sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Massa e Poder - Malta e História: A Inflação e a Massa

Elias Canetti

MALTA E HISTÓRIA

     A Inflação e a Massa

      A inflação constitui um fenômeno de massa no sentido mais verdadeiro e estrito da palavra. O efeito perturbador que ela exerce sobre populações de países inteiros não se restringe de modo algum ao momento inflacionário propriamente dito. Pode-se dizer que, excetuando-se as guerras e revoluções, nada há em nossas civilizações modernas que, em sua amplitude, se possa comparar às inflações. Os abalos que elas provocam são de natureza tão profunda que se prefere ocultá-los e esquecê-los. Ademais, talvez as pessoas receiem atribuir ao dinheiro — cujo valor é, afinal, artificialmente fixado pelo homem — efeitos geradores de massas, os quais ultrapassam em muito sua verdadeira destinação, possuindo em si algo de absurdo e infinitamente vergonhoso.
     Um maior aprofundamento nesse assunto faz-se necessário, afim de que se possa dizer algo acerca das propriedades psicológicas do dinheiro. Este pode tornar-se um símbolo de massa; ao contrário, porém, de outros símbolos aqui abordados, o dinheiro é um símbolo no qual se enfatizam ao máximo as unidades cuja acumulação, sob certas circunstâncias, dão origem à massa. Cada moeda apresenta-se claramente delimitada e possui um peso próprio; pode-se reconhecê-la à primeira vista; ela circula livremente de mão em mão e alterna incessantemente sua vizinhança. Com frequência, cunha-se nela a cabeça de algum governante, por cujo nome ela, às vezes — e sobretudo quando é de grande valor —, é chamada. Já tivemos luíses de ouro e táleres Maria Teresa. As pessoas gostam de sentir a moeda como uma pessoa palpável. A mão que sobre ela se fecha sente-a em sua totalidade, em todas as suas bordas e superfícies. Um certo carinho pela moeda, que pode adquirir-lhe isso ou aquilo, é comum a todos os homens, contribuindo para esse seu “caráter” pessoal. Em um aspecto, ela é superior aos seres vivos: sua consistência metálica, sua dureza, assegura lhe uma existência “eterna”; a não ser pelo fogo, é muito difícil destruí-la. A moeda não cresce até atingir seu tamanho; ela já sai pronta do troquel, devendo, então, permanecer o que é; não pode modificar-se.
     Talvez essa confiabilidade da moeda seja sua propriedade mais importante. A seu possuidor, cabe apenas guardá-la bem; ela não foge por si só, feito um animal; tem-se de protegê-la tão somente de outras pessoas. E nem há por que desconfiar dela; desprovida de humores diversos a demandar consideração, a moeda pode ser utilizada sempre. Além disso, ela se consolida também em função de sua relação com outras moedas de valor diferente. A hierarquia das moedas, rigorosamente mantida, aproxima-as ainda mais das pessoas. Poder-se ia falar num sistema social das moedas, com categorias hierárquicas que, no seu caso, traduzem-se em classes de valor; pode-se, decerto, obter moedas menores em troca das maiores, mas nunca uma moeda de maior valor em troca de outra de menor valor.
      O amontoado de moedas é, desde tempos remotos e junto à maioria dos povos, conhecido por tesouro. Na maneira pela qual ele é percebido como uma unidade — topa-se com ele sem que se saiba quanto ele realmente contém —, o tesouro abriga em si muitas características de uma massa. Pode-se remexer nele e separar uma moeda da outra. Sempre se espera que ele seja maior do que é. Com frequência, ele se encontra escondido, podendo aparecer de repente. Não apenas aquele que passa a vida inteira esperando encontrar um tesouro, mas também aquele que o acumula imagina que ele vá crescer cada vez mais, e faz de tudo para que isso aconteça. Não há dúvida de que, para alguns homens que vivem somente para o seu dinheiro, o tesouro ocupa o lugar da massa humana. Encaixam-se aí muitas das histórias de avarentos solitários; eles são a continuação mítica dos dragões dos contos infantis, para os quais a vigilância, a contemplação e o cuidar de um tesouro constituíam o conteúdo único de suas vidas.
     Poder-se-ia objetar que essa relação com a moeda e o tesouro encontra-se já ultrapassada no tocante ao homem moderno; que por toda parte emprega-se hoje o papel-moeda; que, sob forma invisível e abstrata, os ricos guardam seu tesouro nos bancos. Contudo, o significado do lastro em ouro para uma boa moeda, o fato de os homens simplesmente apegarem-se ainda a uma moeda em ouro, demonstra que o tesouro absolutamente não perdeu sua antiga importância. A grande maioria das pessoas, mesmo nos países tecnicamente mais desenvolvidos, é remunerada de acordo com suas horas de trabalho, e o montante dessa remuneração movimenta-se numa ordem que, em quase toda parte, é concebida ainda sob a forma de moedas. Continuam-se recebendo moedas em troca de papel; o velho sentimento e a antiga atitude para com elas são familiares a todos; trocar dinheiro, na condição de um fenômeno cotidiano, está entre os mecanismos mais frequentes e simples de nossa vida, um mecanismo que toda criança aprende o mais cedo possível.
     É correto, no entanto, que, paralelamente a essa relação mais antiga com o dinheiro, uma relação nova e moderna desenvolveu-se. A unidade monetária de cada país adquiriu um valor mais abstrato. Nem por isso ela deixou, em alguma medida, de ser percebida como unidade. Se, no passado, as moedas possuíam algo da rigorosa organização hierárquica de uma sociedade fechada, o que se dá hoje com o papel moeda assemelha-se mais ao que ocorre com os habitantes de uma grande cidade.
     Do tesouro fez-se o milhão de hoje. Este possui uma sonoridade cosmopolita; o significado dessa palavra estende-se por todo o mundo moderno, podendo-se aplicá-lo a qualquer unidade monetária. O interessante no milhão é que, pela destreza especulativa, se pode obtê-lo de um salto: ele paira diante de todos aqueles cuja cobiça encontra-se direcionada para o dinheiro. O milionário herdou algumas das mais cintilantes características do antigo rei dos contos infantis. Como designação de um número, o milhão aplica-se tanto ao dinheiro quanto às pessoas. Esse duplo caráter da palavra deixa-se investigar particularmente bem nos discursos políticos. A volúpia do número que cresce aos saltos é característica, por exemplo, dos discursos de Hitler. Neles, ela se relaciona geralmente aos milhões de alemães que vivem fora do império e que cumpre ainda redimir. Posteriormente às primeiras e incruentas vitórias, anteriores à eclosão da guerra, Hitler ostentava uma preferência particular pelas cifras crescentes a contabilizar o número de habitantes de seu império. Confrontava-as com as de todos os alemães existentes na face da terra. Tê-los todos sob sua esfera de influência era seu objetivo confesso. Em suas ameaças, desagravos e exigências, porém, empregava sempre a palavra milhão. Outros políticos utilizam-na mais em relação a dinheiro. Seu uso, porém, indubitavelmente adquiriu um caráter cambiante. Em função das cifras de habitantes dos diversos países e sobretudo das metrópoles mundiais, expressas sempre em milhões, o número abstrato foi impregnado de um teor de massa que nenhum outro número hoje possui. Considerando-se a vinculação que o dinheiro possui com esse mesmo “milhão”, massa e dinheiro encontram-se hoje mais próximos do que nunca.
     Mas o que acontece numa inflação? A unidade monetária perde subitamente a sua personalidade. Transforma-se numa massa crescente de unidades; estas perdem continuamente o seu valor, na mesma medida em que a massa se faz maior. Os milhões que sempre se quis possuir têm-se agora na mão; mas não são mais milhões, apenas se chamam assim. É como se o salto retirasse daquilo que salta todo o seu valor. Uma vez tendo a moeda mergulhado nesse movimento, que ostenta o caráter de uma fuga, não se vê mais um teto que a limite. Assim como é possível contar os números infinitamente numa ordem crescente, assim também pode a desvalorização do dinheiro, na ordem inversa, alcançar profundezas cada vez maiores.
     Nesse processo, reencontra-se aquela propriedade psicológica da massa que caracterizei como particularmente importante e notável: o prazer no crescimento rápido e ilimitado. Tal crescimento, porém, volta-se rumo ao negativo: aquilo que cresce vai se tornando cada vez mais fraco. O que antes era um marco, agora são 10 mil; mais para a frente, 100 mil e, depois, 1 milhão. Impede-se, assim, a equiparação do indivíduo com seu marco. Este perdeu sua solidez e sua fronteira; a cada momento, faz-se algo diferente. Ele não é mais como uma pessoa, nem possui nenhuma durabilidade. Seu valor é cada vez menor. O homem que anteriormente confiava nele não pode evitar de sentir-lhe o aviltamento como o seu próprio. Por tempo demais equiparou-se a ele; a confiança que tinha nele era como aquela que depositava em si próprio. A inflação faz com que não apenas todo o mundo exterior passe a oscilar — nada é certo, nada se mantém por uma hora no mesmo lugar —, mas também com que o próprio homem se torne menor. Ele próprio, ou tudo o que ele sempre foi, é nada; o milhão que ele sempre desejou é nada. Todos o têm. E todos são nada. O processo da formação do tesouro converteu-se em seu oposto. Toda a confiabilidade do dinheiro desaparece como que por completo. Não há acréscimo; tudo se faz cada vez menos; todos os tesouros desaparecem. Pode-se caracterizar a inflação como um sabá da desvalorização no qual homens e unidade monetária confundem-se da maneira mais estranha. Um representa o outro; o homem sente-se tão mal quanto o dinheiro, que segue cada vez pior; juntos, todos se encontram à mercê desse dinheiro ruim e, juntos, sentem-se igualmente desprovidos de valor.
     Na inflação dá-se, pois, algo que certamente jamais se teve por objetivo; algo tão perigoso que faria recuar assustado qualquer um que, possuidor de alguma responsabilidade pública, pudesse prevê-la. Trata se de uma dupla desvalorização, derivada de uma dupla equiparação. O indivíduo sente-se desvalorizado porque decai a unidade na qual ele confiava e a qual prezava tanto quanto a si próprio. A massa sente-se desvalorizada porque o milhão perdeu seu valor. já se mostrou aqui quão ambíguo é o uso da palavra milhão, empregada tanto para a alta soma em dinheiro quanto para a grande concentração de homens, e muito particularmente em relação à ideia que se faz da metrópole moderna; mostrou-se também de que forma um sentido da palavra transforma-se no outro, verdadeiramente alimentando-se um significado do outro. Todas as massas que se formam em tempos de inflação — e precisamente nessas épocas elas se formam com bastante frequência — estão sujeitas à pressão do milhão desvalorizado. Se, como indivíduo, vale-se pouco, pouco também é o que se vale em conjunto. Quando os milhões escalam as alturas, um povo inteiro, composto de milhões, torna-se nada.
      Esse processo reúne pessoas cujos interesses materiais são, em geral, bastante diversos. O assalariado é tão atingido quanto aquele que vive de rendas. De um dia para o outro, pode-se perder muito, ou mesmo tudo o que se acreditava em segurança no banco. A inflação acaba com diferenças entre os homens que pareciam eternas, agrupando numa única e mesma massa inflacionária pessoas que normalmente mal se teriam cumprimentado uma à outra.
     Nenhuma desvalorização repentina da pessoa humana é jamais esquecida; ela é demasiado dolorosa. É carregada pela vida toda, a não ser que se possa descarregá-la sobre alguém. Mas tampouco a massa enquanto tal esquece sua desvalorização. A tendência natural é, então, encontrar algo que valha ainda menos, algo que se possa desdenhar na mesma medida em que se foi desprezado. Não basta assumir esse desdém da mesma forma como se o encontrou, mantê-lo no mesmo nível que ele tinha antes de se recorrer a ele. O que se necessita é de um processo dinâmico de aviltamento: há que se tratar esse algo de forma que ele valha cada vez menos, semelhantemente ao que ocorre com a unidade monetária durante a inflação, e esse processo tem de prosseguir até que seu objeto seja reduzido a um estado de completo desvalor. Aí, então, pode-se jogá-lo fora ou amassá-lo feito papel.
     O objeto que Hitler encontrou para tanto, durante a in ação alemã, foram os judeus. Estes pareciam feitos sob medida: sua velha ligação com o dinheiro, para cuja movimentação e variação de valor possuíam uma espécie de compreensão tradicional; sua destreza em atividades especulativas; sua afluência às bolsas, onde seu comportamento destoava gritantemente do ideal militar de conduta dos alemães — tudo isso só podia fazê-los parecer dúbios e hostis, numa época impregnada da suspeição, instabilidade e hostilidade do dinheiro. O judeu, como indivíduo, era “ruim”: ele se dava bem com o dinheiro quando ninguém mais entendia do assunto e se preferia não ter mais coisa alguma a ver com ele. Se a inflação tivesse se limitado a provocar processos de desvalorização nos alemães como indivíduos, despertar o ódio contra determinados judeus teria bastado. Mas não foi isso que ocorreu; também na qualidade de massa os alemães sentiram-se humilhados com a queda de seus milhões. Hitler, que possuía uma clara percepção disso, voltou sua atuação contra a totalidade dos judeus.
     No tratamento dispensado a eles, o nacional-socialismo repetiu com a máxima exatidão o processo in acionário. Primeiro, os judeus foram atacados como ruins e perigosos, como inimigos; depois, progressivamente desvalorizados; como não se dispunha deles em quantidade suficiente, foram coletados nos países conquistados; por fim, eram tidos literalmente por insetos daninhos, aos quais era lícito aniquilar impunemente aos milhões. Ainda hoje causa perplexidade o fato de os alemães terem ido tão longe a ponto de cometer, tolerar ou ignorar um crime de tamanhas proporções. Dificilmente ter-se-ia logrado levá-los a tanto se, poucos anos antes, eles não tivessem vivenciado uma inflação na qual o marco chegou a descer a um bilionésimo de seu valor. Foi essa inflação, como fenômeno de massa, que os alemães descarregaram sobre os judeus.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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