terça-feira, 25 de março de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - O Casebre de Gorbeau / II - Ninho de um mocho e de uma cotovia

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Quarto — O Casebre de Gorbeau

II - Ninho de um mocho e de uma cotovia
     
      Foi em frente daquele casebre de Gorbeau que Jean Valjean parou. 
      Como as aves noctívagas, tinha escolhido aquele lugar deserto para nele fazer o seu ninho. 
      Jean Valjean meteu a mão no bolso do colete, tirou uma espécie de gazua, abriu a porta, entrou, depois fechou-a com cuidado e subiu a escada ainda com Cosette ao colo.
     No cimo da escada tirou do bolso nova chave e abriu outra porta, que tornou imediatamente a fechar. O quarto para que entrou era uma espécie de sótão, bastante espaçoso, cuja mobília consistia num colchão deitado no chão, numa mesa e algumas cadeiras. A um canto ficava um fogão, que se via aceso na ocasião em que falamos.
     Toda esta pobre mansão era vagamente alumiada pelo clarão do lampião do boulevard. Ao fundo havia um gabinete com uma cama de lona, para a qual Jean Valjean levou a criança, deitando-a nela sem que Cosette acordasse.
      Depois feriu lume e acendeu uma vela; tudo isto estava preparado de antemão em cima da mesa, e, como na véspera fizera, pôs-se a contemplar Cose e com um olhar extasiado, em que a expressão da bondade e do enternecimento tocava as raias do desvairamento. A pequenina, com essa extrema confiança tranquila, adormecera sem saber com quem estava e continuava a dormir sem saber onde estava.
      Jean Valjean curvou-se então e beijou a mão da criança. Nove meses havia que ele beijara a mão da mãe, no momento também em que ela adormecera.
     O mesmo sentimento doloroso, religioso e pungente de então lhe enchia o coração.
     Após aquele beijo, Jean Valjean ajoelhou junto ao leito de Cosette.
     Era dia claro e Cose e ainda dormia. Um pálido raio do Sol de Dezembro penetrava pela janela do sótão, arrastando pelo teto compridos filamentos de sombra e luz. De repente, uma carreta de cabouqueiro, pesadamente carregada, que passava pela calçada do boulevard, abalou as paredes do casebre, como o rugir de uma tempestade, fazendo o estremecer de cima até baixo, e Cosette, acordada de chofre, gritou sobressaltada:

— Senhora! Eu já aqui vou, eu já aqui vou!

     E deitou-se abaixo da cama com as pálpebras meio fechadas pelo peso do sono, estendendo o braço para o recanto da parede.

— Ai! Jesus Senhor, que não encontro a vassoura! — disse ela.

     Porém, abrindo de todo os olhos, viu o rosto risonho de Jean Valjean e disse:

— Ai, é verdade! Muito bons dias, meu senhor.

     As crianças aceitam logo, e familiarmente, a alegria e a ventura, porque elas mesmo são ventura e alegria.
     Mal Cosette avistou a boneca aos pés da cama, pegou nela, fazendo, ao mesmo tempo que brincava, mil perguntas a Jean Valjean. Perguntou-lhe onde estava; se Paris era grande; se estava bem longe da Thenardier; se ela voltaria; etc., etc.
     De súbito, exclamou:

— Como isto aqui é bonito.

     Era uma suja pocilga, mas Cosette sentia-se livre.

— Quer que eu varra? — tornou ela por fim.
— Não, brinca — disse Jean Valjean.

     Assim se passou o decurso do dia. Cose e, sem lhe dar cuidado saber coisa nenhuma, era inexprimivelmente feliz entre aquela boneca e aquele velho.

continua na página 335...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - II - Ninho de um mocho e de uma cotovia
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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