quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Marcel Proust - A Prisioneira (O Sr. de Charlus)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira


continuando...


O Sr. de Charlus achara com razão a frase bem vulgar para uma pessoa de quem contava fazer sua quase nora; mas, como gostava de constranger e se embriagava com a própria cólera, em vez de dizer simplesmente a Morel que desse à moça uma lição de boas maneiras, todo o regresso passou-se em cenas violentas. No tom mais insolente, mais orgulhoso:

- O toque, pelo visto, não é forçosamente aliado ao "tato"; e portanto impediu em você o desenvolvimento normal do olfato, já que tolerou que essa expressão fétida de pagar o chá, a quinze cêntimos suponho, venha trazer-me às régias narinas o seu odor de dejetos! Quando, em minha casa, terminou um solo de violino, alguma vez viu que o recompensavam com um peido em vez de um aplauso frenético, ou com um silêncio ainda mas eloquente, pois é feito do medo de não poder reter, não aquilo com que sua noiva nos prodigalizou, mas o soluço que lhe sobe aos lábios?

Quando um funcionário se vê infligido de tais censuras pelo seu chefe, invariavelmente é demitido no dia seguinte. Ao contrário, nada teria sido mais cruel ao Sr. de Charlus do que despedir Morel e, receando mesmo ter ido um pouco longe demais, pôs-se a fazer, sobre a moça, elogios minuciosos, cheios de gosto, involuntariamente semeados de impertinências.

- Ela é encantadora. Como você é músico, penso que ela o seduziu pela voz, que é muito linda nas notas altas, onde parece esperar o acompanhamento do seu si sustenido. Seu registro grave me agrada menos, e isto deve relacionar-se com o triplo recomeçar do pescoço estranho e fino, que parece terminar mas continua a subir; nela, em vez de detalhes medíocres, o que me agrada é antes a silhueta. E, como ela é costureira e deve saber lidar com tesouras, é necessário que me dê um belo corte de si mesma em papel.

Charlie pouca atenção dera a esses elogios, tanto mais que celebravam qualidades que sempre lhe haviam escapado em sua noiva. Porém respondeu ao Sr. de Charlus: 

- Está entendido, meu benzinho, eu lhe passarei um sabão para que não fale mais desse jeito. - 

Se Morel dizia assim "meu benzinho" ao Sr. de Charlus, não é que ignorasse que mal teria um terço da idade do barão. Também não dizia como o teria feito Jupien, mas com aquela simplicidade que, em certas relações, postula que a supressão da diferença de idade tacitamente precedeu a ternura. A ternura fingida em Morel, a ternura sincera em outros. Assim, por aquela época, o Sr. de Charlus recebeu uma carta concebida nestes termos: "Meu caro Palamede, quando te verei? Estou muito aborrecido com tua ausência e penso muito em ti etc. Todo teu, PIERRE."

O Sr. de Charlus quebrou a cabeça para descobrir quem era, dentre os parentes, que se permitia escrever-lhe com tanta familiaridade, e que devia por consequência conhecê-lo bem, e do qual, apesar de tudo, não reconhecia a escrita. Todos os príncipes a quem o Almanaque de Gotha dedica umas poucas linhas desfilaram por alguns dias na cabeça do Sr. de Charlus. Por fim, bruscamente, um endereço escrito no verso do envelope o esclareceu: o autor da carta era um moço de recados de um clube de jogo aonde o Sr. de Charlus ia às vezes. Esse rapaz não se julgara impolido ao escrever naquele tom ao Sr. de Charlus, que, ao contrário, gozava de grande prestígio a seus olhos. Mas imaginava não ser gentil não tratar por tu a uma pessoa que o havia beijado várias vezes e que, desse modo- pensava ele em sua ingenuidade-, dera-lhe a sua afeição. No fundo, o Sr. de Charlus ficou deslumbrado com aquela familiaridade. Chegou até a acompanhar o Sr. de Vaugoubert a casa, certo dia, para poder lhe mostrar a carta. E, no entanto, Deus sabe como o Sr. de Charlus não gostava de sair com o Sr. de Vaugoubert. Pois este, de monóculo no olho, contemplava de todos os lados os rapazes que passavam. Mais ainda: liberando-se quando estava com o Sr. de Charlus, fazia uso de uma linguagem que o barão detestava. Punha todos os nomes de homem no feminino e, como era muito imbecil, julgava esse gracejo bastante espirituoso e não deixava de rir às gargalhadas. Como, a par disso, era enormemente apegado a seu posto diplomático, os modos zombeteiros e deploráveis que ostentava na rua eram interrompidos constantemente pelo susto que lhe causava no mesmo momento a passagem de pessoas da sociedade, mas sobretudo de funcionários.  

- Esta pequena telegrafista - dizia, cutucando o barão carrancudo-, já me dei bem com ela, mas a velhaca resolveu mudar de vida! Oh! aquele entregador das Galerias Lafayette, que maravilha! Meus Deus, aí vem passando o diretor dos Assuntos Comerciais. Tomara que não tenha notado o meu gesto! Seria capaz de falar nisso ao ministro, que me poria em disponibilidade, tanto mais que também é "uma".-

O Sr. de Charlus explodia de raiva. Enfim, para abreviar aquele passeio que o exasperava, resolveu mostrar a carta e pedir ao embaixador que a lesse, mas recomendou-lhe descrição, pois fingia que Charlie estivesse com ciúmes, a fim de poder fazer crer que era amado. 

- Ora - acrescentou, com um impagável ar de bondade -, devemos sempre tentar causar o mínimo possível de sofrimento aos outros.

Antes de retornar à loja de Jupien, o autor faz questão de dizer o quanto ficaria entristecido se o leitor se melindrasse com cenas tão estranhas. Por um lado (e é a menor parte da coisa), julgam que a aristocracia parece, proporcionalmente, neste livro, mais acusada de degenerescência que as outras classes sociais. Mesmo que assim fosse, não seria de admirar. As mais antigas famílias acabam por confessar, num nariz grosso e vermelho, num queixo deformado, sinais específicos em que todos admiram a "raça". Mas, em meio aos traços persistentes e sem cessar agravados, há os que não são visíveis, e estes são as tendências e os gostos.

Uma objeção mais grave, se tivesse fundamento, seria dizer que tudo isso nos é estranho e que é preciso extrair poesia da verdade bem próxima. A arte extraída do real mais familiar existe de fato e seu domínio é talvez o maior. Mas não é menos verdade que um grande interesse, por vezes a beleza, pode nascer de ações decorrentes de uma forma de espírito de tal modo distanciada de tudo o que sentimos, de tudo em que acreditamos, que nem sequer podemos chegar a compreende-las, e elas se apresentam diante de nós como um espetáculo sem motivo. Que existe de mais poético do que Xerxes, filho de Dario, mandando açoitar as águas que haviam engolido seus barcos?

É certo que Morel, usando dos poderes que seus encantos lhe davam sobre a moça, transmitiu-lhe, tomando-os à sua conta, as observações do barão, pois a expressão "pagar o chá" desapareceu tão completamente da loja do coleteiro, como desaparece para sempre de um salão determinada pessoa íntima que era recebida todos os dias e com quem, por um motivo ou outro, brigou-se ou que convém ocultar e só se frequenta fora de casa. O Sr. de Charlus ficou satisfeito com a desaparição de "pagar o chá", e viu naquilo uma prova de sua ascendência sobre Morel e o apagamento da única manchinha na perfeição da moça. Por fim, como todos os da sua espécie, embora sendo sinceramente amigo de Morel e de sua quase noiva, e ardente partidário da união deles, gostava muito do poder de criar à sua vontade brigas mais ou menos inofensivas, acima e fora das quais se mantinha tão olímpico feito o seria seu irmão. 

Morel dissera ao Sr. de Charlus que amava a sobrinha de Jupien, queria desposá-la, e era doce ao barão acompanhar seu jovem amigo às visitas, em que representava o papel de futuro sogro indulgente e discreto. Nada lhe agradava mais.

Minha opinião pessoal é que "pagar o chá" vinha do próprio Morel, e que, por cegueira de amor, a jovem costureira adotara uma expressão da criatura adorada, expressão que destoava, pela feiura, na linguagem bonita da moça. Essa linguagem, as maneiras encantadoras que se harmonizavam com ela, a proteção do Sr. de Charlus, faziam com que muitos fregueses para quem ela trabalhara a recebessem como amiga, convidando-a para jantar, mesclando-a às suas relações; aliás, a mocinha só aceitava esses convites com a permissão do Sr. de Charlus e nas noites em que isto lhe convinha. "Uma costureirinha na alta sociedade?", diriam. "Que inverossimilhança!" Pensando bem, não era menos inverossímil que antigamente Albertine viesse ver-me à meia-noite, e agora vivesse comigo. E talvez fosse inverossímil com outra, de modo algum com Albertine, sem pai nem mãe, levando uma vida tão livre que, no começo, eu a tomara em Balbec pela amante de um ciclista, tendo por parente mais próximo a Sra. Bontemps que, já na casa da Sra. Swann, só admirava na sobrinha os seus maus modos e agora fechava os olhos, sobretudo se houvesse possibilidade de desembaraçar-se dela conseguindo lhe um casamento rico, no qual parte do dinheiro fosse para a tia (na mais alta sociedade, mães muito nobres e muito pobres, tendo conseguido um casamento rico para o filho, deixam-se sustentar pelo jovem casal, aceitam casacos de pele, automóveis, dinheiro de uma nora de quem não gostam e que fazem ser recebida na sociedade).

Talvez chegue um dia em que as costureiras, o que não me pareceria de modo algum chocante, freqüentem a alta sociedade. A sobrinha de Jupien, sendo uma exceção, não pode ainda deixar prevê-lo, pois uma andorinha não faz verão. Em todo caso, se a situação modestíssima da sobrinha de Jupien escandalizou algumas pessoas, não foi a Morel, pois sob certos aspectos sua estupidez era tão grande que, não só achava "burrinha" aquela moça mil vezes mais inteligente que ele, talvez apenas porque o amasse, mas também supunha serem aventureiras, sub-costureiras disfarçadas bancando damas, as pessoas muito bem relacionadas que a recebiam e de que ela não se envaidecia. Naturalmente não eram Guermantes, nem mesmo pessoas que os conhecessem, mas burguesas ricas e elegantes, de espírito bastante livre para achar que não há desonra em receber uma costureira, e de espírito bastante escravo para sentir algum contentamento em proteger uma moça que sua Alteza o barão de Charlus ia visitar todos os dias com a melhor das intenções.

Ao barão, nada lhe agradava mais que a ideia desse casamento, pois pensava que assim Morel não lhe seria roubado. Parece que a sobrinha de Jupien cometera, quase criança, uma "falta". E o Sr. de Charlus, apesar dos elogios que fizera da moça a Morel, gostaria de contar essa "falta" ao amigo, que ficaria furioso, desse modo semeando a cizânia. Pois o barão, conquanto tremendamente mau, assemelhava-se a um sem-número de pessoas bondosas que elogiam esta ou aquela criatura para provar a própria bondade, mas evitariam como ao fogo as palavras benfazejas, tão raramente pronunciadas, capazes de fazer reinar a paz. Malgrado isto, o barão se absteve de qualquer insinuação, e por dois motivos. -"Se lhe contar" dizia consigo - "que sua noiva não é imaculada, seu amor-próprio ficará ofendido, e ele vai me querer mal. E depois, quem me diz que ele não está apaixonado por ela? Se não digo nada, esse fogo de palha se extinguirá depressa, e eu hei de governar as relações deles à minha moda, ele só haverá de amá-la na medida em que eu o desejar. Se eu lhe contar a falta passada da sua prometida, quem me diz que meu Charlie não está ainda apaixonado o bastante para ficar ciumento? Então, transformarei, por minha própria culpa, um flerte sem consequência, e que se conduz como bem se quer, num grande amor, coisa difícil de governar". Por esses dois motivos, o Sr. de Charlus conservava um silêncio que apenas aparentemente era discrição, mas que, por outro lado, era meritório, pois calar-se é quase impossível às pessoas de sua espécie.

Além disso, a moça era deliciosa, e o Sr. de Charlus, em que ela satisfazia todo o gosto estético que ele podia ter pelas mulheres, estimaria possuir centenas de fotografias dela. O barão, menos imbecil que Morel, escutava com prazer o nome das senhoras elegantes que a recebiam e que seu faro social situava bem. Evitava, porém (querendo manter o império) dizê-lo a Morel, o qual, perfeito idiota no assunto, continuava a crer que, afora a "classe de violino" e os Verdurin, só existiam os Guermantes, as poucas famílias quase régias enumeradas pelo barão, o resto não passando de uma "turba". Charlie tomava ao pé da letra estas expressões do Sr. de Charlus.
  
Como é que o Sr. de Charlus, debalde esperado todos os dias do ano por tantos embaixadores e duquesas, não jantando com o príncipe de Croy porque cede-se o passo a este, como é que o Sr. de Charlus, o tempo inteiro que rouba a essas grandes damas e grãos-senhores, costuma passá-lo na casa da sobrinha de um coleteiro? Em primeiro lugar, a razão suprema: Morel ali se achava. Não estivesse ele presente, e eu não veria nenhuma inverossimilhança, ou então julguem-no como o teria feito um garçom de Aimé. Não há como os garçons de restaurante para acreditar que um homem excessivamente rico usa sempre roupas novas e deslumbrantes, e que um senhor que é o que existe de mais chique dá jantares de sessenta talheres e só comparece de auto. Enganam-se. Na maioria das vezes, um homem excessivamente rico usa o mesmo jaquetão puído. Um senhor que é o que existe de mais chique é um indivíduo que, no restaurante, só fala com os empregados e, de volta a casa, joga cartas com seus lacaios. 

Isto não impede que ele se recuse a ficar atrás do príncipe Murat. 

continua na página 20...

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