sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Massa e Poder - Malta e História: Os Italianos

Elias Canetti

MALTA E HISTÓRIA

     Os Italianos

      O orgulho de uma nação moderna, seu comportamento numa guerra, depende em grande medida do reconhecimento de que desfruta seu símbolo nacional de massa. Em alguns povos, a história prega peças terríveis, muito tempo depois de haverem eles conquistado sua unidade. A Itália é um bom exemplo de quão difícil é para uma nação ver-se a si própria quando suas cidades são assoladas por memórias de maior grandeza e seu presente é conscientemente perturbado por elas.
     Ao longo do período em que a Itália não havia ainda conquistado sua unidade tudo se afigurava mais claro às pessoas: o corpo despedaçado voltaria a reunir-se, a sentir-se e comportar-se como um único organismo, tão logo dele se tivesse expulsado o inimigo — essa praga. Nesses casos de um agudo sentimento de opressão, em que o inimigo se encontra já há muito tempo no país, todos os povos desenvolvem ideias semelhantes de sua situação. O inimigo é imaginado como numeroso, feio e odioso, como uma nuvem de gafanhotos a viver do bom e honrado solo dos nativos. Quando, porém, tal inimigo tenciona seriamente ficar, ele exibe a tendência a dividir esse solo e enfraquecer os nativos, debilitando sua união interna de milhares de maneiras. A reação a isso traduz-se, então, numa união secreta e, numa série de momentos felizes, no enxotamento do parasita. Isso foi, de resto, o que finalmente aconteceu, e a Itália encontrou sua unidade, longamente ansiada em vão por muitos — e, amiúde, os melhores — de seus espíritos.
     Desse momento em diante, porém, verificou-se que não se deixa viver impunemente uma cidade como Roma. As edificações de massa dos tempos antigos continuavam de pé — mas vazias; o Coliseu era uma ruína demasiado bem preservada. Dentro dele, as pessoas podiam sentir-se modestas e abandonadas. A segunda Roma, pelo contrário — a Roma de são Pedro —, preservara o bastante de sua velha força de atração. A basílica de são Pedro enchia-se de peregrinos de todo o mundo. Mas precisamente essa segunda Roma não se adequava de modo algum ao papel de polo da diferenciação nacional. Ela seguia voltando-se indiscriminadamente a todos os homens; sua organização datava de uma época na qual inexistiam nações, no sentido moderno da palavra.
     Entre essas duas Romas, o orgulho nacional do italiano moderno apresentava-se como que paralisado. Não havia escapatória, pois Roma estava lá, e os romanos haviam sido a Itália. O fascismo tentou a solução aparentemente mais fácil, vestindo o traje antigo e genuíno. Este, porém, absolutamente não parecia talhado para ele; era demasiado largo, e tão violentos foram os movimentos que o fascismo permitiu-se em seu interior, que acabou por quebrar todos os membros. Podiam-se desenterrar todos os foros, um após o outro: eles não se enchiam de romanos. Os fasces apenas despertavam o ódio daqueles que haviam sido açoitados por eles; ninguém se orgulhava da ameaça ou do castigo. Para sorte dos italianos, fracassou a tentativa de impor à Itália um falso símbolo nacional de massa.

continua página 264...
____________________

Leia também:

Massa e Poder - Malta e História: Os Italianos
____________________

ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________

Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Nenhum comentário:

Postar um comentário