sexta-feira, 17 de novembro de 2023

João Ubaldo Ribeiro - Política: Ditaduras

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


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Ditaduras


   A linha limítrofe entre as democracias e as ditaduras é muito imprecisa, até porque, como já vimos, a maior parte dos Estados tende a autodenominar-se democrático, ou pelo menos declarar-se a caminho da democracia. Dificilmente o governante autocrata de um regime ditatorial chama a si mesmo de ditador, ou permite que o chamem assim. Contudo, se voltarmos à ideia de uma escala medidora de democracias, podemos imaginar que, se do lado direito (“lado direito”, aqui, não tem nada a ver com esquerda e direita políticas) da escala estaria a democracia integral, à medida que nos formos aproximando do lado esquerdo estaremos cada vez mais próximos da ditadura.

   Para o lado direito, progressivamente, vamos encontrando mecanismos de participação popular, de controle dos governantes, de garantias e liberdades individuais e assim por diante. Para o lado esquerdo, esses aspectos vão desaparecendo e dando lugar a outros, tais como a concentração de atribuições numa só pessoa ou numa só instituição, a ausência de liberdade de opinião e pensamento, a hegemonia absoluta do Estado e assim por diante.

   De modo geral, portanto, podemos dizer que a ditadura se caracteriza não só pela sua visível unilateralidade (as decisões vêm “de cima para baixo” e são impostas aos governados), como pelo fechamento do processo decisório público. Não é necessário que haja a figura de um só ditador para que um sistema desse tipo se caracterize, pois a ditadura está na própria natureza do regime, independentemente de quem se encontre no comando em determinado instante. De novo, aqueles indícios que foram estudados como auxiliares para diagnosticarmos uma democracia, no capítulo anterior, podem ser empregados, observadas as mesmas restrições, para as ditaduras, não sendo necessário repeti-los.

   Como a ditadura, por índole, não admite contestação, o caráter repressivo desse tipo de sistema é óbvio. Suas leis são habitualmente muito severas quanto à dissidência, e o crime mais sério é o de contestar o Estado de alguma forma, o que pode ser rotulado de alta traição ou subversão, embora muitas vezes se trate de um ato rotineiro em países democráticos e perfeitamente louvável, em termos éticos, humanos ou morais. Já que o controle geral da informação (ou seja, daquilo que é dado conhecer aos cidadãos) está nas mãos do Estado, essa atividade repressiva se torna ainda mais fácil, sendo também complementada por mecanismos de persuasão, pressão e propaganda. Os Estados totalitários vão mais além, estendendo suas malhas sobre toda a vida do cidadão, organizando sua estrutura familiar, dirigindo-lhe estritamente a educação e a formação intelectual, orientando suas atividades de trabalho e lazer, criando formas de servir e desenvolver a ideologia oficial e assim por diante.

   Não se deve pensar de forma simplista sobre as ditaduras, achando que o povo submetido a ela estará sempre revoltado e pronto para, na primeira oportunidade, derrubá-la. Se fosse assim, não haveria fortes movimentos populares em favor da restauração da ditadura em países que se redemocratizaram. Isto se deve a uma série de fatores, que podemos englobar sob a designação geral de “legitimação das ditaduras”, isto é, mecanismos através dos quais ela adquire raízes entre o povo e passa mesmo a receber apoio decidido de grande parte dele.

   Em primeiro lugar, a preferência pela democracia não é tão universal quanto gostaríamos de supor. Há mesmo povos que, em vários momentos de sua história, se inclinaram pelos chamados governos fortes porque viram neles uma tábua de salvação para evitar a instabilidade e a insegurança. Isto, de certa maneira, ocorreu na Alemanha em fins da década de 1920 e durante a década de 1930, com a ascensão do nazismo, que eclodiu em momento de grande inquietação social, econômica e política. A liberdade passa a ser vista, em casos como esse, como um valor bastante secundário, diante de outros, considerados mais prementes.

   Além disso, para certos temperamentos políticos e certas maneiras de pensar, a democracia é um sistema excessivamente imperfeito, trabalhoso, prejudicial ao bom andamento da administração pública. Afinal, de que é que o povo entende? O povo, de modo geral, é ignorante, preguiçoso, sem visão histórica, busca apenas vantagens individuais, quando pode. Portanto o governo deve ser deixado às elites, pois elas são mesmo melhores do que o comum dos mortais e sabem perfeitamente o que estão fazendo. Se sabem, para que deixar que uma porção de deputados, parlamentares em geral, líderes populares, representantes de bairros ou categorias e gente assim fique metendo a colher e atrapalhando decisões que “está na cara” que são acertadas? Por que permitir a dissidência, que só vai render perturbações da ordem, impedindo o caminho do país para o progresso e a estabilidade? Algumas pessoas são de fato melhores do que as outras em todos os sentidos, e a esses melhores devem ser entregues os destinos coletivos. Para não falar em “grandes homens”, que encarnam em si as aspirações populares. Ao povo, dê-se comida, casa e diversão na medida do possível, que estaremos em paz.

   Infelizmente, esta maneira de ver as coisas, que não resiste a uma discussão minimamente esclarecida, é com frequência legitimada por aqueles a quem mais prejudica, ou seja, os oprimidos, que não percebem a total abdicação da dignidade humana por parte de quem prefere ser tratado quase como um animal de criação ou de estimação, sem direito a aspirar à autonomia de pensamento, desejando apenas ser alimentado confortavelmente e agradado de vez em quando, pois em troca disto está disposto a servir e colaborar.

   A feia realidade da ditadura é que, mais cedo ou mais tarde (pois não existem grandes homens naquele sentido quase sobrenatural), ela se desmascara como o meio pelo qual um grupo preserva seus privilégios e sua dominação e utiliza o Estado para seus próprios objetivos, fazendo do povo somente massa de manobra. Se assim não fosse, é claro que as ditaduras não cairiam mais cedo ou mais tarde, vítimas dessas e de outras contradições — e a contradição principal é entre o que ela é e o que ela diz que é.

   A ditadura também se legitima através da exploração dos potenciais mais mesquinhos ou mais vulneráveis do ser humano, daquilo que ele tem de mais suscetível à pressão. Como alternativa para a ditadura, ela oferece o medo, ela desenvolve o medo nos cidadãos: medo de que o futuro não seja tão previsível quanto sob um regime forte, medo da mudança, medo dos fantasmas que surgiriam quando a “proteção” fosse suspensa, medo de assumir a responsabilidade pelo próprio destino. Há muitas maneiras de explorar esses medos, muitas capas sob as quais a exploração se esconde, várias delas tão eficazes que nem se percebe o que está por baixo.

   E existem também “estímulos positivos” nas ditaduras, em contraposição aos “estímulos negativos” baseados no medo e na insegurança, cujo espectro é sempre agitado diante do povo. Esses estímulos positivos são criados através da falsificação da história e da elaboração de uma verdadeira mitologia. Por exemplo, um povo pode ser convencido (e tornar-se envaidecido e entusiástico) de que é superior aos outros, de que sua raça e cultura são os píncaros mais altos já atingidos pela humanidade. O ditador, porque lidera aquele povo, é a suprema encarnação dessa superioridade. Além disso, sua figura é mostrada como super-humana: ele não pensa em si, só pensa no seu povo; está acima das fraquezas humanas, é capaz de trabalhar como ninguém trabalha, é mais inteligente e hábil do que qualquer outro, tem força magnética no olhar, tem memória fotográfica, tem cultura enciclopédica, tem carisma, é duro porém bondoso, é um verdadeiro pai para seu povo, sua coragem é inexcedível, entregou sua vida à pátria — e uma série de outras baboseiras do mesmo quilate, que hipertrofiam o inegável talento de um homem que chegou à posição dele e disfarçam o fato de que ele e sua camarilha mandam e os outros obedecem até a morte, não se permitindo a menor transgressão à ordem estabelecida.

   A história é falsificada ou distorcida, para “provar” os fundamentos teóricos do sistema ou até para justificar atrocidades e perseguições. “Demonstra-se”, com uma série de argumentos tendenciosos, que as grandes civilizações entraram em decadência ou caíram quando permitiram que não houvesse mais governos fortes ou quando traíram seus “grandes homens”. Em consequência, o mesmo destino sombrio ameaça o povo, se não houver um governo forte.

   tino sombrio ameaça o povo, se não houver um governo forte. “Prova-se” que a característica mais importante, um dos valores mais altos de um povo, é a disciplina (pseudônimo de obediência cega), que sem disciplina estrita nada pode ser feito. “Mostra-se” como a participação de todos nas decisões é na realidade um sintoma de fraqueza, constituindo-se ao mesmo tempo em causa da fraqueza, pois, afinal, as grandes potências caem quando se permite à ralé alguma voz. Exalta-se a humildade (leia-se subserviência), o trabalho duro do campo e da fábrica, pois, na verdade, os ditadores são gente simples que, não fossem seus deveres para com o país, prefeririam estar nos campos e nas fábricas em vez de em seus palácios, entregando suas vidas abnegadamente à grandeza nacional. Dá-se mais valor ao esporte e ao vigor físico do que ao vigor intelectual, pois a tarefa de pensar cabe à elite, que entrega ao povo tudo já pensado e digerido, sem o perigo das distorções advindas do pensamento independente. As religiões são deturpadas, usadas apenas naquilo em que fortalecem o regime, execradas naquilo em que, por essência, o contestam. E por aí vamos, num rosário conhecido e, com variações aqui e ali, presente em todas as ditaduras.

   Há casos também, como aconteceu em grande parte da América Latina, em que as ditaduras não eram tão desenvolvidas. Não era necessário que assim fosse, dado o atraso e miséria dos países em que se implantavam. Aí a opressão apresentava uma cara ainda mais cruel, entre o analfabetismo, a doença, a privação e a fome, contrastada com a extraordinária opulência de alguns poucos. Alguns Estados da América Central eram, até bem pouco tempo, verdadeiras fazendas particulares, em que poucas famílias e seus aderentes e asseclas dominavam toda a economia, e a maior parte do povo permanecia em servidão, pobreza e falta de horizontes.

   Ao contrário de demonstrar que as ditaduras têm naturezas diversas entre si, isto mostra que são da mesma natureza. Apenas, em contextos desenvolvidos, elas necessitam de um aparato mais sofisticado. Onde não existe tal necessidade, ela aparece, de pronto, tal como é: a dominação implacável de alguns homens sobre muitos outros, dos valores mais vis da vida humana sobre os mais nobres, da exploração e espoliação sobre a convivência ética e construtiva.

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1 Num país qualquer, um homem pobre vivia na propriedade de um homem rico. Trabalhando o dia inteiro, em troca de algumas propinas, de um quarto para morar, de roupas e sapatos usados e de outras demonstrações eventuais de generosidade por parte do proprietário, esse homem, devido a alterações políticas em seu país, teve que empregar-se, pois o novo sistema não mais permitia a situação em que vivia. Assim, foi obrigado a procurar trabalho remunerado fixamente, a construir sua casa, a assumir, enfim, sua própria vida. Esse homem hoje se queixa de que preferia o sistema antigo, pois “o patrão era bom e cuidava de tudo”. Isto significa que o antigo sistema era realmente melhor?

2 “É insuportável a ousadia dessa gentinha, depois que instalaram a democracia — não há mais respeito, não há mais bons empregados.” Comente, criando, se quiser, os detalhes que parecerem necessários. 

3 Um determinado país é governado por uma “junta permanente”, composta de 12 membros vitalícios, que tem a última palavra sobre todas as questões públicas, podendo, inclusive, alterar leis e sentenças judiciais. Entretanto, a junta alega que seu regime não é uma ditadura, já que ela é um órgão colegiado, que decide por maioria de votos e é representativo dos diversos setores da nação. Comente. 

4 Sabendo o que você sabe sobre ditaduras, você poderia tentar classificá-las de alguma forma, ou seja, listar tipos de ditadura?

5 “Quando a democracia está ameaçada, o remédio é mais democracia.” Comente ou discorde. 

6 O fato inegável de que algumas pessoas são mais bem-dotadas do que outras justifica as ditaduras?

7 Qual é mais importante, a segurança ou a liberdade? Uma coisa lhe parece incompatível com a outra? 

8 Diz-se que, na Itália do tempo de Mussolini, não havia liberdade, mas os trens andavam no horário. Que é que você acha disso? 

9 Você acredita na possibilidade de uma “ditadura benevolente”?  


continua na página 073...
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João Ubaldo Ribeiro - Política: Ditaduras

João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".
João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.
João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.
Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.
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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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Revisão
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Catalogação-na-fonte S
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

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