David Hume
Seção I
DAS DIFERENTES CLASSES DE FILOSOFIA[1]
A FILOSOFIA MORAL, ou ciência da natureza humana[2], pode ser tratada de duas maneiras diferentes; cada uma delas tem seu mérito peculiar e pode contribuir para o entretenimento, instrução e reforma da humanidade. A primeira considera o homem como nascido principalmente para a ação; como influenciado em suas avaliações pelo gosto e pelo sentimento; perseguindo um objeto e evitando outro, segundo o valor que esses objetos parecem possuir e de acordo com a luz sob a qual eles próprios se apresentam. Como se admite que a virtude é o mais valioso dos objetos, os filósofos desta classe pintam-na com as mais agradáveis cores e, valendo-se da poesia e da eloquência, discorrem acerca do assunto de maneira fácil e clara: o mais adequado para agradar a imaginação e cativar as inclinações. Escolhem, na vida cotidiana, as observações e exemplos mais notáveis, colocam os caracteres opostos num contraste adequado e, atraindo-nos para os caminhos da virtude com visões de glória e de felicidade, dirigem nossos passos nestes caminhos com os mais sadios preceitos e os mais ilustres exemplos. Fazem-nos sentir a diferença entre o vício e a virtude; excitam e regulam nossos sentimentos; e se eles podem dirigir nossos corações para o amor da probidade e da verdadeira honra, pensam que atingiram plenamente o fim de todos os seus esforços.
Os filósofos da outra classe consideram o homem mais um ser racional que um ser
ativo, e procuram formar seu entendimento em lugar de melhorar-lhe os costumes.
Consideram a natureza humana objeto de especulação e examinam-na com rigoroso cuidado
a fim de encontrar os princípios que regulam nosso entendimento, excitam nossos
sentimentos e fazem-nos aprovar ou censurar qualquer objeto particular, ação ou conduta.
Julgam uma desgraça para toda a literatura que a filosofia não tenha estabelecido, além da
controvérsia, o fundamento da moral, do raciocínio e da crítica; e que sempre tenha que falar
da verdade e da falsidade, do vício e da virtude, da beleza e da fealdade, sem ser capaz de
determinar a fonte destas distinções. Enquanto tentam realizar esta árdua tarefa, nenhuma
dificuldade os desencoraja; passam de casos particulares para princípios gerais, e conduzem
ainda mais suas investigações para princípios mais gerais, e não ficam satisfeitos até chegar
àqueles princípios primitivos que, em toda ciência, devem limitar toda curiosidade humana.
Embora suas especulações pareçam abstratas e mesmo ininteligíveis aos leitores comuns,
aspiram à aprovação dos eruditos e dos sábios e consideram-se suficientemente compensados
pelo esforço de toda a existência se puderem descobrir algumas verdades ocultas que possam
contribuir para o esclarecimento da posteridade.
Certamente, a filosofia fácil e dada terá sempre preferência, para a maioria dos homens,
sobre a filosofia exata e abstrusa; e por muitos será recomendada, não apenas como a mais
agradável, mas também como mais útil do que a outra. Ela penetra mais na vida cotidiana,
molda o coração e os afetos, e ao atingir os princípios que impulsionam os homens, reforma
lhes a conduta e aproxima-os mais do modelo de perfeição que ela descreve. Ao contrário, a
filosofia abstrusa, alicerçada numa concepção que não pode penetrar na vida prática e na
ação, desvanece quando o filósofo sai da sombra e penetra no dia claro, nem seus princípios
podem manter facilmente qualquer influência sobre nossa conduta e nossos costumes. Os
sentimentos de nosso coração, a perturbação de nossas paixões e a impetuosidade de nossas
emoções, dissipam todas as suas conclusões e reduzem o filósofo profundo a um simples
plebeu.
É preciso também reconhecer que a filosofia fácil adquiriu a mais durável como
também a mais justa fama, e que os raciocinadores abstratos têm apenas, até aqui, gozado de
uma reputação momentânea, nascida do capricho ou da ignorância de sua própria época, mas
eles não têm sido capazes de manter sua fama ante o juízo equitativo da posteridade. Um
filósofo profundo pode facilmente cometer um erro em seus raciocínios sutis, e um erro é
necessariamente gerado de um outro, visto que ele o desenvolve até suas consequências e não
é dissuadido em adotar uma conclusão de aspecto incomum ou por ser contrária à opinião
popular. Mas um filósofo que apenas se propõe representar o sentimento comum da
humanidade nas cores mais belas e mais agradáveis, se por acidente cai em erro, recorre
novamente ao senso comum e aos sentimentos naturais do espírito e assim volta ao caminho
certo e se protege de ilusões perigosas. A fama de Cícero floresce no presente, mas a de
Aristóteles está completamente decadente. La Bruyére ultrapassou os mares e ainda mantém
sua reputação; todavia, a glória de Malebranche está limitada à sua própria nação e à sua
própria época. Addison, talvez, será lido com prazer quando Locke estiver completamente
esquecido.[3]
O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admissível no mundo, pois
supõe-se que ele em nada contribui para o benefício ou para o prazer da sociedade, porquanto
vive distante de toda comunicação com os homens e envolto em princípios e noções
igualmente distantes de sua compreensão. Por outro lado, o mero ignorante é ainda mais
desprezado, pois não há sinal mais seguro de um espírito grosseiro, numa época e uma nação
em que as ciências florescem, do que permanecer inteiramente destituído de toda espécie de
gosto por estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o caráter mais perfeito se encontra entre
estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para
os negócios; mantém na conversação discernimento e delicadeza que nascem da cultura
literária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente de uma filosofia
conveniente. Para difundir e cultivar um caráter tão aperfeiçoado, nada pode ser mais útil do
que as composições de estilo e modalidade fáceis, que não se afastam em demasia da vida,
que não requerem, para ser compreendidas, profunda aplicação ou retraimento e que
devolvem o estudante para o meio de homens plenos de nobres sentimentos e de sábios
preceitos, aplicáveis em qualquer situação da vida humana. Por meio de tais composições, a
virtude toma-se amável, a ciência agradável, a companhia instrutiva e a solidão um
divertimento.
O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência sua adequada nutrição e
alimento. Mas os limites do entendimento humano são tão estreitos que pouca satisfação se
pode esperar neste particular, tanto pela extensão como pela segurança de suas aquisições.
O homem é um ser sociável do mesmo modo que racional. No entanto, nem sempre
pode usufruir de uma companhia agradável e divertida ou conservar o gosto adequado para
ela. O homem é também um ser ativo, e esta tendência, bem como as várias necessidades da
vida humana, o submete necessariamente aos negócios e às ocupações; todavia, o espírito
precisa de algum repouso, já que não pode manter sempre sua inclinação para o cuidado e o
trabalho. Parece, pois, que a Natureza indicou um gênero misto de vida como o mais
apropriado à raça humana, e que ela secretamente advertiu aos homens de não permitirem a
nenhuma destas tendências arrastá-los em demasia, de tal modo que os torne incapazes para
outras ocupações e entretenimentos. Tolero vossa paixão pela ciência, diz ela, mas fazei com
que vossa ciência seja humana de tal modo que possa ter uma relação direta com a ação e a
sociedade. Proíbo-vos o pensamento abstruso e as pesquisas profundas; punir-vos-ei
severamente pela melancolia que eles introduzem, pela incerteza sem fim na qual vos
envolvem e pela fria recepção que vossos supostos descobrimentos encontrarão quando
comunicados. Sede um filósofo, mas, no meio de toda vossa filosofia, sede sempre um
homem.[4]
Se, em geral, os homens se contentassem em preferir a filosofia fácil à abstrata e
profunda, sem censurar ou desprezar a última, não seria, talvez, inadequado, concordar com
esta opinião geral e permitir a cada homem o direito de desfrutar livremente de seu próprio
gosto e sentimento. Mas, como a questão é, frequentemente, levada mais longe, até a
completa rejeição de todo raciocínio profundo, ou o que é geralmente denominado de
metafísica, passaremos a examinar o que se pode considerar razoável pleitear em seu favor.
Podemos começar observando que uma vantagem considerável que resulta da filosofia
abstrata e exata consiste em sua utilidade para a filosofia fácil e humana, a qual, sem a
primeira, nunca poderia alcançar um grau suficiente de exatidão em suas opiniões, preceitos
ou raciocínios. As belas-letras não são outra coisa senão pinturas da vida humana em diversas
atitudes e situações, que nos infundem diferentes sentimentos de louvor ou de censura, de
admiração ou de zombaria, de acordo com as qualidades dos objetos que elas colocam diante
de nós. Um artista estará mais bem qualificado para triunfar em seu empreendimento se
possui, além de gosto delicado e de rápida compreensão, um conhecimento exato da estrutura
interna do corpo, das operações do entendimento, do funcionamento das paixões e das
diversas espécies de sentimentos que distinguem o vício e a virtude. Por mais árdua que possa
parecer esta pesquisa ou investigação in terna, ela se toma, em certa medida, indispensável
àqueles que quiserem descrever com sucesso as aparências exteriores e patentes da vida e dos
costumes. O anatomista apresenta aos olhos os objetos mais hediondos e desagradáveis,
porém sua ciência é útil ao pintor, quando desenha até mesmo uma Vênus ou uma Helena.
Enquanto o pintor emprega as cores mais ricas de sua arte e dá às suas figuras o aspecto mais
gracioso e o mais atraente, deve ainda dirigir sua atenção para a estrutura interna do corpo
humano: a posição dos músculos, o sistema ósseo e a forma e função de cada parte ou órgão.
A exatidão e, em todos os casos, vantajosa à beleza, e o raciocínio justo ao sentimento
delicado. Em vão exaltaríamos uma desvalorizando a outra.
Além disso, podemos observar em todas as artes ou profissões, mesmo as que mais se
relacionam com a vida ou com a ação, que um espírito de exatidão, por qualquer meio
adquirido, as conduz mais perto da perfeição e as torna mais úteis aos interesses da
sociedade. Embora um filósofo possa viver longe dos negócios, o espírito da filosofia, se
cuidadosamente cultivado por alguns, difunde-se gradualmente através de toda a sociedade e
confere a todas as artes e profissões semelhante correção. O político adquirirá maior previsão
e sutileza na divisão e no equilíbrio do poder, o advogado, mais método e princípios mais
sutis em seus raciocínios, o general, mais regularidade em sua disciplina, mais cautela em
seus planos e em suas manobras. A maior estabilidade dos governos modernos sobre os
antigos e a exatidão da filosofia moderna têm melhorado, e provavelmente melhorarão ainda
mais, por gradações semelhantes.
Se não houvesse nenhuma vantagem a ser colhida destes estudos além da satisfação de
uma curiosidade ingênua, mesmo assim este resultado não devia ser desprezado, pois ele se
acrescenta aos poucos prazeres seguros e inofensivos que são conferidos à raça humana. O
caminho da vida, o mais agradável e o mais inofensivo, passa pelas avenidas da ciência e do
saber; e, quem quer que possa remover quaisquer obstáculos desta via ou abrir uma nova
perspectiva, deve ser considerado um benfeitor da humanidade. Embora estas pesquisas
possam parecer árduas e fatigantes, ocorre aqui como com certos espíritos ou com certos
corpos que, por estarem dotados de grande vitalidade, necessitam de exercícios severos e
colhem prazer daquilo que, para a maioria dos homens, parece penoso e laborioso. A
obscuridade é, de fato, penosa tanto para o espírito como para os olhos; todavia, trazer luz da
obscuridade, por mais trabalhoso que seja, deve ser agradável e regozijador.
Mas, objeta-se, a obscuridade da filosofia profunda e abstrata não é apenas penosa e
fatigante, como também é uma fonte inevitável de incerteza e de erro. Na verdade, esta é a
objeção mais justa e mais plausível contra uma parte considerável da metafísica, que não
constitui propriamente uma ciência, mas nasce tanto pelos esforços estéreis da vaidade
humana que queria penetrar em recintos completamente inacessíveis ao entendimento
humano, como pelos artifícios das superstições populares que, incapazes de se defenderem
lealmente, constroem estas sarças emaranhadas para cobrir e proteger suas fraquezas.
Perseguidos em campo aberto, estes salteadores correm para a floresta e põem-se de
emboscada para surpreender toda avenida desguarnecida do espírito, a fim de dominá-lo com
temores e preconceitos religiosos. O antagonista mais valente é subjugado se, por um
momento, suspende sua guarda. Muitos por covardia e tolice abrem os portões para os
inimigos e voluntariamente os recebem com reverência e submissão como se fossem seus
soberanos legítimos.
Mas esta é uma razão suficiente para que os filósofos desistam de tais pesquisas e
deixem a superstição para sempre em posse de seu refúgio? Não é mais conveniente tirar uma
conclusão contrária e perceber a necessidade de conduzir a guerra no mais secreto abrigo do
inimigo? Em vão esperamos que os homens, em virtude de frequentes decepções, abandonem
finalmente estas ciências etéreas e descubram o verdadeiro campo da razão humana. De fato,
além de muitas pessoas empenharem-se sensatamente em sempre repetir semelhantes
ponderações, além disso, digo eu, nas ciências nunca há razão para desesperar; embora os
esforços anteriores tenham fracassado, há ainda esperança de que a diligência, a boa sorte ou
a sagacidade aperfeiçoada de gerações sucessivas possam alcançar descobertas desconhecidas
das épocas anteriores. Todo espírito aventureiro se lançará para a conquista do difícil prêmio
e se verá mais estimulado do que desencorajado pelas falhas de seus predecessores,
porquanto espera que a glória de terminar uma aventura tão difícil lhe é reservada. O único
método para libertar de vez o saber destas questões abstrusas consiste em examinar
seriamente a natureza do entendimento humano e mostrar, por meio de uma análise exata de
suas faculdades e capacidades, que ela não é, de nenhuma maneira, adequada a assuntos tão
remotos e abstrusos. Devemos submeter-nos a esta fadiga a fim de viver tranquilos todo o
resto do tempo, e devemos cultivar a verdadeira metafísica com cuidado para destruir a
metafísica falsa e adulterada. A indolência que, para algumas pessoas, oferece proteção
contra esta filosofia enganadora é para outras superada pela curiosidade; e o desespero que
em alguns momentos prevalece pode ser seguido de grandes esperanças e de expectativas
otimistas. O raciocínio exato e justo é o único remédio universal adequado a todas as pessoas
e aptidões, o único capaz de destruir a filosofia abstrusa e o jargão metafísico que, mesclados
com a superstição popular, se tomam, por assim dizer, impenetráveis aos pensadores
descuidados e se afiguram como ciência e sabedoria.[5]
Além das vantagens de rejeitar, após a investigação deliberada, o aspecto mais incerto e
desagradável do conhecimento, há muitas vantagens que resultam de uma inquirição exata
dos poderes e das faculdades da natureza humana. É curioso que as operações do espírito, não
obstante mais intimamente ligadas a nós, surjam envoltas em obscuridade todas as vezes que
se tornam objeto da reflexão e a visão é incapaz de discernir com facilidade as linhas e os
limites que as separam e as distinguem. Os objetos são muito tênues para permanecer por
muito tempo sob o mesmo aspecto ou situação e devem ser apreendidos num instante, por
uma perspicácia superior recebida da natureza e desenvolvida pelo hábito e pela reflexão.
Deste modo, apenas conhecer as diferentes operações do espírito, sua separação, sua
classificação em categorias apropriadas e a correção da aparente desordem em que se
encontram constituem uma parte considerável da ciência, quando elas são tomadas como
objeto da reflexão e da pesquisa. Esta tarefa de organização e de distinção, que não tem
mérito quando feita em relação aos corpos externos que são os objetos de nossos sentidos,
aumenta de valor quando se dirige às operações do espírito, em proporção à dificuldade e ao
esforço que encontramos ao realizá-la. Se não pudermos ir além desta geografia mental ou do
delineamento das distintas partes e faculdades do espírito, ao menos será satisfatório chegar
até lá; por mais evidente que possa parecer esta ciência — e de nenhum modo o é — mais
desprezível ainda deve ser considerada sua ignorância por todos aqueles que pretendem
alcançar o saber e a filosofia.
Nenhuma dúvida pode subsistir de que esta ciência é incerta e quimérica, a não ser que
nos nutramos de um tal ceticismo que destrua inteiramente toda especulação e mesmo toda
ação. Não há dúvidas de que o espírito está dotado de diversos poderes e faculdades, que
esses poderes são distintos uns dos outros, que o que é realmente diferente de imediato para a
percepção pode ser discernido pela reflexão e, por conseguinte, em todas as proposições que
se referem a este tema há uma verdade e uma falsidade que não estão fora do alcance do
entendimento humano. Há muitas distinções evidentes deste gênero, como aquelas entre a
vontade e o entendimento, a imaginação e as paixões, que podem ser compreendidas por toda
criatura humana. As distinções mais sutis e mais filosóficas não são menos reais e certas,
embora mais difíceis de ser compreendidas. Alguns exemplos, especialmente recentes, de
êxitos obtidos nestas investigações podem dar-nos uma noção mais justa da certeza e da
solidez deste ramo do saber. Ora, estimaremos valioso o esforço de um filósofo que nos dá
um verdadeiro sistema dos planetas e estabelece a posição e a ordem daqueles corpos
remotos, enquanto afetamos desdenhar aqueles que, com igual êxito, determinam as partes do
espírito que nos dizem respeito tão de perto?[6]
Mas não podemos esperar que a filosofia, se cuidadosamente cultivada e encorajada
pela atenção do público, possa levar suas indagações ainda mais longe e descubra, pelo
menos em parte, as fontes e os princípios secretos que impulsionam o espírito humano em
suas operações? Os astrônomos contentaram-se durante muito tempo em provar, a partir dos
fenômenos, o movimento verdadeiro, a ordem e a grandeza dos corpos celestes até que surgiu
um filósofo[7] que, mediante um feliz raciocínio, parece haver determinado também as leis e
forças que dirigem e governam as revoluções dos planetas. E não há razão para temer que não
tenhamos o mesmo êxito em nossas investigações acerca da organização e das faculdades
mentais, se realizadas com o mesmo talento e cautela. E provável que uma operação e um
princípio do espírito dependam de uma outra operação e de um outro princípio que, por seu
turno, possam reduzir-se a uma outra operação e a um outro princípio mais geral e mais
universal. E ser-nos-á muito difícil determinar exatamente até onde é possível levar nossas
investigações, antes — e mesmo depois — de um cuidadoso exame. É verdade que tentativas
deste tipo são feitas todos os dias, mesmo por aqueles que filosofam de maneira mais
negligente. E nada pode ser mais necessário que ingressar no empreendimento com o máximo
cuidado e atenção, de modo que, se está ao alcance do entendimento humano, pode ser levado
a cabo com felicidade, e, se não está, pode ser rejeitado com alguma confiança e segurança.
Esta última conclusão, certamente, não é desejável e não se deveria aceitá-la com muita
precipitação. Porque, se assim fosse, em quanto deveríamos diminuir a beleza e o valor desta
classe de filosofia? Até agora, os moralistas estão habituados, quando consideram a
multiplicidade e a diversidade das ações que despertam nossa aprovação ou nossa repulsa, a
procurar um princípio comum do qual poderia depender esta variedade de opiniões. E,
embora tenham às vezes levado o assunto demasiado longe devido à sua paixão por algum
princípio geral, é preciso reconhecer que, sem dúvida, são desculpáveis quando esperam
encontrar alguns princípios gerais, aos quais com justiça se poderiam reduzir todos os vícios
e virtudes. Análogos têm sido os esforços dos críticos, dos lógicos e mesmo dos políticos;
nem têm sido suas tentativas completamente malogradas, embora com o correr do tempo,
com maior exatidão e aplicação mais zelosa, possam aproximar ainda mais essas ciências de
sua perfeição. Renunciar de imediato a todas as pretensões desse tipo pode ser justamente
julgado uma conduta mais impetuosa, mais precipitada e mais dogmática do que a mais
confiante e a mais afirmativa das filosofias, que jamais tentou impor aos homens seus
preceitos e princípios incompletos.
Que importa se estes raciocínios sobre a natureza humana pareçam abstratos e de difícil
compreensão? Isto não nos induz a nenhuma pressuposição acerca de sua falsidade. Pelo
contrário, parece impossível que o que até agora tem escapado a tantos sábios e profundos
filósofos seja muito fácil e evidente. Sejam quais forem os sofrimentos que estas pesquisas
possam custar-nos, podemos considerar-nos suficientemente recompensados, não apenas em
matéria de utilidade mas por puro prazer, se pudermos assim aumentar nosso acervo de
conhecimento acerca de assuntos de tão indiscutível importância.
Mas como, finalmente, o caráter abstrato destas especulações não as recomendam mas
lhes são desvantajosas, e como esta dificuldade pode talvez superar-se com engenho e arte,
por evitar todo pormenor desnecessário, nós temos tentado, na investigação que segue, lançar
alguma luz sobre temas a propósito dos quais se têm mostrado os sábios, até agora,
desanimados pela incerteza, e os ignorantes, pela obscuridade. Ficaríamos felizes se
pudéssemos unir as fronteiras das diferentes correntes de filosofia, reconciliando a
investigação profunda com a clareza e a verdade com a originalidade. E mais felizes ainda se,
raciocinando desta maneira fácil, pudéssemos destruir os fundamentos da filosofia abstrusa,
que até agora apenas parece haver servido de refúgio à superstição e de abrigo ao erro e ao
absurdo.
continua página 10...
____________________
Ensaio sobre o entendimento humano: Seção I
Notas:
[1] Nesta seção, Hume apresenta os principais objetivos desta Investigação. Por este
motivo, ela corresponde, como muito bem observa Flew, à parte introdutória do Tratado, em
que Hume mostra que a discrepância existente entre “filosofia e ciência” decorre do fato de
elas não se fundamentarem em base comum. A seguir, revela que o caminho mais indicado
para solucionar o problema consiste em principiar estudando a “ciência do homem”, já que
“todas as ciências têm uma relação, maior ou menor, com a natureza humana”.
A. Flew, Hume’s Philosophy of Belief, Routlege & Kegan Paul, Londres, 1961, pp. 1-7.
[2] Ao identificar sua filosofia com a “filosofia moral, ou ciência da natureza humana”,
Hume está indicando que o termo filosofia, como era entendido no século XVIII, tinha um
amplo significado.
[3] Nas edições K e L, aparecia a seguinte nota: “Não se intenciona de nenhum modo
depreciar o mérito de Locke, que foi realmente um grande filósofo, pois raciocina com
correção e modéstia. Pretende-se apenas mostrar o destino comum deste gênero de filosofia
abstrata”.
[4] A filosofia “fácil” considera seu tema adequado as ações humanas (ela visualiza o
homem como “nascido para a ação”), e tem como fim inculcar a virtude. Seu método consiste
no uso de exemplos que permitem inculcar a virtude. A filosofia “difícil” considera seu tema
apropriado as especulações metafísicas acerca da natureza (isto é, das “essências ocultas”) do
homem e do mundo externo, pois o homem é considerado um “ser racional” que pode
desvendar a natureza das coisas. Seu fim é a verdade absoluta acerca desta natureza imutável.
Seu método é a “instrução” ou a apreensão do conhecimento através de uma longa cadeia de
raciocínios. Uma filosofia adequada, sustenta Hume, deve combinar o tema, o método e o fim
dessas duas classes de filosofia, pois a dualidade da natureza humana parece ser um dos
principais objetivos da Investigação. Desta maneira, o tema adequado é o “entendimento
humano” em suas operações racionais e volitivas, já que o entendimento humano pode ser
entendido como aquilo que é capaz de conhecer-se a si mesmo como centro do pensamento e
da ação. O fim adequado diz respeito a um contínuo desenvolvimento reflexivo de nossa
compreensão do entendimento humano e de suas operações (veja-se seção III). E o método
apropriado é aquele que possibilita esta continua auto-reformação (veja-se seção II, nota 11).
E assim que o entendimento humano chega a descobrir o que pode ser conhecido e o que
pode ser feito, ou melhor, o objeto apropriado sobre o qual o entendimento humano pode e
deve operar e os princípios adequados que devem conduzir os homens aos atos corretos. (R.
Sternfeld, “The Unity of Hume’s Enquiry concerning Human Understanding”, The Review of
Metaphysics, vol. III, 2, Dez., 1949, n. 10 pp. 167-188) [N. do T.].
[5] A ênfase dada por Hume aos problemas da natureza e limites do entendimento
humano reflete projeto semelhante ao de Locke, que no An Essay concerning the Human
linderstanding, relata que seu livro nasceu quando ele, com mais cinco ou seis amigos’,
discorria sobre um ‘tópico bem remoto deste (isto é, Essay)”: “ficamos logo inertes, pelas
dificuldades advindas de todas as partes. Depois de algum tempo de hesitação, sem nenhuma
solução viável acerca das dúvidas que nos haviam deixado perplexos, conaiderei que
havíamos iniciado pelo caminho errado e que, antes de nos empenharmos em investigações
desta natureza, devemos examinar nossas próprias habilidades para averiguar com quais
objetos nossos entendimentos podem, ou não, tratar adequadamente” (edição Frazer, Great
Books, chicago, 1952, p. 87). E preciso, todavia, observar que o texto de Hume deixa bem
clara a intenção de empregar o mesmo descobrimento de maneira bem mais agressiva e mais
categórica do que foi utilizado por Locke [N. do T.].
[6] Nas edições K e L havia a seguinte nota: Esta faculdade que nos permite discernir o
verdadeiro do falso e aquela que nos faz perceber a diferença entre o vício e a virtude têm
sido por muito tempo confundidas uma com a outra. Supunha-se, deste modo, que toda
temática moral estivesse construída sobre relações eternas e imutáveis, as quais, observadas
por qualquer espírito inteligente, eram consideradas tão invariáveis como qualquer
proposição acerca da quantidade e do número. Há pouco tempo um filósofo [Francis
Hutcheson, citado em nota de rodapé] esclareceu-nos, mediante os mais convincentes
argumentos, que a moral não é nada quando encarada do ponto de vista abstrato, sendo
completamente relativa ao sentimento ou ao gosto de cada ser particular; do mesmo modo
que as diferenças entre doce e amargo, quente e frio nascem do sentimento derivado de cada
sentido ou de cada órgão. Convém, portanto, classificar as percepções morais, não com as
operações do entendimento, mas com os gostos ou sentimentos. “Os filósofos tinham o habito
de dividir todas as paixões do espírito em duas classes, as egoístas e as altruístas, e supunham
que elas estivessem em constante oposição e contradição. Pensavam, ainda, que as últimas
jamais pudessem abarcar seu objeto apropriado sem referência ás primeiras. Entre as paixões
egoístas classificavam a avareza, a ambição e o espírito de vingança; entre as altruístas a
afeição natural, a amizade e o espírito público. Os filósofos já podem averiguar [vejam-se os
Sermões de Butler] a inexatidão desta classificação. Ficou provado, de modo indubitável, que
mesmo as paixões geralmente julgadas egoístas extravasam o próprio espírito na direção do
objeto; que, embora a satisfação destas paixões nos dê prazer, sua antecipação não é, todavia,
a causa da paixão; ao contrário, a paixão precede o prazer e sem a primeira o último jamais
teria podido existir; que esta é precisamente a situação das paixões denominadas altruístas e
que, por conseguinte, um homem não está mais interessado quando aspira à sua própria glória
do que quando a felicidade de seu amigo é o objeto de seus desejos; que ele não está mais
desinteressado quando sacrifica sua tranquilidade e seu repouso ao bem público do que
quando trabalha para satisfazer sua avareza ou ambição. Eis, portanto. um ajuste considerável
entre as fronteiras das paixões, que têm sido confundidas pela negligência ou inexatidão dos
filósofos precedentes. Estes dois exemplos podem servir para nos mostrar a natureza e a
importãncia desta classe de filosofia”. E provável que Hume excluiu esta nota por considerá
la supérflua depois da publicação de sua An Enquiry concerning the Principies of Morais, em
1751. Parece-nos, todavia, que ela pode esclarecer, especialmente pela menção de Hutcheson,
o projeto humiano. A influência de Hutcheson sobre Hume, como mostra com acerto Smith, é
mais considerável do que se supunha. O núcleo da teoria hutchesoniana consiste, segundo
Smith, em considerar que o último fundamento de nossos juízos de valor, tanto morais como
estéticos, não é a razão, mas o sentimento ou feeling. Hume não apenas adotou este ponto de
vista, mas ampliou seu âmbito ao aplicá-lo a todas as “questões de fato e de existência”
(Investigação, seção IV). Hume antecipa, deste modo, a distinção entre “conhecimento”
(nascido das “relações de ideias” e restrito aos objetos matemáticos) e “crença” (inferida das
“relações de fatos” e englobando todos os outros objetos). Esta distinção é, em verdade,
discutida com pormenores na seção IV desta Investigação. (Vejam-se de N. Kemp Smith, The
Philosophy of David Hume, Macmillan, 1949, capítulos I e II; de E. C. Mossner, The Life of
David Hume, Nelson, 1954, pp. 76-7; de F. Hutcheson, Inquiry into the Original of our Ideas
os Beauhj and Virtue, 1725, e Essay on the Nature and Conduct of the Passions and
Affections, 1728.) [N. do T.]
[7] A analogia com a astronomia antes e depois de Newton indica quais os resultados que
podem ser obtidos da pesquisa acerca das operações do entendimento humano. A aspiração
manifestada por Hume no subtítulo do Tratado (“tentativa para introduzir o método do
raciocínio experimental em objetos morais”) — alusão evidente ao método de Newton e que
lhe valeu o epíteto de ser o Newton das ciências morais — é agora reduzida pela aspiração
mais modesta de fazer apenas uma “geometria mental”. Em verdade, a Investigação
caracteriza-se pela maior ênfase dada aos problemas que dizem respeito à natureza,
pressupostos e limitações de vários tipos de pesquisas. (Flew, obra citada, p. 14.) [N. do T.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário