segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: Ruínas de Potosí: A Nostalgia Belicosa de Túpac Amaru[9]

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

Febre do ouro, febre da prata

     9. A Nostalgia Belicosa de Túpac Amaru
          Quando os espanhóis chegaram à América, estava em seu apogeu o império teocrático dos incas, que estendia seu poder sobre o que hoje chamamos Peru, Bolívia e Equador, abarcava parte da Colômbia e do Chile e alcançava até o norte argentino e a selva brasileira; a confederação dos astecas tinha conquistado um alto nível de eficiência no vale do México, e no Yucatán e na América Central a esplêndida civilização dos maias persistia nos povos herdeiros, organizados para o trabalho e para a guerra.
     Estas sociedades deixaram numerosos testemunhos de sua grandeza, apesar de todo o longo tempo da devastação: monumentos religiosos que nada devem às pirâmides egípcias; eficazes inventos técnicos para enfrentar as secas; objetos de arte que revelam um invicto talento. No museu de Lima podem ser vistos centenas de crânios que foram objeto de trepanação ou que receberam placas de ouro e prata por parte dos cirurgiões incas. Os maias tinham sido grandes astrônomos, mediram o tempo e o espaço com assombrosa precisão, e tinham descoberto o valor do número zero antes de qualquer povo da história. As ilhas artificiais e os aquedutos criados pelos astecas deslumbraram Hernán Cortez, embora não fossem de ouro.
     A conquista rompeu as bases daquelas civilizações. Piores consequências do que o sangue e o fogo da guerra teve a implantação de uma economia mineira. As minas exigiam grandes transposições populacionais e desarticulavam as unidades agrícolas comunitárias; não só extinguiam inumeráveis vidas através do trabalho forçado como também, indiretamente, extinguiam o sistema coletivo de cultivos. Os índios eram conduzidos aos socavões, submetidos à servidão pelos “encomenderos” e constrangidos a entregar a troco de nada as terras que, obrigatoriamente, tinham deixado ou que não podiam cuidar. Na costa do Pacífico os espanhóis destruíram ou deixaram secar enormes cultivos de milho, mandioca, feijão, feijão-branco, amendoim, batata-doce; o deserto devorou rapidamente grandes extensões da terra que tinha recebido vida da velha rede de irrigação. Quatro séculos e meio depois da conquista, só restam rochas e matagais no lugar da maioria dos caminhos que uniam o império. Ainda que as gigantescas obras públicas dos incas tenham sido, na maior parte, apagadas pelo tempo ou pela mão de usurpadores, remanescem ainda, desenhados na cordilheira dos Andes, os intermináveis degraus que permitiam e ainda permitem o cultivo nas encostas das montanhas. Em 1936, um técnico norte-americano [1] estimava que se naquele mesmo ano, com métodos modernos, fossem construídos esses degraus, teriam custado 30 mil dólares por acre. Os degraus e os aquedutos de irrigação foram possíveis, naquele império que não conhecia a roda, o cavalo e o ferro, mercê de uma prodigiosa capacidade de organização e de um profundo conhecimento do meio, nascido este da relação religiosa do homem com a terra – que era sagrada e estava, portanto, sempre viva.
     Também tinham sido assombrosas as respostas astecas ao desafio da natureza. Em nossos dias, os turistas conhecem por “jardins flutuantes” as poucas ilhas remanescentes no lago ressecado onde agora se ergue, sobre as ruínas indígenas, a capital do México. As ilhas foram criadas pelos astecas para dar resposta ao problema da falta de terras no lugar escolhido para a fundação de Tenochtitlán. Os índios transportaram das margens grandes massas de barro e imobilizaram essas novas ilhas entre delgadas paredes de bambu, até que as raízes da vegetação lhes dessem firmeza. Entre os novos espaços corriam canais de água. Sobre essas ilhas insolitamente férteis cresceu a poderosa capital dos astecas, com suas amplas avenidas, seus palácios de austera beleza e suas pirâmides escalonadas: brotada magicamente da lagoa, estava condenada a desaparecer nos embates da conquista estrangeira. O México precisaria de quatro séculos para alcançar uma população tão numerosa como a que existia naqueles tempos.
     Como observou Darcy Ribeiro, os indígenas eram o combustível do sistema produtivo colonial. “É quase certo”, escreve Sergio Bagú, “que para as minas hispânicas foram empurrados centenas de índios escultores, arquitetos, engenheiros e astrônomos, misturados à multidão escrava para realizar um grosseiro e extenuante trabalho de extração. Para a economia colonial, a habilidade técnica desses indivíduos não interessava, e eles eram aproveitados como trabalhadores sem qualificação.” Mas não se perderam todas as lascas daquelas culturas fraturadas. A esperança no renascimento da dignidade estimularia numerosas sublevações indígenas. Em 1781, Túpac Amaru sitiou Cuzco.
     Este cacique mestiço, descendente direto dos imperadores incas, encabeçou o movimento messiânico e revolucionário de maior envergadura. A grande rebelião explodiu na província de Tinta. Montado em seu cavalo branco, Túpac Amaru entrou na praça de Tungasuca e, ao som de flautas e tambores, anunciou que condenara à forca o corregedor real Antonio Juan de Arriaga, e determinou a proibição da mita de Potosí. A província de Tinta se despovoava por causa do serviço obrigatório nos socavões da prata na montanha rica. Poucos dias depois, Túpac Amaru expediu nova proclamação, decretando a liberdade dos escravos. Aboliu todos os impostos e o “repartimiento” da mão de obra indígena em todas as suas formas. Os indígenas aderiram aos milhares às forças do “pai de todos os pobres e de todos os miseráveis e desvalidos”. À frente de seus guerreiros, o caudilho arremeteu contra Cuzco. Avançava predicando: quem morresse na guerra sob suas ordens ressuscitaria para desfrutar as felicidades e as riquezas de que tinham sido despojados pelos invasores. Sucederam-se vitórias e derrotas: por fim, traído e aprisionado por um de seus chefes, Túpac Amaru foi entregue, acorrentado, aos realistas. Em seu calabouço entrou o visitador Areche para exigir, em troca de promessas, os nomes dos cúmplices da rebelião. Túpac Amaru lhe respondeu com desprezo: “Aqui não há mais cúmplices além de mim e de ti; tu, como opressor, e eu como libertador, merecemos a morte” [2].
      Túpac foi submetido a torturas, juntamente com sua esposa, seus filhos e principais seguidores na praça de Wacaypata, em Cuzco. Cortaram-lhe a língua. Amarraram seus braços e pernas a quatro cavalos, para esquartejá-lo, mas o corpo não se dividiu. Foi decapitado ao pé da forca. Sua cabeça foi enviada para Tinta. Um dos braços foi para Tungasuca e outro para Carabaya. Mandaram uma perna para Santa Rosa e a outra para Livitaca. Queimaram-lhe o torso e lançaram as cinzas no rio Watanay. Recomendou-se que fosse extinta toda a sua descendência até o quarto grau.
     Em 1802, outro cacique descendente dos incas, Astorpilco, recebeu a visita de Humboldt. Foi em Cajamarca, no mesmo sítio onde seu antepassado Atahualpa tinha visto pela primeira vez o conquistador Pizarro. O filho do cacique acompanhou o sábio alemão num passeio pelas ruínas do povoado e pelos escombros do antigo palácio incaico, e enquanto caminhava ia falando dos fabulosos tesouros escondidos sob o pó e as cinzas. Perguntou-lhe Humboldt: “Às vezes vocês não sentem o desejo de cavar em busca dos tesouros para suprir suas necessidades?”. O jovem respondeu: “Esse desejo nós não temos. Meu pai diz que seria pecaminoso. Se tivéssemos os ramos dourados com todos os frutos de ouro, os vizinhos brancos nos odiariam e acabariam nos fazendo algum mal” [3]. O cacique cultivava um pequeno campo de trigo, mas nem assim estava a salvo da cobiça alheia. Os usurpadores, ávidos de ouro e prata e também de braços escravos para trabalhar nas minas, não demoraram para avançar sobre as terras quando os cultivos ofereceram lucros tentadores. A exploração continuou ao longo de todo o tempo, e em 1969, quando se anunciou a reforma agrária no Peru, os jornais noticiavam frequentemente que os índios das comunidades destroçadas da serra, desfraldando suas bandeiras, de tanto em tanto invadiam as terras que roubaram deles ou de seus antepassados, e eram repelidos a balaços pelo exército. Foi preciso esperar quase dois séculos desde Túpac Amaru para que o general nacionalista Juan Velasco Alvarado recolhesse e aplicasse aquela frase do cacique, de ressonâncias imortais: “Camponês! O patrão já não comerá tua pobreza!”
     Outros heróis que o tempo se encarregou de resgatar da derrota foram os mexicanos Hidalgo e Morelos. Miguel Hidalgo, que até os 50 anos tinha sido um pacato cura rural, um belo dia bateu os sinos da igreja de Dolores, concitando os índios a lutar por sua libertação: “Querem se empenhar no esforço de retomar dos odiados espanhóis as terras que, há 300 anos, foram roubadas de seus antepassados?” Levantou o estandarte da virgem índia de Guadalupe e, antes de seis semanas, 80 mil homens o seguiam, armados de facões, lanças, bodoques, arcos e flechas. O cura revolucionário pôs fim aos tributos e repartiu as terras de Guadalajara; decretou a liberdade dos escravos; à frente de suas forças arremeteu contra a cidade do México. Ao cabo de uma derrota militar, foi executado e, segundo dizem, deixou ao morrer um testemunho de apaixonado arrependimento [4]. A revolução não demorou para encontrar um novo chefe, o sacerdote José María Morelos: 

“Devem ser considerados inimigos todos os ricos, nobres e altos funcionários (...)”. Seu movimento – insurgência indígena e revolução social – chegou a dominar grande extensão do território do México, até que Morelos também foi derrotado e fuzilado. A independência do México, seis anos depois, “mostrou-se um negócio perfeitamente hispânico, entre europeus e gente nascida na América (...), uma luta política dentro da mesma classe reinante” [5]. O “encomendado” foi transformado em peão e o “encomendero” em fazendeiro. [6] 

Primeira Parte: Ruínas de Potosí: A Nostalgia Belicosa de Túpac Amaru[9]
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[1] Segundo COLLIER, op. cit., um membro do Serviço Norte-Americano de Conservação de Solos.
[2] VALCÁRCEL, Daniel. La rebelión de Túpac Amaru. México, 1947.
[3] HUMBOLDT, Alexander von. Ansichten der Natur., t.II, citado em MEYER ABICH, Adolf e outros. Alejandro de Humboldt (1769-1859). Bad Godesberg, 1969.
[4] DONGHI, Tulio Halperin. Historia contemporánea de América Latina. Madrid, 1969.
[5] GRUENING, Ernest. Mexico and his heritage. New York, 1928.
[6] AGUILAR MONTEVERDE, Alonso. Dialéctica de la economía mexicana. México, 1968.

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