segunda-feira, 31 de março de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - O Casebre de Gorbeau / III - Duas desgraças juntas fazem uma ventura

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Quarto — O Casebre de Gorbeau

III - Duas desgraças juntas fazem uma ventura
     
     No dia seguinte, quando amanheceu, ainda Jean Valjean estava junto da cama de Cosette, esperando imóvel que ela acordasse. 
     Jean Valjean sentia penetrar-lhe na alma um sentimento desconhecido. 
     Aquele homem nunca tinha amado.
     Havia vinte e cinco anos que se via só no mundo, sem nunca ter sido pai, amante, marido ou amigo. Nas galés era mau, sombrio, casto, ignorante e insociável. Estava cheio de virgindades o coração daquele velho forçado. Sua irmã e os filhos de sua irmã haviam lhe deixado apenas uma recordação vaga e longínqua, que viera por fim a desvanecer-se quase completamente. Fizera todos os esforços para dar com eles, porém, como nunca o pôde conseguir, esqueceu-os. É assim feita a natureza humana.
      As outras impressões ternas da sua mocidade, se é que as tivera, haviam caído num abismo.
     Quando viu Cosette, quando a tomou, arrebatou e libertou, sentiu revolverem-se-lhe as entranhas. Todo o fogo de que era susceptível o seu coração, toda a intensidade do afeto que podia votar a um ser humano, se lhe despertou, precipitando-se para aquela criança. Acercava-se da cama em que ela dormia e tremia de alegria, experimentava emoções maternas. É uma coisa bem obscura e agradável esse grande e estranho movimento de um coração que principia a amar.
     Pobre coração aquele, que pulsava como novo num peito de velho.
     Como ele, porém, tinha cinquenta e cinco anos e Cosette oito, todo o amor que poderia ter em toda a sua vida fundiu-se numa espécie de clarão inevitável.
     Era aquela a segunda aparição branca que ele encontrava.
     O bispo fizera-lhe nascer no seu horizonte a aurora da virtude; Cosette fazia-lhe nascer nele a aurora do amor.
     Neste deslumbramento decorreram os primeiros dias.
     Pela sua parte, Cose e tornava-se outra também, sem disso dar fé, pobre entezinho! Quando sua mãe a deixou, era tão pequena que já não se lembrava dela.
     Como todas as crianças semelhantes aos rebentos da vinha que a tudo se agarram, Cosette tentara amar, porém não pôde chegar a consegui-lo. Todos a haviam repelido, os Thenardier, os filhos e as outras crianças. Amara o cão, mas este morrera, e após isto, nem pessoas nem coisas se importaram com ela. Lúgubre coisa por nós já indicada, aquela criança aos oito anos tinha o coração frio. Não era por culpa dela, nem porque lhe faltasse a faculdade de amar; ai, era a possibilidade. De modo que, desde o primeiro dia, tudo o que nela pensava e sonhava, principiou a amar aquele velho.
     Experimentava o que nunca sentira uma sensação semelhante à da flor quando desabrocha.
     O próprio Jean Valjean não lhe produzia o efeito de um velho ou de um pobre. 
     Achava-o belo, do mesmo modo que achava bonito o albergue miserável em que estava.
     São efeitos estes produzidos pela aurora, pela infância, pela juventude, pela alegria. Concorre para eles a novidade da terra e a da vida. 
     Não há coisa mais encantadora do que o colorido reflexo da ventura sobre as águas furtadas. Todos nós assim temos no nosso passado uma mansarda azul.
      A natureza, cinquenta anos de intervalo, haviam posto uma separação profunda entre Jean Valjean e Cose e, separação que o destino preencheu. O destino uniu repentinamente e desposou com o irresistível poder aquelas duas existências sem raízes, diferentes pela idade, só pelo luto semelhantes. Efetivamente uma completava a outra. O instinto de Cosette procurava um pai como o instinto de Jean Valjean procurava um filho. Encontrarem-se foi acharem-se. Soldaram-se-lhes as mãos no momento misterioso em que se tocaram. Quando aquelas duas almas se avistaram, reconheceram-se como sendo a necessidade uma da outra e abraçaram-se estreitamente.
     Podia-se dizer, tomando as palavras no sentido mais compreensivo e absoluto, que separados de tudo pela, barreira de um túmulo, Jean Valjean era o viúvo como Cosette era a órfã. Esta situação fez com que Jean Valjean se tornasse de um modo celeste o pai de Cosette.
      E, em verdade, a misteriosa impressão produzida em Cosette, no meio do bosque de Chelles, pela mão de Jean Valjean, ao travar-lhe da dela, por entre a escuridão da noite, não era uma ilusão, mas uma realidade. A entrada daquele homem no destino daquela criança fora a chegada de Deus.
     Por último, acrescentaremos que Jean Valjean escolhera bem o seu asilo, pois estava nele numa segurança que podia parecer completa.
     O quarto com alcova que ele ocupava com Cosette era o que tinha a janela que dava para o boulevard, e como esta era a única que havia na casa, não tinha ele a recear os olhares dos vizinhos, tanto dos lados como da frente. O rés-do-chão da casa número 50 52, espécie de telheiro, em ruínas, servia de guarida a hortelãos e não tinha comunicação com o primeiro andar, pois ficava separado deste pelo soalho, em que não havia alçapão nem escada, sendo como que o diafragma do edifício. O primeiro andar continha como dissemos, muitos quartos e mansardas, só um dos quais era ocupado por uma velha que era quem tratava da casa de Jean Valjean. O resto estava todo por habitar.
     Fora essa velha, ornada com o título de principal locatária, e na realidade encarregada das funções de porteira, quem lhe alugara aquele domicílio em dia de Natal, inculcando se-lhe ele como um rendeiro arruinado pelos vales de Espanha, que pretendia ir para ali morar com uma filhinha. Jean Valjean pagara seis meses adiantados, encarregando a velha de mobilar o quarto e o gabinete do modo que se viu. Fora esta boa mulher quem acendera o fogão e preparara tudo na noite da sua chegada.
     Sucederam-se as semanas. Aqueles dois entes passavam uma existência feliz naquele miserável aposento. 
     Cosette logo pela manhã começava a rir, a brincar e a cantar. As crianças têm o seu canto de manhã como as aves.
     Jean Valjean às vezes travava-lhe da vermelha e engelhada mãozinha e beijava-lha; porém, a pobre criança, afeita a ser espancada, não sabia o que isto queria dizer e retirava-a toda envergonhada. 
     Às vezes tornava-se séria e punha-se a contemplar o seu vestido preto. Cosette já não andava coberta de andrajos, andava de luto; saía da miséria e entrava na vida.
     Jean Valjean começava a ensinar-lhe a ler. Às vezes, quando estava a fazê-la soletrar, lembrava-se de que fora com a ideia de praticar o mal que aprendera a ler nas galés, ideia que aproveitava para ensinar a ler a uma criança, e então o velho forçado sorria com esse sorriso pensativo dos anjos.
     Sentia nisto uma premeditação superior, uma vontade de alguém sem ser o homem, e perdia-se em fundas cogitações. Os bons pensamentos têm seus abismos como os maus.
     A vida de Jean Valjean quase se cifrava em ensinar Cosette a ler e deixá-la brincar, e, além disto, em lhe falar da mãe e fazê-la rezar.
     A pobre criança chamava-lhe pai e não lhe sabia outro nome.
     Jean Valjean passava horas inteiras a vê-la vestir e despir a boneca, a ouvi-la chilrear. Parecia-lhe agora cheia de interesse a vida, afiguravam-se-lhe bons e justos os homens, já não descobria razão nenhuma para não poder chegar a muito velho, agora que aquela criança o amava. Via diante de si um futuro iluminado por Cosette como por uma luz encantadora. Os melhores homens não são isentos de um pensamento egoísta. Jean Valjean lembrava-se às vezes com uma espécie de alegria que talvez ela viesse a ser feia.
      Isto é apenas uma opinião pessoal, mas para dizermos todo o nosso pensamento, no ponto em que se achava Jean Valjean, quando principiou a amar Cosette, não nos parece bem provado que ele não visse necessidade desta revivificação para perseverar no bem. Ele acabava de ver sob novos aspectos a maldade dos homens e a miséria da sociedade, aspectos incompletos, que não mostravam fatalmente senão um lado da verdade, a sorte da mulher resumida em Fantine, a autoridade pública personificada em Javert; voltara às galés, desta vez por haver praticado o bem; tinham-lhe torturado o coração novas amarguras; apossava-se dele outra vez o tédio e o cansaço; até a mesma recordação do bispo tinha talvez um momento de eclipse, para aparecer mais tarde luminosa e triunfante; mas, enfim, esta recordação sagrada ia enfraquecendo. Quem sabe se Jean Valjean estaria em vésperas de perder a coragem e cair de novo? Amou, tornou-se forte. Ah! Porém não estava de novo menos vacilante do que Cosette. Ele protegeu-a e ela fortaleceu-o. Por influência dele, ela pôde caminhar pela senda da vida; por influência dela, ele pôde continuar na virtude. Ele foi o sustentáculo daquela criança e aquela criança foi o seu ponto de apoio. Ó insondável e divino mistério dos equilíbrios do destino!

continua na página 339...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Quarto - III - Duas desgraças juntas fazem uma ventura
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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