quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Ulisses - Parte 1 (3c): Uma mulher e um homem

Ulisses

James Joyce

Parte 1

3

continuando...


   Uma mulher e um homem. Eu vejo o saiote dela. Arregaçado, eu aposto.
   O cachorro deles marchava em volta de um banco reduzido de areia, trotando, farejando para todos os lados. Procurando alguma coisa perdida em tempos idos. De repente ele fugiu como uma lebre saltitante, as orelhas jogadas para trás, caçando uma gaivota em voo rasante. O assobio estridente do homem atingiu suas orelhas flácidas. Ele se voltou, saltou para trás, se aproximou, trotando com suas pernas reluzentes. Num campo alaranjado um cervo, saltitante, de cor adequada, desprovido de chifres. Na orla rendada da maré ele se deteve, com as patas da frente enrijecidas e as orelhas apontando para o mar. O focinho erguido ele ladrou para o tumulto das ondas e para os bandos de vacas-marinhas. Elas serpentearam em direção a seus pés, se encrespando, desfraldando crista por crista, toda nona, quebrando, salpicando, vindo de longe, de bem longe, ondas e mais ondas.
   Apanhadores-de-conchas. Eles andaram um pouco na água e, se inclinando, encharcaram suas sacolas e as erguendo novamente saíram da água. O cão ganiu correndo para eles, se ergueu e pôs as patas neles, caindo sobre as quatro patas, as ergueu novamente até eles com um mudo afago rude. Ignorado, permaneceu junto deles enquanto eles se dirigiam para a areia mais seca, com um frangalho de língua rapace vermelho-ofegante pendendo de suas mandíbulas. Seu corpo sarapintado caminhava à frente deles e então deu longos passos num galope de bezerro. A carcaça se encontrava em seu caminho. Ele parou, farejou, rastejou em volta dela, irmão, esfregando o focinho mais perto, andou à sua volta, fungando rapidamente como um cão por cima de todo o couro enlameado do cão morto. Crâniocanino, fungadacanina, olhos no chão, ele se dirige para um grande alvo. Ah, pobre corpodecão! Aqui jaz o pobre corpo do corpodecão.

– Andrajos! Cai fora, seu vira-lata!

   O grito o trouxe esquivo de volta para o seu dono e o pontapé violento de um pé descalço o lançou em fuga, servilmente agachado mas incólume através de um banco de areia. Ele se moveu de volta furtivamente fazendo uma curva. Não me vê. Ao longo da borda do quebra-mar ele saltou, zaranzou, cheirou uma rocha e empinando a perna traseira urinou nela. Saiu trotando em frente e levantando novamente a perna traseira urinou agora um pouco e rápido numa rocha não cheirada. Os prazeres simples dos pobres. Suas patas traseiras espalharam então a areia: em seguida suas patas dianteiras salpicaram areia e esgravataram. Alguma coisa ele enterrou ali, sua avó. Ele fuçou a areia, chapinhando, esgravatando e parou para escutar o vento, cavou de novo a areia com a fúria de suas garras, cessando logo, um leopardo, uma pantera, nascida do adultério, rapinando os mortos. 
   Depois que ele me acordou ontem à noite foi o mesmo sonho ou não foi? Espere. Abra a porta da entrada. Rua das meretrizes. Lembre-se. Haroun al Raschid. Eu estou quasindo isso. Aquele homem me levou, falou. Eu não estava com medo. O melão que ele segurava ele o encostou no meu rosto. Sorriu: cheiro de frutacremosa. Era essa a regra, disse. Entre. Venha. Tapete vermelho estendido. Você vai ver quem. 
   Com os sacos nos ombros eles se arrastavam, os ciganos. Os pés azulados dele saindo das calças arregaçadas batiam na areia pegajosa, um cachecol cor de tijolo escuro sufocava seu pescoço barbudo. Com passos de mulher ela seguia: o rufião e sua perambulante rameira. Pilhagem suspensa nas costas dela. Areia fofa e grãos de concha se incrustavam nos seus pés descalços. Seus cabelos caíam sobre sua face castigada pelo vento. Atrás do seu senhor, a companheira dele, vão embora para Londres. Quando a noite esconde os defeitos do seu corpo, envolta em seu xale marrom, atraindo para debaixo da arcada onde cães fizeram suas sujeiras. Seu cáften está negociando com dois fuzileiros da Royal Dublin no bordel O’Loughlin de Blackpitts. Beijem-na, façam amor com ela, digam-lhe coisas bonitas, pois, Ó, ela é minha bonita e encantadora garota! Uma brancura demoníaca sob seus trapos rançosos. A ruela de Fumbally aquela noite: os odores do curtume.

Brancas as tuas mãos, rubra a tua boca 
O teu corpo é tão belo e tão delicado. 
Deita e dorme então comigo. 
No beijo da noite, no abraço apertado. 

   O que o barrigudo Aquino, frate porcospino, chama de deleitamento soturno. Antes da queda Adão copulava mas não gozava. Deixe ele então gritar: teu corpo é tão delicado. Linguagem nem um pouquinho pior do que a dele. Palavras de monge, contas-de-rosário que tagarelam sobre suas cinturas: palavrasenganadoras, pepitas duras tamborilam em seus bolsos.
   Passando agora.
   Um olhar de soslaio para o meu chapéu à Hamlet. Se eu estivesse de repente nu sentado aqui? Eu não estou. Através das areias do mundo inteiro, seguida pela espada flamejante do sol, ela migra, em direção a oeste, para as terras da noite. Ela arrasta, schleppa, traina, reboca, trascina sua carga. Uma maré que se estende para oeste atraída pela lua em seu rastro. Marés nela, com miríades de ilhas, sangue que não é o meu, oinopa ponton, um mar escuro como vinho. Contemple a serva da lua. No sono o sinal líquido lhe indica a sua hora, ordena que ela se levante. Leito nupcial, leito de parto, leito de morte, de velas espectrais. Omnis caro ad te veniet. Ele vem, o pálido vampiro, através da tempestade seus olhos, suas asas de morcego ensanguentando o mar, boca para o beijo da boca feminina.
   Aqui. Anote isso, cara, está bem? Minhas tabuletas. Boca para o beijo dela. Não. É preciso duas delas. Que fiquem bem coladas. Boca para o beijo da boca feminina.
   Os lábios dele tocaram e abocanharam os lábios descarnados do ar: a boca no ventre dela. ’entre, tumba que tudo entranha. A boca dele moldou o sopro que emanava, sem fala: ooiihaha:   rugido   de planetas   diluvianos,   englobados,   chamejantes,   rugindo   longelongelongelongelonge. Papel. As notas bancárias, raios as partam. A carta do velho Deasy. Aqui. Obrigado pela hospitalidade rasgue fora o final em branco. Virando as costas para o sol ele se inclinou sobre uma mesa de rocha e escrevinhou palavras. Esta já foi a segunda vez que eu esqueci de pegar papeletas no balcão da biblioteca.
   Sua sombra repousava sobre as rochas quando ele se inclinou, terminando. Por que não infindável até a estrela a mais distante? Elas estão ali sombrias por trás desta luz, escuridão brilhando na claridade, delta de Cassiopéia, mundos. Eu estar sentado ali com minha bengala como varinha de condão, de sandálias emprestadas, de dia, despercebido, ao lado de um mar lívido, na noite violeta caminhando sob o domínio de estrelas misteriosas. Eu me desfaço desta minha sombra circunscrita, forma humana inelutável e a chamo de volta. Interminável, seria minha, forma de minha forma? Quem me observa aqui? Quem jamais em algum lugar lerá estas palavras escritas? Sinais em um campo branco. Em algum lugar para alguém em sua voz a mais flautada. O bom bispo de Cloyne retirou o véu do templo de seu chapéu eclesiástico: véu do espaço com emblemas coloridos sombreados sobre a sua matéria. Segure firme. Colorido sobre uma superfície plana: sim, está certo. A superfície plana eu vejo, então pense em distância, perto, longe, o plano eu vejo, leste, atrás. Ah, veja agora! Cai para trás subitamente, rígido em estereoscópio. Um clique opera o truque. Você acha minhas palavras obscuras. A escuridão está em nossas almas você não acha? Mais aflautado. Nossas almas, feridas pela vergonha de nossos pecados se aferram ainda mais a nós, uma mulher se apega ao seu amante, mais e mais.
   Ela confia em mim, sua mão suave, seus olhos de cílios longos. Agora com todos os diabos aonde eu a estou levando para além do véu? Para a modalidade inelutável da visualidade inelutável. Ela, ela, ela. Que ela? A virgem na vitrine de Hodges Figgis na segunda-feira procurando os livros de abecedário que você ia escrever. Você lançou a ela um olhar agudo. O pulso através da alça trançada da sombrinha dela. Ela vive no parque Leeson de desgosto e guloseimas, uma dama letrada. Conte isso para outro, Stevie: uma mulher fácil. Aposto que ela usa aquela praga de Deus de espartilho com ligas e meias compridas amarelas cerzidas bojudas de cerzido. Fale com ela sobre bolinhos de maçã, piuttosto. Onde é que está a sua esperteza?
   Me acaricie. Olhos meigos. Mão macia macia macia. Eu estou sozinho aqui. Ó, me acaricie logo, agora. Qual é aquela palavra conhecida de todos os homens? Eu estou aqui quieto só. Triste também. Toque em mim, me acaricie.
   Ele se deitou com o corpo estendido sobre as rochas pontiagudas, socando a nota escrevinhada e o lápis dentro do bolso, com seu chapéu cobrindo os olhos. Esse movimento que eu fiz é o mesmo de Kevin Egan, cabeceando para a sua soneca, na sesta de domingo. Et vidit Deus. Et erant valde bona. Halô! Bonjour. Seja bem-vindo como as flores em maio. Sob a aba do chapéu ele observou o sol que avançava para o sul através de seus cílios palpitantes de lúnulas. Eu estou preso nesta cena ardente. A hora de Pan, o meio-dia do fauno. Entre as plantasserpentes pesadas de goma, frutos gotejantes-de-leite, em cujas águas fulvas folhas se estendem amplamente. O sofrimento está longe.
E basta de virar para o lado e meditar
   Seu olhar se perdeu em suas botas de largosartelhos, os refugos de um cervo, nebeneinander. Ele contou as pregas do couro vincado em que o pé de um outro se aninhara aquecido. O pé que batera no chão em ritmo de tripudium, pé que eu desamo. Mas você ficou encantado quando seu pé entrou no sapato de Esther Osvalt: moça que eu conheci em Paris. Tiens, quel petit pied! Amigo fiel, uma alma irmã: amor de Wilde que não ousa dizer seu nome. O braço dele: o braço de Cranly. Ele agora vai me abandonar. E a culpa de quem? Sou como sou. Como sou. Ou tudo ou nada. 
   Em longas laçadas vindas do lago Cock a água fluía copiosa, cobrindo de areia as lagoas verdedouradas, se elevando, jorrando. Minha bengala vai flutuar para longe. Eu vou esperar. Não, a água vai continuar passando, passando, se esfregando de encontro às rochas baixas, rodopiando, passando. É melhor terminar com este negócio rápido. Ouça: a linguagem de quatropalavras da onda: siisu, hrss, rsseeiss, uuus. Sopro veemente das águas entre serpentesmarinhas, cavalos corcoveantes, rochas. Nas cavidades das rochas ela salpica: sacode, salpica, bate: ricocheteando em tonéis. E, exausta, sua fala se extingue. Ela reflui, fluindo amplamente, poça-de-espuma flutuante, flor desabrochante.
   Sob a maré que se ergue inflada ele viu as algas contorcidas se elevarem languidamente e balançarem os braços relutantes, erguendo seus saiotes, balançando e revirando suas tímidas copas prateadas na água sussurrante. Dia após dia: noite após noite: se ergueram, jorraram e se deixaram cair. Céus, elas estão cansadas e quando alguma coisa lhes é cochichada elas suspiram. Santo Ambrósio ouviu o suspiro das folhas e ondas, esperando, aguardando a plenitude de seus dias, diebus ac noctibus iniurias patiens ingemiscit. Reunidas sem nenhuma finalidade; em vão em seguida libertadas, jorrando para a frente, recuando para trás: tecelagem da lua. Também cansada aos olhos dos amantes, dos homens lascivos, uma mulher nua brilhando em sua corte, ela retira das águas um trabalho árduo para si.
   Cinco braças ali. Umas boas cinco braças abaixo teu pai repousa. Ele disse: à uma hora. Encontrado afogado. Maré alta na barra de Dublin. Arrastando à sua frente um monte solto de detritos, um leque de cardume de peixes, de conchas disparatadas. Um cadáver branco de sal se erguendo na ressaca, um boto balançando passo a passo em direção à terra. Lá está ele. Enganche-o rápido. Puxe. Por mais afundado que ele esteja sob o solo da água. Nós o temos. Devagar agora.
   Saco de gás cadavérico ensopado em salmoura infecta. Uma trepidação de barrigudinhos, gordura de um petisco esponjoso, jorra através das fendas da braguilha abotoada de sua calça. Deus se torna homem se torna peixe se torna bernaca se torna montanha de leito-de-penas. Sopros mortais eu respiro vivo, piso em pó morto, devoro os restos urinosos de todos os mortos. Arrastado rígido sobre a amurada ele exala para cima o odor fétido de sua sepultura verde, o orifício leproso de seu nariz ressonando para o sol.
   Uma mudança do mar esta, olhos marrons azulados de sal. Morte no mar, a mais suave de todas as mortes conhecidas do homem. Velho Pai Oceano. Prix de Paris: cuidado com imitações. Faça você mesmo simplesmente um julgamento justo. Nós nos divertimos imensamente.
   Vamos. Estou com sede. O céu está se cobrindo de nuvens. Nenhuma nuvem escura em parte alguma, será que há? Trovão de tempestade. Todoesplendoroso ele cai, o clarão orgulhoso do intelecto, Lucifer, dico, qui nescit occasum. Não. Meu chapéu de bico, meu bastão e delemeus sapatos assandalhados. Onde? Para terras noturnas. A noite vai se encontrar a si mesma.
   Ele pegou o cabo de sua bengala, dando uma estocada com ela, brincando parado com ela. É isso aí, a noite vai se encontrar em mim, sem mim. Todos os dias completam o seu fim. Por falar nisso o próximo quando será. Terça-feira será o dia mais longo. De todo este ano novo feliz, mamãe, rataplan, plan, plan. Lawn Tennyson, cavalheiro poeta. Già. Para a velha megera de dentes amarelos. E monsieur Drumont, cavalheiro jornalista. Già. Meus dentes estão bem ruinzinhos. Por quê, eu me pergunto. Sinta. Este também se vai. Conchas. Eu me pergunto, será que eu devo ir ao dentista com este dinheiro? Aquele. Este. Kinch desdentado, o super-homem. Por que isso, eu me pergunto, ou talvez queira dizer alguma coisa?
   Meu lenço. Ele o atirou. Eu me lembro. Eu não o apanhei?
   Sua mão apalpou em vão os seus bolsos. Não, eu não apanhei. Melhor comprar um.
   Ele colocou, cuidadosamente, a meleca seca que tirou de sua narina numa saliência da rocha. Quanto ao resto, quem quiser que veja.
   Atrás. Talvez haja alguém.
   Ele virou o rosto por sobre o ombro, olhando para trás. Movendo-se através do ar vergas elevadas de três mastros, com suas velas enfunadas nos vaus reais, um navio silencioso voltava para casa, corrente acima, movendo-se silenciosamente.

continua na página 57...
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Ulisses - Parte 1 (3c): Uma mulher e um homem
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

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