PRIMEIRA PARTE
Febre do ouro, febre da prata
9. A Nostalgia Belicosa de Túpac Amaru
Quando os espanhóis chegaram à América, estava em seu
apogeu o império teocrático dos incas, que estendia seu
poder sobre o que hoje chamamos Peru, Bolívia e Equador,
abarcava parte da Colômbia e do Chile e alcançava até o
norte argentino e a selva brasileira; a confederação dos
astecas tinha conquistado um alto nível de eficiência no
vale do México, e no Yucatán e na América Central a
esplêndida civilização dos maias persistia nos povos
herdeiros, organizados para o trabalho e para a guerra.
Estas sociedades deixaram numerosos testemunhos de
sua grandeza, apesar de todo o longo tempo da devastação:
monumentos religiosos que nada devem às pirâmides
egípcias; eficazes inventos técnicos para enfrentar as secas;
objetos de arte que revelam um invicto talento. No museu
de Lima podem ser vistos centenas de crânios que foram
objeto de trepanação ou que receberam placas de ouro e
prata por parte dos cirurgiões incas. Os maias tinham sido
grandes astrônomos, mediram o tempo e o espaço com
assombrosa precisão, e tinham descoberto o valor do
número zero antes de qualquer povo da história. As ilhas
artificiais
e
os
aquedutos criados pelos astecas
deslumbraram Hernán Cortez, embora não fossem de ouro.
A conquista rompeu as bases daquelas civilizações.
Piores consequências do que o sangue e o fogo da guerra
teve a implantação de uma economia mineira. As minas
exigiam
grandes
transposições
populacionais
e
desarticulavam as unidades agrícolas comunitárias; não só
extinguiam inumeráveis vidas através do trabalho forçado
como também, indiretamente, extinguiam o sistema
coletivo de cultivos. Os índios eram conduzidos aos
socavões, submetidos à servidão pelos “encomenderos” e
constrangidos a entregar a troco de nada as terras que,
obrigatoriamente, tinham deixado ou que não podiam
cuidar. Na costa do Pacífico os espanhóis destruíram ou
deixaram secar enormes cultivos de milho, mandioca, feijão,
feijão-branco, amendoim, batata-doce; o deserto devorou
rapidamente grandes extensões da terra que tinha recebido
vida da velha rede de irrigação. Quatro séculos e meio
depois da conquista, só restam rochas e matagais no lugar
da maioria dos caminhos que uniam o império. Ainda que as
gigantescas obras públicas dos incas tenham sido, na maior
parte, apagadas pelo tempo ou pela mão de usurpadores,
remanescem ainda, desenhados na cordilheira dos Andes,
os intermináveis degraus que permitiam e ainda permitem o
cultivo nas encostas das montanhas. Em 1936, um técnico
norte-americano
[1] estimava que se naquele mesmo ano,
com métodos modernos, fossem construídos esses degraus,
teriam custado 30 mil dólares por acre. Os degraus e os
aquedutos de irrigação foram possíveis, naquele império
que não conhecia a roda, o cavalo e o ferro, mercê de uma
prodigiosa capacidade de organização e de um profundo
conhecimento do meio, nascido este da relação religiosa do
homem com a terra – que era sagrada e estava, portanto,
sempre viva.
Também tinham sido assombrosas as respostas astecas
ao desafio da natureza. Em nossos dias, os turistas
conhecem por “jardins flutuantes” as poucas ilhas
remanescentes no lago ressecado onde agora se ergue,
sobre as ruínas indígenas, a capital do México. As ilhas
foram criadas pelos astecas para dar resposta ao problema
da falta de terras no lugar escolhido para a fundação de
Tenochtitlán. Os índios transportaram das margens grandes
massas de barro e imobilizaram essas novas ilhas entre
delgadas paredes de bambu, até que as raízes da
vegetação lhes dessem firmeza. Entre os novos espaços
corriam canais de água. Sobre essas ilhas insolitamente
férteis cresceu a poderosa capital dos astecas, com suas
amplas avenidas, seus palácios de austera beleza e suas
pirâmides escalonadas: brotada magicamente da lagoa,
estava condenada a desaparecer nos embates da conquista
estrangeira. O México precisaria de quatro séculos para
alcançar uma população tão numerosa como a que existia
naqueles tempos.
Como observou Darcy Ribeiro, os indígenas eram o
combustível do sistema produtivo colonial. “É quase certo”,
escreve Sergio Bagú, “que para as minas hispânicas foram
empurrados centenas de índios escultores, arquitetos,
engenheiros e astrônomos, misturados à multidão escrava
para realizar um grosseiro e extenuante trabalho de
extração. Para a economia colonial, a habilidade técnica
desses indivíduos não interessava, e eles eram aproveitados
como trabalhadores sem qualificação.” Mas não se
perderam todas as lascas daquelas culturas fraturadas. A
esperança no renascimento da dignidade estimularia
numerosas sublevações indígenas. Em 1781, Túpac Amaru
sitiou Cuzco.
Este
cacique mestiço, descendente direto dos
imperadores incas, encabeçou o movimento messiânico e
revolucionário de maior envergadura. A grande rebelião
explodiu na província de Tinta. Montado em seu cavalo
branco, Túpac Amaru entrou na praça de Tungasuca e, ao
som de flautas e tambores, anunciou que condenara à forca
o corregedor real Antonio Juan de Arriaga, e determinou a
proibição da mita de Potosí. A província de Tinta se
despovoava por causa do serviço obrigatório nos socavões
da prata na montanha rica. Poucos dias depois, Túpac
Amaru expediu nova proclamação, decretando a liberdade
dos escravos. Aboliu todos os impostos e o “repartimiento”
da mão de obra indígena em todas as suas formas. Os
indígenas aderiram aos milhares às forças do “pai de todos
os pobres e de todos os miseráveis e desvalidos”. À frente
de seus guerreiros, o caudilho arremeteu contra Cuzco.
Avançava predicando: quem morresse na guerra sob suas
ordens ressuscitaria para desfrutar as felicidades e as
riquezas de que tinham sido despojados pelos invasores.
Sucederam-se vitórias e derrotas: por fim, traído e
aprisionado por um de seus chefes, Túpac Amaru foi
entregue, acorrentado, aos realistas. Em seu calabouço
entrou o visitador Areche para exigir, em troca de
promessas, os nomes dos cúmplices da rebelião. Túpac
Amaru lhe respondeu com desprezo: “Aqui não há mais
cúmplices além de mim e de ti; tu, como opressor, e eu
como libertador, merecemos a morte”
[2].
Túpac foi submetido a torturas, juntamente com sua
esposa, seus filhos e principais seguidores na praça de
Wacaypata, em Cuzco. Cortaram-lhe a língua. Amarraram
seus braços e pernas a quatro cavalos, para esquartejá-lo,
mas o corpo não se dividiu. Foi decapitado ao pé da forca.
Sua cabeça foi enviada para Tinta. Um dos braços foi para
Tungasuca e outro para Carabaya. Mandaram uma perna
para Santa Rosa e a outra para Livitaca. Queimaram-lhe o
torso e lançaram as cinzas no rio Watanay. Recomendou-se
que fosse extinta toda a sua descendência até o quarto
grau.
Em 1802, outro cacique descendente dos incas,
Astorpilco, recebeu a visita de Humboldt. Foi em Cajamarca,
no mesmo sítio onde seu antepassado Atahualpa tinha visto
pela primeira vez o conquistador Pizarro. O filho do cacique
acompanhou o sábio alemão num passeio pelas ruínas do
povoado e pelos escombros do antigo palácio incaico, e
enquanto caminhava ia falando dos fabulosos tesouros
escondidos sob o pó e as cinzas. Perguntou-lhe Humboldt:
“Às vezes vocês não sentem o desejo de cavar em busca
dos tesouros para suprir suas necessidades?”. O jovem
respondeu: “Esse desejo nós não temos. Meu pai diz que
seria pecaminoso. Se tivéssemos os ramos dourados com
todos os frutos de ouro, os vizinhos brancos nos odiariam e
acabariam nos fazendo algum mal”
[3]. O cacique cultivava
um pequeno campo de trigo, mas nem assim estava a salvo
da cobiça alheia. Os usurpadores, ávidos de ouro e prata e
também de braços escravos para trabalhar nas minas, não
demoraram para avançar sobre as terras quando os cultivos
ofereceram lucros tentadores. A exploração continuou ao
longo de todo o tempo, e em 1969, quando se anunciou a
reforma
agrária
no
Peru,
os
jornais
noticiavam
frequentemente que os índios das comunidades
destroçadas da serra, desfraldando suas bandeiras, de tanto
em tanto invadiam as terras que roubaram deles ou de seus
antepassados, e eram repelidos a balaços pelo exército. Foi
preciso esperar quase dois séculos desde Túpac Amaru para
que o general nacionalista Juan Velasco Alvarado recolhesse
e aplicasse aquela frase do cacique, de ressonâncias
imortais: “Camponês! O patrão já não comerá tua pobreza!”
Outros heróis que o tempo se encarregou de resgatar
da derrota foram os mexicanos Hidalgo e Morelos. Miguel
Hidalgo, que até os 50 anos tinha sido um pacato cura rural,
um belo dia bateu os sinos da igreja de Dolores, concitando
os índios a lutar por sua libertação: “Querem se empenhar
no esforço de retomar dos odiados espanhóis as terras que,
há 300 anos, foram roubadas de seus antepassados?”
Levantou o estandarte da virgem índia de Guadalupe e,
antes de seis semanas, 80 mil homens o seguiam, armados
de facões, lanças, bodoques, arcos e flechas. O cura
revolucionário pôs fim aos tributos e repartiu as terras de
Guadalajara; decretou a liberdade dos escravos; à frente de
suas forças arremeteu contra a cidade do México. Ao cabo
de uma derrota militar, foi executado e, segundo dizem,
deixou ao morrer um testemunho de apaixonado
arrependimento
[4].
A
revolução não demorou para
encontrar um novo chefe, o sacerdote José María Morelos:
“Devem ser considerados inimigos todos os ricos, nobres e
altos funcionários (...)”. Seu movimento – insurgência
indígena e revolução social – chegou a dominar grande
extensão do território do México, até que Morelos também
foi derrotado e fuzilado. A independência do México, seis
anos depois, “mostrou-se um negócio perfeitamente
hispânico, entre europeus e gente nascida na América (...),
uma luta política dentro da mesma classe reinante”
[5]. O
“encomendado” foi transformado em peão e o
“encomendero” em fazendeiro.
[6]
continua na página...79
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Primeira Parte: Ruínas de Potosí: A Nostalgia Belicosa de Túpac Amaru[9]
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[1] Segundo COLLIER, op. cit., um membro do Serviço Norte-Americano de
Conservação de Solos.
[2] VALCÁRCEL, Daniel. La rebelión de Túpac Amaru. México, 1947.
[3] HUMBOLDT, Alexander von. Ansichten der Natur., t.II, citado em MEYER
ABICH, Adolf e outros. Alejandro de Humboldt (1769-1859). Bad Godesberg,
1969.
[4] DONGHI, Tulio Halperin. Historia contemporánea de América Latina. Madrid,
1969.
[5] GRUENING, Ernest. Mexico and his heritage. New York, 1928.
[6] AGUILAR MONTEVERDE, Alonso. Dialéctica de la economía mexicana.
México, 1968.
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