quarta-feira, 6 de março de 2024

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 7

Ópera do malandro


Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


SEGUNDO ATO

CENA 7

Entra em cena a passeata, comandada por João Alegre; Vitória caminha em direção à multidão  

VITÓRIA 
 Muito bem, minha gente, vamos todos pra casa, vamos circular que a passeata está suspensa. Estão me ouvindo? Acabou a passeata! Ei, pessoal! Não tem mais passeata! Vocês estão surdos? Não tem passeata! Não tem. . . 

A passeata atropela Vitória e segue em frente; Duran tenta socorrer Vitória mas ê arrastado; Chaves dá um tiro para o alto, em vão, e se esconde; enfim, Vitória levanta-se e vai ao proscênio 

VITÓRIA 
 Luzes! Eu pedi luzes! Suspende o espetáculo! Luzes na plateia! Ei, vocês aí em cima na técnica! Pára tudo! Acende a plateia! 

Luzes na plateia; a passeata para

VITÓRIA 
 Mas que absurdo! Que palhaçada! Eu não saí de casa pra vir aqui passar vexame! Quem é o responsável por essa bagunça? Eu vou me queixar no Jornal Nacional. Que é que vocês estão pensando? Cadê o produtor? 

DURAN/PRODUTOR 
 Estou aqui, dona Vitória, desculpe. Eu não sei como foi que isso aconteceu. A senhora está bem? 

VITÓRIA 
 Eu estou ótima, e a tua mãe? Exijo satisfações! 

DURAN/PRODUTOR 
 Pois é, essa baderna não estava no roteiro aprovado por todos nós. . . Ô, "seu" João Alegre, quer dar um pulinho aqui?

VITÓRIA 
Seu sem-vergonha! Preto safado! Filho dum cão! 

JOÃO ALEGRE 
 Sabe como é, dona? A senhora entende. . . 

VITÓRIA 
 Eu não entendo nada! 

JOÃO ALEGRE 
 A gente tá na onda do partido alto. Então, o puxador dá o mote e nego vai tirando o que pintar na mentalidade, sacou? É uma jogada que dá um pé na quadra e eu achei que no teatro ficava original. Mas não tive a intenção de ofender a madame. . . 

VITÓRIA 
 Tua intenção era me mandar daqui pro Miguel Couto! 

JOÃO ALEGRE 
 Não, madame, nunca, de jeito nenhum! Foi só um improviso, sem maldade. . . 

DURAN/PRODUTOR 
 Dona Vitória, eu não sei o que dizer. Talvez o melhor fosse a gente esquecer o incidente e recomeçar o final da peça do jeito que tava combinado. 

VITÓRIA 
 Eu, por mim, ia embora imediatamente. Só continuo aqui por respeito a esse público maravilhoso que pagou ingresso. . . Ô, você! Como é mesmo o nome do crioulo? Vamos fazer um gran finale decente, mas tem que ser igualzinho ao ensaio geral! 

JOÃO ALEGRE 
 Ah, isso não dá, não senhora. O que tá feito, tá feito. Partideiro que se respeita não volta a palavra atrás. 

PASSEATA 
 Viva! Agüenta firme! Boa, João! Salve João Alegre! 

VITÓRIA 
 Que é isso? 

DURAN 
 Tá pensando que é malandro, rapaz? 

VITÓRIA 
 Vai juntar o teu gado e recomeçar o happy end! É pra já!  

JOÃO ALEGRE 
 Vou não senhora. 

PASSEATA 
 Grande, João! É o maior! 

JOÃO ALEGRE 
 Eu também tenho um nome pra zelar. 

PASSEATA 
 É isso mesmo! Segura as pontas, João! Viva! 

DURAN/PRODUTOR 
 Você não pode fazer isso, João. Afinal, teatro é cultura! 

JOÃO ALEGRE 
 Vambora pra rua, pessoal! 

PASSEATA 
 Vamos lá! Apoiado! Já ganhou! Viva o João! 

DURAN/PRODUTOR 
 Está certo, João Alegre, você venceu. A carreira é sua e você tem todo o direito de acabar com ela. Mas primeiro tem que me acompanhar ali na administração, que é pra formalizar a rescisão do contrato. 

JOÃO ALEGRE 
 Com todo o prazer, doutor. Pessoal, eu volto já! 

DURAN/PRODUTOR 
 É uma pena. Com um futuro tão promissor. . . 

VITÓRIA 
 Podia até estourar na Broadway. . . 

DURAN/PRODUTOR 
 Ia levantar aquela verba na Funarte. . . 

VITÓRIA 
 Ainda ia ganhar o Oscar! 

(Saem Duran, Vitória e João Alegre

INTERMEZZO  Luzes gerais no palco e na plateia 

LÚCIA (Entra
 Que é que tá acontecendo, hein?  

TERESINHA 
 O autor se meteu a besta e resolveu embananar o happy end. Daí os figurantes embarcaram na palhaçada. . . 

BEN 
 Figurante é a mãe! Coadjuvante! 

TERESINHA 
 Vamos, façam alguma coisa aí vocês! Tem que entreter o público! MAX Vamos, moçada! The show must go on! 

SHIRLEY 
 Que é que eles tão querendo mais? Tô há quase três horas me esgoelando neste palco! 

JUSSARA 
 Eles tão pensando que são estrela, só porque ganham dez vezes mais que a gente. 

MIMI 
 Mas agora mixou. O João Alegre disse que, em peça dele, fodido é que fala mais alto. Diz que, em letreiro de teatro dele, fodido vai ser estrelo e estrelo vai se foder. 

GENERAL 
 Disse, pois é. Mas quero ver o que é que ele vai dizer agora que estão umedecendo a pata dele. 

SHIRLEY 
 Ele aguenta firme. Pelo João Alegre eu ponho a mão na merda. 

PHILLIP 
 Vou te contar. Enquanto artista depender de autor e produtor, tá ferrado! 

DÓRIS 
 Eu digo mais. A melhor coisa que pode acontecer pra gente, mas a melhor mesmo, coisa de sonho, coisa de Shangri-la, é ter um cara da TV Globo na plateia e chamar a gente pra novela das oito. 

JOHNNY 
 Sabe duma? Se eu fosse atacar de muamba pra valer, tava numa melhor. 

FICHINHA 
 E eu? O que tô ganhando aqui num mês, puta de verdade fatura numa noite, rodando a bolsa na Vieira Souto. Aliás, tô decidida. Vou ser puta no duro! Se alguém aí na plateia se habilita, é só passar no camarim. 

GENERAL 
 Muito me admira é o Barrabás. Como é que é, homem, se bandeou pro lado dos ricos? 

BARRABÁS 
 Te manca, General. Deixa eu me destacar aqui perto dos figurões. 

JOHNNY 
 Belo espírito de solidariedade. 

BARRABÁS 
 Daí eu pago uma lasanha na Fiorentina. 

JOHNNY 
 Ah, bom. 

GENI (Entra com duas bolsas grandes de palha
 Olá, todo mundo. 

PHILLIP 
 Ô, Genival, chegue-se aos bons! 

GENI 
 Quem é esse cara mesmo, hein? Ah, Teresinha, Lúcia, que bom encontrar vocês! PHILLIP Ô, bichona, eu falei contigo! 

GENERAL 
 Qual é, Geni? Não fala com a gente? 

GENI 
 De onde é que eu conheço esses caras mesmo? É do Retiro dos Artistas ou da TV Educativa? Mas, queridas, olha que barato essas bolsas italianas. Qualquer butique de Ipanema tá vendendo a oitocentos contos! Eu faço por quinhentos. . . 

TERESINHA 
 Ai, que graça! 

GENI 
 Tem também um soirée bem metido a antigo, ideal pra festa de entrega do prêmio Molière! 

LÚCIA 
 Esse é meu! 

 GENI 
 Olha só esses penduricalhos. . . Bem art-nouveau. . . 

 Entram Duran e Vitória.


Continua pág 138...
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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978

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Leia também:

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Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 1
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 7
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.

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