade da coroa... composto ingruente de ideias contraditórias... desampara à geração atual de escravos, e cria, ao lado dela, uma geração de ingênuos, quase tão envilecidos como os próprios escravos... serviu para introduzir no seio das famílias perturbações de todos os dias... melhoramento superficial... para protelar indefinidamente a reforma real.


De são e profícuo, só havia, na lei de 28 de setembro, a criação do fundo de emancipação. Pois bem, entrada em uso, começaram a roer-lhe as verbas: em 1872, retiraram dele as multas impostas em virtude da lei que o criara; em 1877, tiraram-lhe 25%, para fins que tinha dotação especial; em 1879, deduziram-lhe outros 25%. Finalmente, procurava-se como raridade, o escravo alforriado pelo fundo de emancipação.




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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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