sexta-feira, 17 de novembro de 2023

A Montanha Mágica - Hans Castorp faz uma tentativa de conversação em francês

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo IV

Hans Castorp faz uma tentativa de conversação em francês 

   Não, absolutamente não se aclimatara ainda, nem no que se referia ao conhecimento da vida no sanatório em todas as suas particularidades – conhecimento que seria impossível adquirir em tão poucos dias e (como ele dizia de si para si, e também explicou a Joachim) infelizmente não lhe seria dado adquirir tampouco em três semanas –, nem quanto à adaptação do seu organismo às condições atmosféricas tão peculiares que reinavam “aqui em cima”; pois essa adaptação lhe custava esforços, tremendos esforços, e, como lhe parecia, não estava disposta a realizar-se.
   O dia normal achava-se claramente subdividido e cuidadosamente organizado. A gente logo chegava a acompanhar-lhe o ritmo e se afazia à rotina, quando se ajustava à engrenagem. Mas, no conjunto da semana e das unidades mais vultosas do tempo, esse dia estava submetido a certas variações regulares que se apresentavam apenas pouco a pouco; uma não aparecia antes da outra já se ter repetido; e também no que dizia respeito à sucessão diária de objetos e vultos individuais, Hans Castorp tinha que aprender a cada passo, observando mais de perto as coisas que antes só olhara superficialmente, e assimilando impressões novas com receptividade juvenil. 
   Aqueles recipientes bojudos, de gargalo curto, por exemplo, que se achavam nos corredores, diante de algumas portas, e nos quais Hans Castorp reparara logo na noite da sua chegada, continham oxigênio, conforme Joachim lhe explicou, em resposta à sua pergunta. Era oxigênio puro, a seis francos o balão, e esse gás vivificante era ministrado aos agonizantes, para lhes dar um derradeiro estímulo e prolongar a duração das suas forças. Sorviam-no por meio de um tubo. Atrás das portas perto das quais se encontravam tais balões havia agonizantes, ou moribundi, como se expressou o Dr. Behrens, certo dia, quando Hans Castorp topou com ele no primeiro andar. Remando com os braços, o conselheiro áulico, de avental branco e faces azuladas, vinha atravessando o corredor, e juntos subiram a escada.

– Que tal, meu caro espectador desinteressado? – disse Behrens. – Que é que anda fazendo? Será que a gente pode esperar alguma aprovação de seu olhar crítico? Obrigado, muita honra para nós! Pois é, a nossa temporada de verão está mesmo um bocado boa. É formidável mesmo! Verdade é que não poupei dinheiro para torná-la cada vez mais brilhante. Contudo, é uma lástima que o senhor não queira passar o inverno conosco. Ouvi dizer que tenciona ficar oito semanas apenas. Como? Só três? Ora bolas, três semanas são como uma visita de médico; nem vale a pena tirar o casaco por tão pouco tempo. Bem, isso não é comigo. Mas, realmente, é uma pena que o senhor não esteja aqui durante o inverno. Olhe, a gente da alta, sabe? – disse com uma careta cômica –, a alta-roda internacional só vem a Davos no inverno. O senhor deveria mesmo ver essa turma. Seria muito instrutivo. Quando esses camaradas dão saltos de esqui, que coisa mais gozada! E ainda as damas, Deus meu! Aquelas mulheres multicores como uma ave-do-paraíso, lhe digo! E como são galantes!... Bem, está na hora de ver meu moribundus – acrescentou. – É aqui, no 27. Etapa final, compreende? Saída pelo centro. Ontem e ainda hoje se embriagou com cinco dúzias de frascos de oxigênio, esse guloso! Mas acho que até o meio-dia se recolherá ad penates... Pois então, meu caro Reuter – disse ao entrar no quarto. – Que tal se a gente emborcasse mais um?... – Fechou a porta, e as demais palavras perderam-se atrás dela. Por um instante, porém, Hans Castorp enxergara no fundo do quarto, sobre o travesseiro, o perfil de cera de um jovem de barba rala, que lentamente volvia para a porta os grandes olhos esgazeados. 

   Era o primeiro moribundo com que Hans Castorp deparava em sua vida, visto os pais e o avô terem morrido, por assim dizer, pelas suas costas. Quanta dignidade não se expressava na cabeça do jovem que ali jazia sobre o travesseiro, com a barba apontando para cima! Como era significativo o olhar que se via naqueles olhos dilatados, quando, vagarosamente, os dirigiu para a porta! Hans Castorp, ainda absorto na reminiscência daquela visão fugaz, tentou involuntariamente imitar os olhos arregalados, significativos e lentos, do moribundo, enquanto se encaminhava para a escada. Foi com esses olhos que encarou uma senhora que atrás dele abrira uma porta e o alcançou no patamar. Não reconheceu imediatamente Mme.. Chauchat. Ela esboçou um leve sorriso ao ver aqueles olhos e, segurando com a mão a trança que lhe cercava a cabeça levemente caída para a frente, desceu à sua frente pela escada, a passo elástico e silencioso.
   Durante esses primeiros dias, e mesmo muito tempo após, Hans Castorp não chegou a travar conhecimento com outras pessoas. O programa do dia, no seu conjunto, não favorecia isso. Ademais, Hans Castorp era reservado por natureza e sentia-se ali em cima no papel de um visitante e “espectador desinteressado”, como o chamara o Dr. Behrens. Bastavam-lhe amplamente a conversa e a companhia de Joachim. É verdade que aquela enfermeira do corredor espichava de tal maneira o pescoço atrás deles, cada vez que passavam por ela, que Joachim, que já em outras ocasiões lhe concedera alguns momentos de conversa, não pôde deixar de lhe apresentar o primo. Com o cordão do pincenê atrás da orelha, falava ela não somente de forma rebuscada, mas até com uma afetação penosa. Quem a examinasse mais de perto devia ter a impressão de que a tortura do tédio lhe afetara a inteligência. Era muito difícil desembaraçar-se dela, porque manifestava um medo doentio do fim da palestra, e logo que os jovens se dispunham a prosseguir no caminho, agarrava-se a eles com palavras e miradas pressurosas, e mesmo com um sorriso tão desesperado que, por misericórdia, eles se detinham outra vez. Falava prolixamente do pai, que era jurisconsulto, e do primo, que era médico, na intenção evidente de brilhar e de sublinhar o fato de se ter criado num ambiente culto. Quanto ao seu paciente, lá atrás daquela porta, era o filho de um fabricante de bonecos, de Coburgo, e chamava-se Rotbein. Recentemente, o mal atacara os intestinos do jovem Fritz, e isso era duro para todos os que se interessavam pelo caso, como “os senhores” sem dúvida compreendiam. Era especialmente duro para uma pessoa que descendia de uma família de acadêmicos e possuía a sensibilidade peculiar às classes superiores. E não se podia deixá-lo só, nem um minuto... Fazia alguns dias – era quase incrível! – voltara ela de uma saidinha (apenas fora comprar um pouco de pó dentifrício) e viera encontrar o doente sentado na cama, tendo diante de si um copo de espessa cerveja preta, um salame, um enorme pedaço de pão de centeio e um pepino. Sua família mandara-lhe todas essas especialidades da sua terra, na ideia de fortificá-lo. Claro que no dia seguinte o homem estava mais morto do que vivo. Ele mesmo precipitava o fim. Mas este significaria uma redenção somente para o jovem Fritz, e não para ela. Aproveitou a ocasião para dizer que a chamavam Irmã Berta, se bem que seu verdadeiro nome fosse Alfreda Schildknecht, e acrescentou que ela teria então de cuidar de outro doente, num estado mais ou menos avançado, naquele ou em outro sanatório. Era essa a única perspectiva que se lhe abria, e outra, infelizmente, não existia para ela.

– Pois é – disse Castorp, e observou que a profissão de uma enfermeira lhe parecia difícil, sim, mas também bastante honrosa.

– Honrosa é, indubitavelmente, mas muito difícil. 

– Bem, façamos votos pelo restabelecimento do Sr. Rotbein. – E com isso os primos trataram de se afastar. 

   Mas, nesse instante, ela voltou a agarrar-se a eles com palavras e olhares, e seus esforços de cativar a atenção dos dois jovens por mais alguns instantes ofereciam um espetáculo tão lamentável, que teria sido cruel não lhe conceder mais um pequeno prazo. 

– Ele está dormindo – disse. – Não precisa de mim. Por isso saí ao corredor, só por alguns minutos... – E começou a se queixar do Dr. Behrens e do tom que ele usava ao falar com ela, um tom por demais familiar, se se levava em conta a sua origem. Agradava-lhe muito mais o Dr. Krokowski, a quem qualificava de cheio de alma. Depois tornou a tratar do pai e do primo. Seu cérebro não produzia mais nada. Em vão se empenhava ela em reter os dois jovens por mais alguns instantes, elevando a voz subitamente até quase gritar, cada vez que faziam menção de ir adiante. Mesmo assim, finalmente lhe escaparam. Mas, algum tempo ainda, a enfermeira seguiu-os com olhares ávidos, inclinando o tronco para a frente, como se quisesse segurá-los com a força dos olhos. Depois, com um suspiro que lhe irrompeu do peito, voltou ao quarto do seu paciente. 

   A única outra pessoa que Hans Castorp chegou a conhecer nesses primeiros dias foi aquela pálida senhora enlutada, a mexicana alcunhada de “Tous-les-deux”, que ele vira no jardim. E realmente lhe aconteceu ouvir da boca dessa senhora aquela expressão lúgubre que se transformara em apelido. Mas, como já estava prevenido, conseguiu manter uma atitude correta e teve motivos para ficar satisfeito consigo próprio. Os dois primos encontraram a mexicana em frente ao portão principal, quando, após o café da manhã, encetavam o passeio matinal previsto no regulamento. Envolta num xale de lã preta, caminhava ela de joelhos dobrados, a passo longo e irrequieto. Sob o véu negro, enrolado em torno dos cabelos entremeados de fios de prata e amarrado por baixo do queixo, luzia num branco baço o rosto envelhecido, com a boca grande, marcada pelo sofrimento. Joachim, sem chapéu, como de costume, cumprimentou-a com uma mesura, à qual ela respondeu lentamente, enquanto as rugas transversais da sua testa estreita se acentuavam em virtude do esforço de olhar. Ao deparar com um rosto desconhecido, estacou e, meneando levemente a cabeça, aguardou que os dois jovens se aproximassem. Evidentemente lhe parecia necessário saber se o moço estranho lhe conhecia o caso e queria expressar-lhe o seu pesar. Joachim apresentou o primo. Por baixo da mantilha, ela estendeu a mão ao visitante, mão magra, amarelada, de veias salientes, e adornada de anéis. Continuou olhando-o, sacudindo a cabeça. Então veio o inevitável.

Tous les dê, monsieur – disse ela. – Tous les dê, vous savez...

Je le sais, madame – respondeu Hans Castorp, numa voz abafada. – Et je le regrette beaucoup

   As bolsas flácidas sob os olhos negros como azeviche eram tão grandes e tão pesadas como Hans Castorp nunca vira iguais. Um perfume suave, murcho, emanava dela. O jovem sentiu uma emoção meiga e grave invadir-lhe o coração. 

-merci – disse ela com um sotaque rangente, que se harmonizava de modo estranho com o alquebrado da sua aparência, e uma das comissuras da boca pendeu tragicamente. A seguir, tornou a esconder a mão sob a mantilha, inclinou a cabeça e pôs-se a caminhar de novo. Hans Castorp, porém, disse, enquanto prosseguiam no passeio:

– Está vendo? Tudo saiu bem. Eu soube lidar com ela. Em geral me parece que me dou bem com esse tipo de pessoas. Sei, por instinto, como tratá-las. Você não acha também? Tenho até a impressão de que, na maioria dos casos, me entendo melhor com gente triste do que com gente alegre; sabe Deus por quê! Talvez seja porque sou órfão e perdi meus pais muito cedo. Mas, quando as pessoas estão sérias e tristes e a morte entra em jogo, não me sinto propriamente deprimido nem acanhado; pelo contrário, tenho a sensação de estar no meu elemento, e em todo caso passo melhor do que num ambiente de festa barulhenta. Isso não suporto. Pensei nesses dias que é uma bobagem da parte daquelas senhoras essa coisa de terem tanto pavor da morte e de tudo o que se relaciona com ela, a ponto de se tornar preciso escondê-la e administrar o Santo Sacramento enquanto a gente está comendo. Isso é ridículo, ora bolas! Você não gosta de ver um caixão? Eu gosto, de vez em quando. Acho que um caixão é um móvel bonito, quando vazio. Mas, quando há alguém dentro, torna-se mesmo solene, a meu ver. Os enterros têm qualquer coisa de edificante. Às vezes tenho matutado que, em vez de irmos à igreja, deveríamos ir a um enterro, para nos edificar. As pessoas vestem-se com boas roupas pretas, tiram os chapéus, olham o féretro e mantêm uma atitude grave e piedosa. Ninguém se atreve a dizer piadas, como em outras circunstâncias. A mim me agrada muito ver pessoas devotas. Frequentemente já me perguntei a mim mesmo se não deveria ter-me tornado pastor. Creio que, em certo sentido, isso me ficaria bem... Tomara que eu não tenha cometido nenhum erro de francês, naquelas frases que falei com ela.

– Não – disse Joachim. – “Je le regrette beaucoup” é para lá de correto. 

continua pág 071...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Hans Castorp faz uma tentativa de conversação em francês
Politicamente suspeita!
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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