Elias Canetti
MALTA E HISTÓRIA
Os Italianos
O orgulho de uma nação moderna, seu comportamento numa guerra,
depende em grande medida do reconhecimento de que desfruta seu
símbolo nacional de massa. Em alguns povos, a história prega peças
terríveis, muito tempo depois de haverem eles conquistado sua unidade.
A Itália é um bom exemplo de quão difícil é para uma nação ver-se a si
própria quando suas cidades são assoladas por memórias de maior
grandeza e seu presente é conscientemente perturbado por elas.
Ao longo do período em que a Itália não havia ainda conquistado sua
unidade tudo se afigurava mais claro às pessoas: o corpo despedaçado
voltaria a reunir-se, a sentir-se e comportar-se como um único
organismo, tão logo dele se tivesse expulsado o inimigo — essa praga.
Nesses casos de um agudo sentimento de opressão, em que o inimigo se
encontra já há muito tempo no país, todos os povos desenvolvem ideias
semelhantes de sua situação. O inimigo é imaginado como numeroso,
feio e odioso, como uma nuvem de gafanhotos a viver do bom e
honrado solo dos nativos. Quando, porém, tal inimigo tenciona
seriamente ficar, ele exibe a tendência a dividir esse solo e enfraquecer os
nativos, debilitando sua união interna de milhares de maneiras. A
reação a isso traduz-se, então, numa união secreta e, numa série de
momentos felizes, no enxotamento do parasita. Isso foi, de resto, o que finalmente aconteceu, e a Itália encontrou sua unidade, longamente
ansiada em vão por muitos — e, amiúde, os melhores — de seus
espíritos.
Desse momento em diante, porém, verificou-se que não se deixa viver
impunemente uma cidade como Roma. As edificações de massa dos
tempos antigos continuavam de pé — mas vazias; o Coliseu era uma
ruína demasiado bem preservada. Dentro dele, as pessoas podiam
sentir-se modestas e abandonadas. A segunda Roma, pelo contrário — a
Roma de são Pedro —, preservara o bastante de sua velha força de
atração. A basílica de são Pedro enchia-se de peregrinos de todo o
mundo. Mas precisamente essa segunda Roma não se adequava de modo
algum ao papel de polo da diferenciação nacional. Ela seguia voltando-se indiscriminadamente a todos os homens; sua organização datava de
uma época na qual inexistiam nações, no sentido moderno da palavra.
Entre essas duas Romas, o orgulho nacional do italiano moderno
apresentava-se como que paralisado. Não havia escapatória, pois Roma
estava lá, e os romanos haviam sido a Itália. O fascismo tentou a solução
aparentemente mais fácil, vestindo o traje antigo e genuíno. Este,
porém, absolutamente não parecia talhado para ele; era demasiado
largo, e tão violentos foram os movimentos que o fascismo permitiu-se
em seu interior, que acabou por quebrar todos os membros. Podiam-se
desenterrar todos os foros, um após o outro: eles não se enchiam de
romanos. Os fasces apenas despertavam o ódio daqueles que haviam
sido açoitados por eles; ninguém se orgulhava da ameaça ou do castigo.
Para sorte dos italianos, fracassou a tentativa de impor à Itália um falso
símbolo nacional de massa.
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e História: Os Italianos
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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