segunda-feira, 4 de março de 2024

O Apanhador no Campo de Centeio - 11 : De repente, no caminho

 O Apanhador no Campo de Centeio


J.D. Salinger


11

   De repente, no caminho para o vestíbulo, comecei a pensar novamente na Jane Gallagher. Aí não houve mais jeito de tirá-la da cabeça. Quando cheguei lá, me sentei numa poltrona caindo aos pedaços e fiquei pensando na Jane e no Stradlater, metidos na porcaria do carro do Ed Banky. Por mais certeza que tivesse de que o Stradlater não tinha conseguido nada com ela - conheço a Jane como a palma da minha mão - mesmo assim não conseguia tirar o troço da cabeça. Conhecia a Jane como a palma da minha mão, no duro. Além de jogar damas, ela gostava de esportes e, depois que ficamos amigos, passamos o verão todo juntos, jogando tênis de manhã e golfe de tarde. Chegamos mesmo a ter bastante intimidade. Não que tenha havido qualquer coisa de físico nem nada - porque não houve mesmo - mas nós passávamos o dia todo juntos. A gente não precisa entrar sempre nesse negócio de sexo para conhecer direito uma garota.
   Nós nos conhecemos por causa do cachorro dela, um Dobermann, que vinha se aliviar todo dia no nosso gramado. Minha mãe ficava danada da vida, e um dia telefonou para a mãe de Jane e fez um escândalo daqueles por causa do cachorro. Minha mãe é capaz de fazer um bruto escândalo por causa de uma besteira dessas. Aí, alguns dias depois, vi a Jane deitada de bruços na beira da piscina do clube. Cheguei e dei um olá para ela. Sabia que era nossa vizinha, mas nunca tínhamos conversado nem nada. Ela me deu um gelo tremendo no começo, e depois tive um trabalhão para convencê-la de que pouco me importava onde o cachorro dela ia se aliviar. Por mim, podia ser até na sala de visitas. De qualquer maneira, depois disso acabamos amigos e naquela mesma tarde jogamos golfe juntos. Me lembro que ela isolou oito bolas. Oito. Minha maior dificuldade foi convencê-la a pelo menos abrir os olhos na hora de dar a tacada, mas, no fim, consegui que ela fizesse progressos fabulosos. Jogo golfe muito bem. Tem gente que nem acredita quando digo qual é o meu escore normal. Uma vez, quase entrei num curta metragem sobre golfe, mas mudei de idéia no último minuto. Pensei cá comigo que uma pessoa que odeia o cinema tanto quanto eu seria um cretino se aceitasse aparecer num filme.
   A Jane era uma garota muito engraçada. Não se podia dizer que fosse propriamente bonita. Para mim era um estouro. Quando ela começava a falar sobre um troço qualquer e ficava excitada, costumava mover a boca em cinqüenta direções ao mesmo tempo, lábios e tudo. Era o máximo. E ela nunca fechava a boca completamente. Estava sempre entreaberta, principalmente quando ela se preparava para dar uma tacada ou estava lendo um livro. Lia sem parar, e bons livros. Costumava ler um bocado de poesia e tudo. Foi a única pessoa, fora de minha família, a quem mostrei a luva de beisebol do Allie, com os poemas escritos por todo o lado. Ela não chegou a conhecer o Allie nem nada, porque aquele era o primeiro verão que passava no Maine - antes disso ela costumava ir para Cape Cod - mas contei a ela uma porção de coisas sobre o Allie. Ela se interessava por esse tipo de coisa.
   Minha mãe não gostava muito dela. Achava que a Jane e a mãe dela eram metidas a besta, porque não a cumprimentavam quando se encontravam na cidadezinha. E isso acontecia a toda hora, porque a Jane também ia lá com a mãe dela num La Salle conversível, fazer compras no mercado. Minha mãe nem achava a Jane bonita. Mas eu achava. O caso é que eu gostava do jeitinho dela, só isso.
   Me lembro de uma tarde. Foi a única vez em que quase nos beijamos. Era um sábado. Eu estava na varanda da casa dela e lá fora chovia que não acabava mais. Estávamos jogando damas. De vez em quando eu gostava de mexer com ela por causa da mania de não tirar nunca as damas da última fila. Mas eu nunca tinha vontade de mexer muito com ela. Bem que eu gosto de gozar uma guria quando tenho uma chance, mas acontece um troço engraçado comigo. As garotas de quem mais gosto são aquelas que nunca me dão muita vontade de mexer com elas. De vez em quando, acho até que elas gostariam duma bobagem dessas - pra dizer a verdade, tenho certeza de que gostariam - mas é difícil começar, depois de se conhecer uma garota por algum tempo sem nunca ter dado um gozo nela. Seja lá como for, eu estava falando sobre aquela tarde quando a Jane e eu quase nos beijamos. Chovia pra diabo. Nós estávamos na varanda quando, de repente, apareceu na porta o beberrão que era casado com a mãe dela e perguntou à Jane se havia cigarros em casa. Eu mal conhecia o sujeito, mas parecia o tipo do cara que só fala com a gente se estiver precisando de alguma coisa. Era um péssimo caráter. De qualquer maneira, a Jane nem respondeu quando ele perguntou se ela sabia onde estavam os cigarros. O cara perguntou de novo, mas ela continuou calada. Nem tirou os olhos do tabuleiro. Finalmente, o sujeito voltou para dentro. Aí perguntei a ela o que é que estava havendo. Nem a mim ela respondeu. Fingiu que estava se concentrando no lance seguinte e tudo. Aí, de repente, estalou uma lágrima no tabuleiro. Foi num dos quadrados vermelhos - me lembro como se fosse agora. E ela esfregou a lágrima no tabuleiro com o dedinho. Não sei por que, mas o negócio me chateou pra caralho. Aí me levantei e me sentei ao lado dela no sofá - para falar a verdade, quase me sentei no colo dela. Aí ela começou a chorar mesmo, e só me lembro que comecei a beijá-la toda - em qualquer lugar - olhos, nariz, testa, sobrancelhas e tudo, as orelhas - o rosto todo menos a boca. Não sei como, mas ela sempre arranjava um jeitinho de não me dar a boca. De qualquer maneira, nunca mais estivemos tão perto um do outro. Pouco depois ela se levantou, entrou e voltou com um suéter vermelho e branco que eu achava o máximo. Aí fomos à porcaria dum cinema. No caminho, perguntei a ela se o tal de Cudahy - era assim que se chamava o porrista - tinha alguma vez se metido a engraçadinho com ela. Jane era muito garota, mas tinha um corpo infernal, e eu esperava qualquer coisa dum filho da mãe como aquele cara. Mas ela disse que não, e nunca pude descobrir qual era o problema. Tem garotas que a gente não consegue nunca saber qual é o problema delas.
   Também não quero dar a impressão de que ela era uma porcaria dum iceberg ou coisa parecida, só porque nunca ficamos de agarramento. Não é isso. Vivíamos o tempo todo de mãos dadas, por exemplo. Não parece grande coisa, reconheço, mas era fabuloso ficar de mãos dadas com ela. Quando estão de mãos dadas com a gente, a maioria das garotas deixam a mão morrer dentro da mão da gente, ou então acham que têm de ficar mexendo os dedos o tempo todo, como se estivessem com medo de estar chateando a gente ou coisa que o valha. Com a Jane era diferente. Nós entrávamos numa droga dum cinema e imediatamente ficávamos de mãos dadas até o filme acabar. E isso sem ficar mudando de posição, sem fazer nenhuma complicação. Com a Jane a gente nem se preocupava se a mão estava suada ou não. Só sabia uma coisa, estava feliz, no duro.
   Tem outra coisa que me lembrei agora. Quando estávamos no cinema, aquele dia, a Jane fez um troço que me deixou maluco. Estava ainda no jornal ou coisa parecida, quando, de repente, senti a mão dela no meu pescoço. Foi um gesto engraçado, esse dela. Jane era muito garota e tudo, e as moças que a gente vê pondo a mão no pescoço de alguém têm, quase todas, uns vinte e cinco ou trinta anos, e geralmente fazem isso com o marido ou um filho pequeno. Eu, por exemplo, de vez em querido faço isso com minha irmã menor, a Phoebe. Mas se uma garota é um bocado moça e faz um troço desses, é tão bonito que a gente nem sabe o que fazer.
   De qualquer jeito, era nisso que eu estava pensando, sentado naquela poltrona caindo aos pedaços, no vestíbulo do hotel. Pensando na Jane. Por pouco não ficava doido toda vez que chegava na estória dela com o Stradlater na porcaria do carro do Ed Banky. Eu sabia que ela não ia deixar o Stradlater chutar em gol, mas mesmo assim ficava furioso. Pra ser sincero, nem gosto de falar nisso.
   Não havia mais ninguém no vestíbulo. Até as louras com pinta de vigaristas já tinham sumido e, de repente, me deu uma bruta vontade de ir embora. O lugar era meio deprimente, e eu não estava cansado nem nada. Por isso, subi até o quarto e vesti o casaco. Aproveitei para dar uma olhada pela janela e ver se todos os tarados continuavam em ação, mas as luzes já estavam apagadas. Peguei o elevador outra vez, desci, chamei um táxi e disse ao chofer para me levar ao Ernie's. O Ernie's é uma buate em Greenwich Village onde meu irmão D. B. ia muito antes de ir se prostituir em Hollywood. De vez em quando me levava com ele. O Ernie é um pretão gordo que toca piano. É metidíssimo a besta e mal cumprimenta as pessoas, a não ser que seja um figurão, um cara famoso ou coisa que o valha, mas toca piano de verdade. É sério, ele é tão bom que chega quase a ser chato. É difícil de explicar, mas é isso mesmo. É claro que gosto de ouvi-lo tocar, mas, de vez em quando, dá vontade de arrebentar a porcaria do piano dele. Acho que é porque, quando está tocando, ele dá a impressão de ser o tipo do camarada que só fala com uma pessoa quando sabe que ela é um figurão.

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O Apanhador no Campo de Centeio - 12 : O táxi que tomei era velho

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