sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Esquentando(02) a chegada da Elza em Porto Alegre, 08/03/2020

Elza Soares



"Que mulher é essa Elza Soares!!! 
Sua voz rasga a alma.... tanto talento e tanta história...conseguiu tão tardiamente o que já merecia há tempos: o verdadeiro respeito e admiração do povo brasileiro, que já se enxergava nela mas não queria se ver...verdadeiro talento da favela.. bravo Elza, bravo!"





- A Carne (Negra)





A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos

A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que fez e faz história
Segurando esse país no braço
O cabra aqui não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador é lento
Mas muito bem intencionado
E esse país
Vai deixando todo mundo preto
E o cabelo esticado

Mas mesmo assim
Ainda guardo o direito
De algum antepassado da cor
Brigar sutilmente por respeito
Brigar bravamente por respeito
Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor
Brigar, brigar, brigar

A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra


Composição: Seu Jorge







- Lata D'água






- Dura na Queda






Considerada a melhor cantora do milênio pela BBC de Londres, ela nasceu em Vila Vintém (Rio de Janeiro) no dia 23 de junho de 1937. Cantora de samba com mais de dez álbuns lançados, ela foi casada com Mané Garrincha com quem teve um filho, que morreu em um acidente de carro com apenas nove anos de idade. Ela é a ilustre Elza Soares.



Provocações - Elza Soares






quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

histórias de avoinha: chegô no piano

mulheres descalças


chegô no piano
Ensaio 127Bv – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar




os dois seguia desencostado e parecia qui assim ia sê sempre, deitada pra durumí abandonada, usóio acordado pra zaranzá pra lá e cá, sem febre e sem vontade de se curá

os pecado da carne ia continuá na quietação do ânimo, ausência de guerra na mudez, só nos pensamento – único lugá sem gabação, sem rebaixamento, sem incomodação, lugá seguro de brincá –, os peito inchando na indiferença e com paciência resfriando os pano da cama, a vozeria qui faz o curação ficá divertido, interessado, manso, cuidadoso e jeitoso se perdendo no toque de recolhê pru sossego qui num fala, num faz confusão

descuidado e desapegado das paixão da vida o curação fica aborrecido, briguento, desarrumado, descuidado e deselegante


só fica no curação desarrumado da vida as vaidade da teimosia sem entendimento, num é bão vivê assim tão desmemoriado dos caminho quentinho dos pano da cama

as erva, as planta e os chá tem a sua serventia, mais num tem cura maió qui a cura pelas mão, pela voz adocicada do amô e os usóio abarrotado da rijura do tesão

às veiz, ocê fica tão sozinha qui inté faz sentido se confortá com as própria mão – muda e com medo , é um alívio de munta validade, mais é bão tê cuidado pra num tropeçá no desdém e se acomodá com o descaso entediado das mão, se deixá elas fica muntu interessada de ajudá

o curação precisa bem mais qui as própria mão, ele precisa das mão qui brinca como se estivesse escrevendo poesia, flutuando os dedo pelos rio e as curva dos monte, desenhando pequenos desenho nas virilha, queimando, afogando e se desculpando com mais desenho e verso com a língua

o curação com poesia serve a pele do corpo pras mão qui canta enquanto as parede sobe e desce exausta, feliz e abraçada


Ela gosta mais do piano do que se preparar para agarrar um marido, esse foi otro susto com as palavra  solta da sua rosinha

num pode evitá a cara espantada qui fez pra sua muié, oiava pra ela sentada naquele vazio de boneca de pano, O que ela quer mais? Não lava roupa, não lava louça e tem um negra para mandar... vive solta pela casa. Meu Deus, o que essa mulher quer mais?


e pela primêra veiz, quase se pruguntô  mais foi coisa de duração pouca  se a dona rosinha algum dia quis sê uma esposa como deve sê uma esposa de verdade

mais num se pruguntô, quando se tem medo da resposta e falta valentia é bão num pruguntá, É melhor deixar tudo sereno, parô aqui com a compaixão e subiu a presunção de querê parecê mais duqui tem sido a sua vida toda, o siô augusto num retrucô dona rosinha, no seu modo divê, a sua dona de casa precisava um qui otro ajuste qui ele num tava interessado em fazê logo

a mãezinha sentiu o gosto doce do desacato

em legítima defesa avançô empunhando as arma das palavra, Foi o Paizinho que colocou esse gosto na menina, ele voltô ficá de boca aberta, num tava acostumado tê tanta conversa com dona rosinha – e com dona rosinha falando –, o tempo ajuda acostumá e desacostumá com as coisa boa, e tumbém as coisa ruim

no caso dos dois, é tão pouca conversa mole qui eles num tem muntu acerto de conta – ela cuida da casa, ele cuida de tudo –, entre os dois num teve o costume de jogá conversa fora um com otro, e como já num teve o costume da conversa, desde o começo dos entendimento de comprá e sê vendida – num teve namoro, num teve pedido, só um recibo de compra e venda –, o siô augusto num vê necessidade ditê uqui nunca foi preciso tê

pra dona rosinha foi uma mudança mole, lenta e avantajada qui ficô com mais gosto quando arredondô da barriga e o siô augusto comprô a antônia pra uso na casa – uma preta já feita e acostumada pra serví, pronta pra uso e qui num disputava em formosura as graça e os capricho na cama do siô augusto –, foi quando passô de propriedade pra uso e fruto do marido pra uma meió adequação, dona de pretu, É assim mesmo, a vida tira e a vida dá. O melhor remédio é agradecer à Deus Nosso Senhor pela sua misericórdia e aproveitar as oportunidades.

e quanto mais tempo foi se passando e mais longe eles foi ficando do começo silencioso mais o muro das palavra num dita foi subindo

o siô augusto num tava entendendo nada daquela novidade, dona rosinha falando em voz alta, sendo indelicada, sem remorso pela ofensa solta, empurrando as palavra nos seus ouvido, E agora isso, a parasita destravando as palavras, destapando o pensamento fraco dela. Esse não é um comportamento digno de elogio. Eu conheço o roteiro dessa história, depois do arrependimento virá solicitar compaixão e me propor o duelo da reconciliação nos panos da cama. Estou surpreso com a Dona Rosinha, ela parecia sempre estar mais dormindo do que viva. Não abria os olhos nem quando lhe forçava as intimidades do homem na sua mulher. Parece que a parasita dorminhoca acordou falando.

num sabia dizê pruqui isso lhe dava um prazê ressentido, uma comichão nas vontade da virilha, tudo tem seu preço, mais tumbém fez ele se acordá prum perigo qui num chegava sê uma ameaça, dona rosinha tava falando além do próprio costume, isso podia dá impressão de arrogância, indício de ingratidão

virô as costa, A dona Rosinha está brincando com a própria vida. Tem coisa que um homem não pode deixar passar.

num ia deixá aparecê pra muié a desorientação qui tava, cambaleô inté o piano sem vontade de caminhá, foi o jeito qui encontrô pra se afastá das novidade de num tê as palavra pra revidá e encerrá aquele assunto como dono de tudo, precisava resistí, Afinal, a minha filhinha gostar de música não pode ser empecilho para arranjar um bom marido. Gostar de música é coisa de mulher bem educada. Calma, Augusto, calma. Ainda não chegou o tempo do poste mijar no cachorro e, se depender de mim, nunca vai chegar.

por enquanto ia resistí sem muntu grito, o copo ainda num tava cheio, bastava fechá a cara e mostrá o azedume dusóio, era uma arte rude e muda duseu jeito de dizê, Não quero! Não é possível! Não posso! Não sei! Vai à merda! Foda-se!

os dois tinha uma vida de sombra sem risada qui inté podia tê apetite, mais ele num sabia vê, e assim, ele vivia o drama de durumí cusóio aberto

a vida sem gosto num cria nem se encanta, só destrói, fecha os braço e num abraça nem ela mesma

chegô no piano





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Esquentando a chegada da Elza em Porto Alegre, 08/03/2020

Elza Soares




"Agora que eu faço da vida sem você
você não me ensinou a te esquecer"




Espumas ao Vento
Joyce Cândido e Elza Soares





(Trilha sonora do filme Lisbela e o Prisioneiro)


Sei que ai dentro ainda mora
Um pedaço de mim
Um grande amor não se acaba assim
Feito espumas ao vento

Não é coisa de momento
Raiva passageira
Mania que dá e passa
Feito brincadeira
O amor deixa marcas que não dá para apagar

Sei que errei, estou aqui
Pra te pedir perdão
Cabeça doida, coração na mão
Desejo pegando fogo

Sem saber direito aonde ir e o que fazer
Eu não encontro uma palavra
Para te dizer
Mas se eu fosse você
Eu voltava pra mim de novo

E de uma coisa fique certa, amor
A porta vai estar sempre aberta, amor
O meu olhar vai dar uma festa, amor
Na hora em que você chegar


Composição: José Accioly Cavalcante Neto





(Trilha sonora do filme Lisbela e o Prisioneiro)


A Deusa da Minha Rua




Você Não Me Ensinou a Te Esquecer
Caetano Veloso




A Dança Louca Das Borboletas
Zé Ramalho E Sepultura




O Amor é Filme
Cordel do Fogo Encantado




A Dama de Ouro
Zeu Britto




Lisbela
Los Hermanos








Lisbela e o Prisioneiro - O Filme







Fadas
Luiz Melodia e Elza Soares





Devo de ir, fadas
Inseto voa cego e sem direção
Eu bem te vi, nada
Ou fada borboleta, ou fada canção


As ilusões fartas
A fada com varinha virei condão
Rabo de pipa, olho de vidro
Pra suportar uma costela de Adão

Um toque de sonhar sozinho
Te leva em qualquer direção
De flauta, remo ou moinho
De passo a passo passo...


Compositores: Luiz Carlos Dos Santos





Malandro
Jorge Aragão e Elza Soares






quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (01)

Sobre fotografia

Ensaios


Susan Sontag



ESTADOS UNIDOS, VISTO EM FOTOS, DE UM ÂNGULO SOMBRIO




Quando Walt Whitman contemplava o panorama democrático da cultura, tentava enxergar além da diferença entre beleza e feiura, importância e trivialidade. Parecia-lhe servil ou esnobe fazer qualquer discriminação de valor, exceto as mais generosas. O nosso mais audaz e delirante profeta da revolução cultural estabeleceu sérias exigências de honestidade. Ninguém se incomodaria com a beleza e com a feiura, sugeriu ele, se aceitasse um abraço suficientemente amplo do real, da inclusividade e da vitalidade da verdadeira experiência americana. Todos os fatos, mesmo os mesquinhos, são incandescentes nos Estados Unidos de Whitman — esse espaço ideal, tornado real por força da história, onde “os fatos, ao emitirem si mesmos, são regados com luz”.

A Grande Revolução Cultural Americana anunciada no prefácio da primeira edição de Folhas das folhas de relva (1855) não se cumpriu, o que frustrou muitos mas não surpreendeu ninguém. Um grande poeta não pode, sozinho, mudar o clima moral; mesmo quando o poeta tem milhões de Guardas Vermelhos a seu dispor, isso ainda não é fácil. Como qualquer profeta de uma revolução cultural, Whitman pensava discernir que a arte já fora superada, e desmistificada, pela realidade. “Os próprios Estados Unidos a partir da Segunda Guerra Mundial, o ditame whitmaniano de registrar, em sua integridade, a extravagante franqueza da verdadeira experiência americana gorou. Ao fotografar anões, não se obtêm majestade e beleza. Obtêm-se anões.


Nas primeiras décadas da fotografia, esperava-se que as fotos fossem imagens idealizadas. Ainda é esse o objetivo da maioria dos fotógrafos amadores, para quem uma bela foto é uma foto de algo belo, como uma mulher, um pôr do sol. Em 1915, Edward Steichen fotografou uma garrafa de leite na saída de emergência de um prédio, um exemplo remoto de um conceito totalmente distinto do que é uma foto bela. E desde a década de 1920, profissionais ambiciosos, aqueles cuja obra alcança os museus, afastaram-se resolutamente dos temas líricos, explorando de forma conscienciosa um material comum, vulgar ou mesmo insípido. Em décadas recentes, a fotografia conseguiu, em certa medida, promover uma revisão, para todos, das definições do que é belo e do que é feio — na linha proposta por Whitman. Se (nas palavras de Whitman) “todo objeto ou condição ou combinação ou processo exibe uma beleza”, torna-se superficial privilegiar certas coisas como belas e outras não. Se “tudo o que uma pessoa faz ou pensa é relevante”, torna-se arbitrário tratar alguns momentos da vida como importantes e a maioria como triviais.

Fotografar é atribuir importância. Provavelmente não existe tema que não possa ser embelezado; além disso, não há como suprimir a tendência, inerente a todas as fotos, de conferir valor a seus temas. O significado do próprio valor pode ser alterado — como tem ocorrido na cultura contemporânea da imagem fotográfica, que é uma paródia do evangelho de Whitman. Nos palacetes da cultura pré-democrática, uma pessoa fotografada é uma celebridade. Nos campos abertos da experiência americana, como Whitman a catalogou com entusiasmo, e como Warhol a avaliou com pouco-caso, todo mundo é uma celebridade. Nenhum momento é mais importante do que outro, ninguém é mais interessante do que qualquer outra pessoa.

A epígrafe de um livro de fotos de Walker Evans, publicado pelo Museu de Arte Moderna, é um trecho de Whitman que parece o tema da mais prestigiosa aspiração da fotografia americana:



Não tenho dúvida de que a majestade e a beleza do mundo estão latentes em qualquer migalha do mundo [...]. Não tenho dúvida de que existe muito mais em coisas banais, em insetos, em pessoas vulgares, em escravos, em anões, em ervas, no refugo e na escória do que eu supunha.


Whitman não pensava estar abolindo a beleza, mas generalizando-a. Assim fez, durante várias gerações, a maioria dos fotógrafos americanos em sua polêmica busca do trivial e do vulgar. Mas, entre os fotógrafos americanos que amadureceram a partir da Segunda Guerra Mundial, o ditame whitmaniano de registrar, em sua integridade, a extravagante franqueza da verdadeira experiência americana gorou. Ao fotografar anões, não se obtêm majestade e beleza. Obtêm-se anões.A partir das imagens reproduzidas e consagradas na luxuosa revista Camera Work, que Alfred Stieglitz publicou entre 1903 e 1917, e expostas na galeria por ele dirigida, em Nova York, entre 1905 e 1917, no número 291 da Quinta Avenida (primeiro chamada de Little Gallery of the Photo-Secession e depois, apenas de “291”) — revista e galeria que constituíram o fórum mais ambicioso dos juízos whitmanianos —, a fotografia americana passou da afirmação para a erosão e, por fim, para uma paródia do programa de Whitman. Nessa história, a figura mais edificante é Walker Evans. Foi o último grande fotógrafo a trabalhar de forma séria e confiante num estado de ânimo derivado do humanismo eufórico de Whitman, recapitulando o que ocorrera antes (por exemplo, as espantosas fotos de imigrantes e de trabalhadores tiradas por Lewis Hine), antecipando boa parte da fotografia mais fria, mais rude, mais seca, feita a partir daí — como na prenunciadora série de fotos “secretas” de passageiros anônimos do metrô de Nova York, tiradas por Evans com uma câmera oculta entre 1939 e 1941. Mas Evans rompeu com o estilo heroico em que a visão whitmaniana fora divulgada por Stieglitz e seus discípulos, que desdenhavam Hine. Evans julgava rebuscado o trabalho de Stieglitz.

Como Whitman, Stieglitz não via contradição entre fazer da arte um instrumento de identificação com a comunidade e engrandecer o artista como um ego heroico, romântico e autoexpressivo. Em seu rebuscado e esplêndido livro de ensaios Port of New York (1924), Paul Rosenfeld aclamou Stieglitz como um “dos grandes afirmadores da vida. Não existe, em todo o mundo, nenhum tema tão tosco, banal e humilde que esse homem da caixa preta e do banho químico não consiga utilizar para expressar-se por inteiro”. Fotografar, e por conseguinte redimir o tosco, o banal e o humilde, é também um modo engenhoso de expressão individual. “O fotógrafo”, escreve Rosenfeld a respeito de Stieglitz, “lançou a rede do artista sobre o mundo material com mais largueza do que qualquer outro homem, antes ou junto dele.” A fotografia é um tipo de hipérbole, uma cópula heroica com o mundo material. A exemplo de Hine, Evans buscava um tipo mais impessoal de afirmação, uma reticência nobre, um lúcido subentendido. Nem nas impessoais naturezas-mortas arquitetônicas das fachadas americanas e nos inventários de cômodos que ele adorava fazer, nem nos retratos rigorosos de meeiros sulistas que ele tirou no final na década de 1930 (publicados no livro feito com James Agee, Let us now praise famous men [Agora vamos louvar homens famosos]) Evans tentava expressar a si mesmo.

Mesmo sem a inflexão heroica, o projeto de Evans ainda descende do de Whitman: o nivelamento das discriminações entre o belo e o feio, entre o importante e o trivial. Cada coisa ou pessoa fotografada se torna — uma foto; e se torna, portanto, moralmente equivalente a qualquer outra de suas fotos. A câ- mera de Evans ressaltava, no exterior das casas vitorianas de Boston no início da década de 1930, a mesma beleza formal que ressaltava nos armazéns das ruas centrais de cidades do Alabama, em 1936. Mas esse era um nivelamento por cima, e não por baixo. Evans queria que suas fotos fossem “cultas, abalizadas, transcendentes”. Como o universo moral da década de 1930 não é mais o nosso, tais adjetivos são, hoje, muito pouco confiáveis. Ninguém exige que a fotografia seja culta. Ninguém consegue imaginar como ela poderia ser abalizada. Ninguém compreende como qualquer coisa, muito menos uma foto, poderia ser transcendente.

Whitman preconizava a empatia, a concórdia na discórdia, a unidade na diversidade. O intercurso psíquico com tudo e com todos — e mais a união sensual (quando ele a conseguia) — é a grande viagem explicitamente proposta, vezes sem conta, nos prefácios e nos poemas. Essa ânsia de seduzir o mundo inteiro também determinou o tom e a forma de sua poesia. Os poemas de Whitman são uma tecnologia psíquica para encantar o leitor e levá-lo a um novo modo de ser (um microcosmo da “nova ordem” conjeturada para a sociedade); eles são funcionais, como mantras — maneiras de transmitir cargas de energia. A repetição, a cadência bombástica, os versos encadeados e a dicção atrevida constituem um ímpeto de inspiração secular, destinado a erguer fisicamente os leitores no ar, impeli-los para aquela altura onde são capazes de se identificar com o passado e com a comunidade do desejo americano. Mas essa mensagem de identificação com outros americanos é, hoje, estranha ao nosso temperamento.

O último suspiro do abraço erótico whitmaniano à nação, mas universalizado e despido de todas as exigências, foi ouvido em The Family of Man [A família do homem], exposição organizada em 1955 por Edward Steichen, contemporâneo de Stieglitz e cofundador da galeria Photo-Secession. Quinhentas e três fotos de 273 fotógrafos de 68 países deveriam convergir — a fim de provar que a humanidade é “una” e que os seres humanos, a despeito de todas as suas falhas e vilanias, são criaturas atraentes. As pessoas nas fotos eram de todas as raças, idades, classes, tipos físicos. Muitas tinham corpos excepcionalmente belos; algumas tinham rostos belos. Assim como Whitman exortava os leitores de seus poemas a identificar-se com ele e com os Estados Unidos, Steichen organizou a exposição de modo a permitir que cada espectador se identificasse com muitos dos povos retratados e, potencialmente, com o tema de todas as fotos: cidadãos da Fotografia Mundial, todos.

A fotografia só voltou a atrair ao Museu de Arte Moderna multidões semelhantes àquelas dezessete anos depois, para a retrospectiva da obra de Diane Arbus, em 1972. Na exposição de Arbus, 112 fotos tiradas por uma só pessoa, e todas semelhantes — ou seja, todas as pessoas nas fotos têm (de certo modo) a mesma aparência —, impunham um sentimento exatamente oposto ao afeto tranquilizador do material apresentado por Steichen. Em vez de pessoas cuja aparência agradava, gente representativa a cumprir seus honrados afazeres humanos, a exposição de Arbus perfilava monstros seletos e casos extremos — na maioria, feios; com roupas grotescas ou degradantes; em ambientes desoladores ou áridos — que se haviam detido para posar e, muitas vezes, para olhar com franqueza, com segurança, para o espectador. A obra de Arbus não solicita aos espectadores que se identifiquem com os párias e pessoas de aspecto miserável que ela fotografou. A humanidade não é “una”.

As fotos de Arbus transmitem a mensagem anti-humanista cujo impacto perturbador as pessoas de boa vontade, na década de 1970, queriam avidamente sentir, do mesmo modo como, na década de 1950, desejavam ser consoladas e distraídas por um humanismo sentimental. Não há entre essas mensagens tanta diferença como se poderia imaginar. A exposição de Steichen voltou-se para cima, e a de Arbus para baixo, mas as duas experiências servem igualmente para impedir a compreensão histórica da realidade.

A seleção de fotos de Steichen supõe uma condição humana, ou uma natureza humana, partilhada por todos. Ao proclamar a intenção de mostrar que os indivíduos, em toda parte, nascem, trabalham, riem e morrem do mesmo modo, The Family of Man nega o peso determinante da história — das diferenças, das injustiças e dos conflitos genuínos, historicamente enraizados. As fotos de Arbus solapam a política de um modo igualmente decisivo, ao sugerir um mundo em que todos são forasteiros, inapelavelmente isolados, imobilizados em identidades e relacionamentos mecânicos e estropiados. A elevação piedosa da antologia fotográfica de Steichen e o frio abatimento da retrospectiva de Arbus tornam irrelevantes a história e a política. Um o faz ao universalizar a condição humana, na alegria; o outro, ao atomizá-la, no horror.

O aspecto mais impressionante da obra de Arbus é que ela parece ter se engajado em uma das mais vigorosas empreitadas da arte fotográfica — concentrar-se nas vítimas, nos desgraçados —, mas sem servir ao propósito compassivo que se espera de tal projeto. Sua obra mostra pessoas patéticas, lamentáveis, bem como repulsivas, mas não desperta nenhum sentimento de compaixão. Mediante o que se poderia definir mais corretamente como seu ponto de vista dissociado, as fotos foram elogiadas por sua franqueza e por uma empatia não sentimental com seus temas. Aquilo que constitui de fato sua agressividade contra o público foi tratado como uma proeza moral: as fotos não permitem que o espectador se mantenha distante do tema. De modo mais plausível, as fotos de Arbus — com sua aceitação do horrível — sugerem uma ingenuidade que é, ao mesmo tempo, tímida e sinistra, pois se baseia na distância, no privilégio, num sentimento de que aquilo que o espectador é solicitado a ver é de fato outro. Buñuel, quando indagado, certa feita, sobre o motivo por que fazia filmes, respondeu que era “para mostrar que este não é o melhor dos mundos possíveis”. Arbus tirou fotos para mostrar algo mais simples — que existe outro mundo.






continua...





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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.

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Nota de esclarecimento da LêLivros

Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo 

Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de domínio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. 

Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. 

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


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Leia também

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (02)
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (03)
Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (02)

Las poetisas del amor... Julia de Burgos (Puerto Rico)

Las Poetisas del Amor (06)



Sua poesia reflete mais comumente sob a nota de um amor altamente sensual, erótico e comovente."


RÍO GRANDE DE LOÍZA

¡Río Grande de Loíza!... Alárgate en mi espíritu
y deja que mi alma se pierda en tus riachuelos,
para buscar la fuente que te robó de niño
y en un ímpetu loco te devolvió al sendero.

Enróscate en mis labios y deja que te beba,
para sentirte mío por un breve momento,
y esconderte del mundo, y en ti mismo esconderte,
y oír voces de asombro, en la boca del viento.

Apéate un instante del lomo de la tierra,
y busca de mis ansias el íntimo secreto;
confúndeme en el vuelo de mi ave fantasía,
y déjame una rosa de agua en mis ensueños.

¡Río Grande de Loíza!.. Mi manantial, mi río,
desde que alzóse al mundo el pétalo materno;
contigo se bajaron desde las rudas cuestas
a buscar nuevos surcos, mis pálidos anhelos;
y mi niñez fue toda un poema en el río,
y un río en el poema de mis primeros sueños.

Llegó la adolescencia. Me sorprendió la vida
prendida en lo más ancho de tu viajar eterno;
y fui tuya mil veces, y en un bello romance
me despertaste el alma y me besaste el cuerpo.

¿Adónde te llevaste las aguas que bañaron
mis formas, en espiga del sol recién abierto?
¡Quién sabe en qué remoto país mediterráneo
algún fauno en la playa me estará poseyendo!

¡Quién sabe en qué aguacero de qué tierra lejana
me estaré derramando para abrir surcos nuevos;
o si acaso, cansada de morder corazones,
me estaré congelando en cristales de hielo!

¡Río Grande de Loíza! Azul, Moreno, Rojo.
Espejo azul, caído pedazo azul del cielo;
desnuda carne blanca que se te vuelve negra
cada vez que la noche se te mete en el lecho;
roja franja de sangre, cuando baja la lluvia
a torrentes su barro te vomitan los cerros.

Río hombre, pero hombre con pureza de río,
porque das tu azul alma cuando das tu azul beso.
Muy señor río mío. Río hombre. Único hombre
que ha besado en mi alma al besar en mi cuerpo.

¡Río Grande de Loíza!... Río grande. Llanto grande.
El más grande de todos nuestros llantos isleños,
si no fuera más grande el que de mi se sale
por los ojos del alma para mi esclavo pueblo.




A JULIA DE BURGOS


Ya las gentes murmuran que yo soy tu enemiga
porque dicen que en verso doy al mundo mi yo.
Mienten, Julia de Burgos. Mienten, Julia de burgos.
La que se alza en mis versos no es tu voz: es mi voz
porque tú eres ropaje y la esencia soy yo; y el más
profundo abismo se tiende entre las dos.
Tú eres fria muñeca de mentira social,
y yo, viril destello de la humana verdad.
Tú, miel de cortesana hipocresías; yo no;
que en todos mis poemas desnudo el corazón.
Tú eres como tu mundo, egoísta;
yo no; que en todo me lo juego a ser lo que soy yo.
Tú eres sólo la grave señora señorona; yo no,
yo soy la vida, la fuerza, la mujer.
Tú eres de tu marido, de tu amo; yo no;
yo de nadie, o de todos, porque a todos, a
todos en mi limpio sentir y en mi pensar me doy.
Tú te rizas el pelo y te pintas; yo no;
a mí me riza el viento, a mí me pinta el sol.
Tú eres dama casera, resignada, sumisa,
atada a los prejuicios de los hombres; yo no;
que yo soy Rocinante corriendo desbocado
olfateando horizontes de justicia de Dios.
Tú en ti misma no mandas;
a ti todos te mandan; en ti mandan tu esposo, tus
padres, tus parientes, el cura, el modista,
el teatro, el casino, el auto,
las alhajas, el banquete, el champán, el cielo
y el infierno, y el que dirán social.
En mí no, que en mí manda mi solo corazón,
mi solo pensamiento; quien manda en mí soy yo.
Tú, flor de aristocracia; y yo, la flor del pueblo.
Tú en ti lo tienes todo y a todos se
lo debes, mientras que yo, mi nada a nadie se la debo.
Tú, clavada al estático dividendo ancestral,
y yo, un uno en la cifra del divisor
social somos el duelo a muerte que se acerca fatal.
Cuando las multitudes corran alborotadas
dejando atrás cenizas de injusticias
quemadas, y cuando con la tea de las siete virtudes,
tras los siete pecados, corran las multitudes,
contra ti, y contra todo lo injusto
y lo inhumano, yo iré en medio de
ellas con la tea en la mano.








Para ese día de sombra que llegará, amor mío,
no risco volcado dentro de un manantial,
ese día de espanto y pañuelos al viento
catemos desde ahora, que la vida se va.

Cantemos, sí, cantemos, que al cantarle al silencio,
a la sorda derrota y a la impar soledad,
venceremos la muerte, venceremos la nada,
y a la cumbre del tiempo nuestras almas irán.

Cantemos, si, cantemos, que hay un solo minuto
uno sólo aguardando nuestro mundo cruzar:
ese minuto trágico que hace tiempo nos ronda
su oferta de lágrimas y mañanas sin paz.

¡Te llevarán! Los ecos del viento me lo dicen,
los labios del mar lloran que sí. ¡Te llevarán!
Partirás, y mis ojos que tanto te nutrieron,
bajarán quedamente a nutrir a la mar.

Podrás amarme en sueños, pero mi voz, mi risa,
ojos con riachuelos, de ti se ocultarán.
Puede estrecharte el eco que ha estrechado mi nombre
desde mis labios, ¡nunca mis labios besarás!

Y cuando se alce el ruido marino, entre las noches
apagadas y crueles de tu pena inmortal,
mi fiel camino de olas llevará hasta tu sueño
la ternura que mi alma te ha salvado del mar.

Amado, mis verdugos ya me han medido el paso,
el color de mis huellas conocen, y mi ajuar:
el pudor duerme nupcias eternas con la forma;
hacia el alma es muy largo el camino que andar.

¡Te llevarán! Para esa eternidad de llanto
cantemos desde ahora que la vida se va.
Para ese día de espanto y pañuelos al viento
la canción de la muerte nos llegara del mar.






POEMA PARA LAS LÁGRIMAS


Corno cuando se abrieron por tus sueños mis párpados,
rota y cansadamente, acoge mi partida.

Como si me tuvieras nadando entre tus brazos,
donde las aguas corren dementes y perdidas.

Igual que cuando amaste mis ensueños inútiles,
apasionadamente, despídeme en la orilla...

Me voy como vinieron a tus vuelos mis pájaros,
callada y mansamente, a reposar heridas.

Ya nada más detiene mis ojos en la nube...
Se alzaron por alzarte, y ¡qué inmensa caída!

Sobre mi pecho saltan cadáveres de estrellas
que por ríos y por montes te robé, enternecida.

Todo fue mi universo unas olas volando,
y mi alma una vela conduciendo tu vida...

Todo fue mar de espumas por mi ingenuo horizonte...
Por tu vida fue todo, una duda escondida.

¡Y saber que mis sueños jamás solos salieron
por los prados azules a pintar margaritas!

¡Y sentir que no tuve otra voz que su espíritu!
¡Y pensar que yo nunca sonreí sin su risa!

¡Nada más! En mis dedos se suicidan las aves,
y mis pasos cansados ya no nacen espigas.

Me voy como vinieron a tu techo mis cielos...
fatal y quedamente, a quedarme dormida...

Como el descanso tibio del más simple crepúsculo,
naturalmente trágico, magistralmente herida.

Adiós. Rézame versos en las noches muy largas..
En mi pecho sin lumbre ya no cabe la vida...







___________________________


Julia de Burgos (1914 - 1953) Poetisa, dramaturga e educadora porto-riquenha. Ela nasceu no Bairro Santa Cruz, na Carolina, Porto Rico. Ela morreu em Nova York, Estados Unidos. Seu trabalho pode ser caracterizado por uma enorme capacidade de projetar a feminilidade de seu tempo. Mas também para o problema pessoal, tanto de sua vida agitada e, às vezes até turbulenta, como da intuição de sua morte iminente.

Sua família era grande e pobre, mas seus pais se preocupavam com a educação dos filhos. No bairro Santa Cruz, Julia frequentou a escola primária. Quando criança, ela mostrou grande inteligência. Na cidade de Carolina realiza seus estudos secundários. Após o colegial, ela entrou na Universidade de Porto Rico, Río Piedras. No entanto, ela não concluiu seus estudos superiores, embora, antes de abandoná-los, tenha obtido o Certificado de Professora.

Desde a sua criação na profissão docente, ela se dedicou à criação poética. Um de seus primeiros poemas foi o famoso "Rio Grande de Loíza". Naquela época, ela contatou alguns dos poetas modernistas porto-riquenhos, como Luis Lloréns Torres e os avant-garde Luis Pelés Matos e Evaristo Rivera Chebremont. Sua poesia reflete seu problema vital em todos os seus aspectos: feminismo, vida agitada e amor sob seus múltiplos aspectos, às vezes com uma simplicidade atraente, mas mais comumente sob a nota de um amor altamente sensual, erótico e comovente. Lembre-se, servatis servandis, da poesia amorosa e torturada de Delmira Agustini, do Uruguai, e de Alfonsina Storni, da Argentina, em particular por sua força expressiva.

Em 1940, Julia Brugos viajou para Nova York. Nesta temporada, ela foi muito ativa, tanto em recitais de sua própria poesia, quanto em discursos proferidos em vários centros culturais, quase sempre convidada por porto-riquenhos baseados nesta metrópole.
Ela deixa os Estados Unidos para ir a Cuba, juntando-se ao Dr. Jimenes Grullón, e onde continuou com seus projetos de conferências e produção poética. Ela podia se identificar facilmente com o povo cubano, mas descobriu o incipiente câncer mortal, que afetava sua vitalidade e produção poética.

Logo ela teve que deixar Cuba, porque ocorreu a ruptura precipitada com seu amante, Dr. Jimenes Grullón. Então ela deixou Cuba para ir para Nova York novamente. Ela conheceu o músico Armando Marín lá. Eles se casaram e se mudaram para Washington. Nesta cidade, ela conheceu brevemente o poeta laureado Juan Ramón Jiménez.

Ela voltou para Nova York, mas sua atividade literária diminuiu muito, porque, além do câncer e de sua instabilidade psíquica, ela era viciado em álcool e, consequentemente, desenvolveu uma forte cirrose hepática. Tudo isso levou a uma morte precoce.

Em vista de sua reputação e prestígio literário, em 1987, o Colégio Universitário Humacao concedeu a ele o Doutorado Honorário em Letras, "Post Mortem".

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Lima Barreto - 12. O Pecado

Lima Barreto

O Homem que sabia Javanês e outros contos





O Pecado





Quando naquele dia São Pedro despertou, despertou risonho e de bom humor. E, terminados os cuidados higiênicos da manhã, ele se foi à competente repartição celestial buscar ordens do supremo e saber que almas chegariam na próxima leva.

Em uma mesa longa, larga e baixa, em grande livro aberto se estendia e debruçado sobre ele, todo entregue ao serviço, um guarda-livros punha em dia a escrituração das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e noticiosos traziam de toda extensão da terra. Da pena do encarregado celeste escorriam grossas letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor talhar um outro caráter caligráfico.

Assim páginas ia ele enchendo, enfeitadas, iluminadas em os mais preciosos tipos de letras. Havia no emprego de cada um deles, uma certa razão de ser e entre si guardavam tão feliz disposição que encantava o ver uma página escrita do livro. O nome era escrito em bastardo, letra forte e larga; a filiação em gótico, tinha uma ar religioso, antigo, as faltas, em bastardo e as qualidades em ronde arabescado.

Ao entrar São Pedro, o escriturário do Eterno, voltou-se, saudou-o e, à reclamação da lista d’almas pelo Santo, ele respondeu com algum enfado (endado do ofício) que viesse à tarde buscá-la.

Aí pela tardinha, ao findar a escrita, o funcionário celeste (um velho jesuíta encanecido no tráfico de açúcar da América do Sul) tirava uma lista explicativa e entregava a São Pedro a fim de se preparar convenientemente para receber os ex-vivos no dia seguinte.

Dessa vez ao contrário de todo o sempre, São Pedro, antes de sair, leu de antemão a lista; e essa sua leitura foi útil, pois que se a não fizesse talvez, dali em diante, para o resto das idades – quem sabe? – o Céu ficasse de todo estragado. Leu São Pedro a relação: havia muitas almas, muitas mesmo, delas todas, à vista das explicações apensas, uma lhe assanhou o espanto e a estranheza. Leu novamente. Vinha assim:


P. L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... – Carregador, quarenta e oito anos. Casado. Casto. Honesto. Caridoso. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São
Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo.

Deveras, pensou o Santo Porteiro, é uma alma excepcional; como tão extraordinárias qualidades bem merecia assentar-se à direita do Eterno e lá ficar, per saecula saeculorum, gozando a glória perene de quem foi tantas vezes Santo...

– E porque não ia ? deu-lhe vontade de perguntar ao seráfico burocrata.

– Não sei, retrucou-lhe este. Você sabe, acrescentou, sou mandado...

– Veja bem nos assentamentos. Não vá ter você se enganado. Procure, retrucou por sua vez o velho pescador canonizado.

Acompanhado de dolorosos rangidos da mesa, o guarda-livros foi folheando o enorme Registro, até encontrar a página própria, onde com certo esforço achou a linha adequada e com o dedo afinal apontou o assentamento e leu alto:

– P. L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... – Carregador. Quarenta e oito anos. Casado. Honesto. Caridoso. Leal. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo.

Levando o dedo pela pauta horizontal e nas “Observações”, deparou qualquer coisa que o fez dizer de súbito:

– Esquecia-me... Houve engano. É ! Foi bom você falar. Essa alma é a de um negro. Vai para o purgatório.



Revista Souza Cruz, Rio, agosto 1924.





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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
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O homem que sabia Javanês e outros contos, de Lima Barreto 

Fonte: 
BARRETO, Lima. O homem que sabia javanês e outros contos. Curitiba: Polo Editorial do Paraná, 1997.
Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por: 
Rodrigo Souza, Curitiba - PR 

Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para . 
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Lima Barreto - 1. O homem que sabia javanês 
Lima Barreto - 2. Três gênios de secretaria
Lima Barreto - 3. O único assassinato de Cazuza
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Lima Barreto - 7. A Sombra do Romariz
Lima Barreto - 8. Quase ela deu o “sim” ; mas...
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Lima Barreto - 11. Eficiência Militar
Lima Barreto - 13. Um Que Vendeu a Sua Alma


Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XL - [Deus Esculturou-te]

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







[DEUS ESCULTUROU-TE]
                                      À grandiosa atrizinha brasileira Julieta dos Santos,
                                       homenagem no dia do seu benefício.


                                       Isto pensava, isto escrevo;
                                       Isto tinha n’alma, isto vai no papel,
                                       Que d’outro modo não sei escrever.
                                       (Alm. Garrett)


Deus esculturou-te no molde das auroras
Ó misto de prodígio, herdeira dos assombros
E soube colocar-te por sobre os débeis ombros
Dos mundos do ideal, as músicas sonoras!

Cravou-te nessa fronte o gênio que fulmina.
Dos astros fez-te os olhos, os risos de alvoradas
E deu-te o vaporoso das grandes matinadas
A maga compleição talmática, divina!

E disse-te: ao tablado!... eleva-te, arrebata
A alma de granito suplanta-a, dilata...
Reergue-te na luz, exalta-te, deslumbra!...

E mostra as mil falanges de bravos, hodiernas
As tuas criações quais mágicas lanternas
Deixando todo o orbe envolto na penumbra.


                                                           17 de janeiro de 1883.






ASPIRAÇÃO


Tu és a estrela e eu sou o inseto triste!
Vives no Azul, em cima nas esferas,
No centro das risonhas primaveras
Onde por certo o amor eterno existe.

E nem de leve a glória vã me assiste
De erguer o voo às olímpicas quimeras
Do teu brilho ideal, lá onde imperas
Nesse esplendor a que ninguém resiste.

Enquanto te fulgires nas alturas
Eu errarei nas densas espessuras,
Da terra sobre a rigidez de asfalto.

Embalde o teu clarão me enleva e clama!
Mas como a ti voarei, se senti a chama,
Sou tão pequeno e o céu tão alto?







ABSTRAÇÃO


Cava, investiga a fonte dos instintos,
Da grande Ciência prodigiosa e viva...
Busca na escura Idade primitiva,
Desce aos antigos, fundos labirintos.

Que nunca mais como apertados cintos
De aço, tu tragas a razão cativa;
Que sintas cada vez mais expressiva
A luz, e os erros para sempre extintos.

Porém por mais que tanto te aprofundes
Que a humanidade, os séculos inundes
Com toda a ciência que o teu crânio encerra;

Sempre terás, homem moderno, a mágoa
Do princípio de tudo – como o da água
Que livre sai do coração da terra.






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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXIX - Manhã
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXX - Aspiração
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXI - Pássaro Marinho
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXII - Magnólia dos trópicos
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXIII - Os Mortos
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXIV - Horas de sombra
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXV - Vozinha
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Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXVIII - Entre Chamas...
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Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XLI - Asas de Ouro

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Poesia Africana: Abreu Paxe (Angola)

Poesia Africana - 17





escrever para não ser entendido
desconstruindo a gramática
o fascínio de buscar o que não se controla 

não se deixar vigiar pelos aspectos normativos






a câmara elemento da rasura


transmudar o monólogo obscuro emagrece
o tempo contrária plenitude imperfeita cai azeda palavra
há sempre limites para o exílio de textura vertical
penumbra os ângulos auroras de meia superfície
molham a relva tarde os papéis brancos infernos
ainda um corpo imperativa bainha defeito lençol
nascimentos esquecimentos descobrimentos
de rima relvado
poema fumaça da água viva conjunção os escombros
mastigado avesso árvores plana geometria parada
lança rasura a transparência devolve a montanha outra lavra





o limão fruto do mês


no tópico a penumbra limita o céu
a deus a mesma paragem
passa em liberdade suave textura
a mulher tarde horizontal
de estrutura espessa o género substantiva camada
passa a boca espalhada pelo corpo
guarda todos os traços femininos empurram o limão
permanecem no caminho de frias letras
decifrada a edição é toda ampla pluma
os determinadores pernas no planeta as sedas
deixam de lado os factos contextuais
as luzes estendem-se até a nudez
a existência tão longa produção constrói estrelas
outro corpo
as trevas janelas inquilinos selando juros





amargos dormem tempos opostos


nas paisagens do espaço
afundava-se volumoso coração
no interior do quarto ilimitada natureza a sólida alma
próxima zona virgem a viagem das enguias
lugares de pequenas colinas ou seja:
sentem ondeadas brasas acesas noites também
permanecem transparentes
em forma de pêndulos as fragatas esperam
machucadas pêlos seus remos as algas refúgio:
atravessam os olhos cidades astrais com janelas descem
- velha sombra o basalto - lentas frestas
melhorando muito longe a idade do sol estas casas dos corpos
adoptando formas vermelhas
os pomares voltavam ardendo à teia todo tempo oposto








Abreu Paxe















De
Abreu Paxe
O VENTO FEDE DE LUZ
Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2007. 84 p




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Abreu Castelo Vieira dos Paxe, nasceu em 1969, no Colonato do Vale do Loge, Província do Uíge, filho de operário e de mãe doméstica. Venceu o concurso Um Poema para África em 2000, e foi animador do Cacimbo do Poeta na sua 3ª. edição, atividade organizada pela Alliance Francisco por ocasião da dia da África. Figura na Revista Internacional de Poesia “Dimensão n. 30 de 2000, na antologia dedicada à poesia contemporânea de Angola, editada em Uberaba, Brasil.