quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Massa e Poder - Malta e História: A Essência do Sistema Parlamentar

Elias Canetti

MALTA E HISTÓRIA

     A Essência do Sistema Parlamentar

      O sistema bipartidário do parlamento moderno emprega a estrutura psicológica dos exércitos em combate. Na guerra civil, os exércitos estão realmente presentes, ainda que a contragosto. Não se mata com prazer a própria gente; um sentimento tribal sempre atua em oposição às sangrentas guerras civis, habitualmente conduzindo-as em poucos anos, ou com ainda maior rapidez, a um m. Mas os dois partidos no parlamento têm de prosseguir medindo-se um com o outro. Eles lutam renunciando às mortes. Supõe-se que, num con ito sangrento, a maioria sairia vencedora. A preocupação suprema de todos os generais é, no local do con ito real, ser mais forte, ter à mão mais homens do que o adversário. O general bem-sucedido é aquele que logra obter a supremacia no maior número possível de pontos importantes, ainda que, no geral, ele seja o mais fraco.
     Numa votação parlamentar, nada mais se faz do que averiguar no ato a força de ambos os grupos. Não basta conhecê-la de antemão. Um partido pode ter 360 deputados, ao passo que o outro dispõe de apenas 240: ainda assim, a votação permanece sendo o momento decisivo no qual ambos os partidos realmente se medem. Ela é o resquício do conflito sangrento, ali representado de múltiplas maneiras — por meio de ameaças, insultos e uma exaltação física que pode conduzir a murros e objetos arremessados. A contagem dos votos, porém, marca o fim da batalha, Supõe-se que os 360 teriam vencido os 240. A massa dos mortos permanece inteiramente excluída desse jogo. No interior do parlamento não pode haver mortos. A imunidade parlamentar expressa da forma mais clara possível essa intenção. O parlamentar é duplamente imune: exteriormente, em relação ao governo e seus órgãos; interiormente, no que diz respeito a seus pares — a este último ponto dá-se muito pouca ênfase.
     Ninguém jamais acreditou de fato que, numa votação, a opinião da maioria seja também, em função de sua preponderância, a mais inteligente. O que se tem é um embate de vontade contra vontade, como numa guerra; é própria de cada uma dessas vontades a convicção de seu direito superior e de sua racionalidade; tal convicção é facilmente adquirível — ela se apresenta por si só. O sentido de um partido consiste precisamente em manter despertas essa vontade e essa convicção. O adversário, derrotado pelo voto, não se submete porque, subitamente, tenha deixado de acreditar no seu direito, mas dá-se simplesmente por vencido. É-lhe fácil fazê-lo, uma vez que nada lhe acontece. De nenhuma forma é ele castigado por sua postura hostil anterior. Temesse ele por sua vida, reagiria de modo completamente diferente. Mas conta com futuras batalhas. Não se impõe limite algum ao número destas, e em nenhuma delas ele é morto.
     A igualdade dos deputados — aquilo que os transforma em massa — consiste na sua imunidade. Nisso inexiste diferença entre os partidos. O sistema parlamentar segue funcionando enquanto essa imunidade for preservada. Mas esfacela-se tão logo haja em seu meio alguém que se permita contar com a morte de um membro qualquer da corporação. Nada é mais perigoso do que divisar aí mortos entre os vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui mortos em sua definição. Um parlamento somente é um parlamento na medida em que os exclui.
     A maneira instintiva pela qual o parlamento inglês, por exemplo, aparta-se de seus mortos — mesmo daqueles que morreram pacificamente e fora dele — revela-se no sistema da eleição suplementar. O sucessor do falecido não é predeterminado. Ninguém passa a ocupar automaticamente o lugar do morto. Novos candidatos se apresentam. A batalha eleitoral, em todas as suas formas regulares, é disputada mais uma vez. Para o morto, não há lugar no parlamento. Ele não tem direito de dispor de sua herança. Nenhum deputado à beira da morte pode saber com certeza quem será seu sucessor. A morte, em todas as suas perigosas consequências, encontra-se efetivamente excluída do parlamento inglês.
     Contra essa concepção do sistema parlamentar poder-se-ia tentar objetar que todos os parlamentos da Europa continental compõem-se de muitos partidos, ostentando tamanhos diversos, e que estes somente de vez em quando formam-se em dois grupos opostos e em conflito. Esse fato nada altera no significado da votação. Esta é sempre, e em toda parte, o momento fundamental. Ela determina o que vai acontecer, e o que nela importa são sempre dois números, dos quais o maior sujeita todos aqueles que dela participaram. Em toda parte, o parlamento mantém-se ou sucumbe tendo por base a imunidade parlamentar.
     A eleição do deputado é, em princípio, aparentada aos processos interparlamentares. Considera-se o melhor candidato, o vencedor, aquele que se revela o mais forte. Este é quem recebe a maioria dos votos. Se as 17 562 pessoas que o apoiam se formassem num exército fechado contra os 13 204 seguidores de seu adversário, elas necessariamente venceriam. Tampouco aí deve haver mortes. Ainda assim, a imunidade dos eleitores não é tão importante quanto a da cédula que entregam e que contém o nome de sua escolha. Permite-se por praticamente todos os meios a influenciação dos eleitores até o momento em que eles definitivamente se decidem pelo nome de sua escolha e o escrevem ou assinalam. Escarnece-se do candidato adversário, entregue ao ódio geral, em todas as suas formas. O eleitor pode entreter-se com muitas batalhas eleitorais; se possui uma orientação política, a sorte variada dessas batalhas constitui para ele a maior atração. O momento, porém, em que realmente vota é quase sagrado, como sagradas são as urnas lacradas que contêm as cédulas e o processo da contagem dos votos.
     O que todos esses acontecimentos possuem de solene advém da renúncia à morte, na qualidade de um instrumento de decisão. Em cada cédula em particular, a morte é, por assim dizer, posta de lado. Mas o resultado que ela teria produzido — a força do opositor — é conscienciosamente registrado num número. Quem brinca com esses números, quem os apaga ou falsifica, torna a dar lugar à morte e nem o percebe. Ao fazê-lo, os amantes entusiasmados da guerra, que apreciam fazer troça das cédulas eleitorais, estão apenas confessando seus próprios propósitos sangrentos. Para estes, as cédulas, como os contratos, são um mero pedaço de papel. Que não estejam mergulhadas em sangue parece-lhes algo desprezível: para eles, valem apenas as decisões sangrentas.
     O deputado é um eleitor em forma concentrada; nele apresentam-se próximos os momentos temporalmente assaz distantes nos quais o eleitor existe enquanto tal. O deputado está lá para votar com frequência. Mas é bem menor o número de pessoas em meio às quais ele vota. A intensidade e a prática repetida do voto têm de compensar com excitação aquilo que os eleitores extraem de seu grande número.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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