PRIMEIRA PARTE
Febre do ouro, febre da prata
5. A Espanha tinha a vaca, mas outros tomavam o leite
Entre 1545 e 1558, descobriram-se as férteis minas de Potosí, na atual Bolívia, e as de Zacatecas e Guanajuato no México; o processo de amálgama com mercúrio, que tornou possível a exploração de prata de menor pureza, começou a ser aplicado no mesmo período. O rush da prata eclipsou rapidamente a mineração do ouro. Em meados do século XVII a prata alcançava mais de 99 por cento das exportações minerais da América Hispânica. [1]
A América era então uma vasta boca de mina
centralizada, sobretudo, em Potosí. Alguns escritores
bolivianos, inflamados de excessivo entusiasmo, afirmam
que em três séculos a Espanha recebeu metal suficiente
como para estender uma ponte de prata desde a grimpa da
montanha à porta do palácio real no outro lado do oceano. A
imagem, por certo, é obra da fantasia, mas sempre alude a
uma realidade que, de fato, parece inventada: o fluxo da
prata alcançou gigantescas proporções. A farta exportação
clandestina da prata americana, que de contrabando seguia
para as Filipinas, para a China e para a própria Espanha, não
figura nos cálculos de Earl J. Hamilton
[2], que no entanto, a
partir de dados obtidos na Casa de Contratação, oferece,
em sua conhecida obra sobre o tema, cifras assombrosas.
Entre 1503 e 1660, desembarcaram no porto de Sevilha 185
mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. A prata
levada para a Espanha em pouco mais de um século e meio
excedia três vezes o total das reservas europeias. E essas
cifras não incluem o contrabando.
Os metais arrebatados aos novos domínios coloniais
estimularam o desenvolvimento europeu e até se pode
dizer que o tornaram possível. Nem sequer os efeitos da
conquista dos tesouros persas que Alexandre Magno
derramou sobre o mundo helênico poderiam ser
comparados com a magnitude dessa formidável
contribuição da América para o progresso alheio. Mas não
para o progresso da Espanha, ainda que lhe pertencessem
as fontes da prata americana. Como se dizia no século XVII,
“a Espanha é como a boca que recebe os alimentos,
mastiga-os e os tritura para logo enviá-los aos demais
órgãos, e deles não retém senão um gosto furtivo ou as
partículas que casualmente aderem aos seus dentes”
[3]. Os
espanhóis tinham a vaca, mas quem bebia o leite eram os
outros. Os credores do reino, estrangeiros em sua maioria,
sistematicamente esvaziavam as arcas da Casa de
Contratação de Sevilha, encarregada de guardar sob três
chaves, em três diferentes mãos, os tesouros da América.
A
Coroa estava hipotecada. Quase todos os
carregamentos de prata eram antecipadamente cedidos a
banqueiros alemães, genoveses, flamengos e espanhóis
[4].
Também grande parte dos impostos tinha a mesma sorte:
em 1543, 65 por cento do total das rendas reais se
destinava ao pagamento das anuidades dos títulos da
dívida. Tão só em mínima proporção a prata americana era
aplicada
na
economia
espanhola:
embora fosse
formalmente registrada em Sevilha, ia parar nas mãos dos
Függer, poderosos banqueiros que tinham adiantado para o
Papa os fundos necessários para a conclusão da catedral de
São Pedro, e de outros grandes prestamistas da época, no
estilo dos Welser, dos Shetz ou dos Grimaldi. A prata
também se destinava ao pagamento das exportações de
mercadorias não espanholas para o Novo Mundo.
Aquele império rico tinha uma metrópole pobre, ainda
que nela a ilusão de prosperidade levantasse bolhas cada
vez mais inchadas: a Coroa abria frentes de guerra por
todos os lados, enquanto a aristocracia se dedicava ao
esbanjamento e se multiplicavam em solo espanhol os
padres e os guerreiros, os nobres e os mendigos, ao mesmo
e frenético tempo em que aumentavam os preços e as taxas
de juro do dinheiro. A indústria morria ao nascer naquele
reino de vastos latifúndios estéreis, e a enferma economia
espanhola não podia resistir ao brusco impacto da alta
demanda de alimentos e mercadorias, a inevitável
consequência da expansão colonial. O grande aumento dos
gastos públicos e a asfixiante pressão das necessidades de
consumo nas possessões de ultramar agravavam o déficit
comercial e desencadeavam, a galope, a inflação. Colbert
escrevia: “Quanto mais comércio um estado tem com os
espanhóis, mais prata tem”. Havia uma dura luta europeia
pela conquista do mercado espanhol, que implicava o
mercado e a prata da América. Um memorial francês de fins
do século XVII nos permite saber que a Espanha, então, só
predominava em 5 por cento do comércio com “suas”
possessões coloniais do outro lado do oceano, apesar da
ilusão jurídica do monopólio: cerca de uma terça parte do
total estava na mão de holandeses e flamengos, uma
quarta parte pertencia aos franceses, os genoveses
controlavam mais de 20 por cento, os ingleses dez e os
demais um pouco menos
[5]. A América era um negócio
europeu.
Carlos V, herdeiro dos Césares no Sacro Império em
eleição comprada, só passou na Espanha dezesseis dos 40
anos de seu reinado. Aquele monarca de queixo
proeminente e olhar idiota, que subiu ao trono sem
conhecer uma só palavra do idioma castelhano, governava
rodeado por um séquito de flamengos rapaces, aos quais
entregava salvo-condutos para tirar da Espanha mulas e
cavalos carregados de ouro e joias, a par de recompensá-los
com a outorga de bispados e arcebispados, títulos
burocráticos e até a primeira licença para conduzir escravos
negros às colônias americanas. Dedicando-se à perseguição
do demônio por toda a Europa, Carlos V exauria o tesouro
da América em suas guerras religiosas. A dinastia dos
Habsburgo não desapareceu com sua morte; a Espanha
ainda padeceria o reinado dos austríacos durante quase
dois séculos. O grande paladino da Contra-Reforma foi seu
f
ilho Felipe II. De seu gigantesco palácio-mosteiro, o
Escorial, na encosta do Guadarrama, Felipe II pôs em
funcionamento, em escala universal, a terrível máquina da
Inquisição, e empurrou seus exércitos para os centros da
heresia. O calvinismo se apossara da Holanda, Inglaterra e
França, e os turcos encarnavam o perigo de um retorno da
religião de Alá. O salvacionismo custava caro: os poucos
objetos de ouro e prata que não chegavam do México e do
Peru já fundidos eram rapidamente retirados da Casa de
Contratação de Sevilha e lançados às bocas dos fornos.
Ardiam também os hereges ou os suspeitos de heresia,
assados pelas chamas purificadoras da Inquisição.
Torquemada incendiava os livros e o rabo do diabo
reaparecia em todos os cantos: a guerra contra o
protestantismo era, sobretudo, a guerra contra o
capitalismo ascendente na Europa. “A perpetuação da
cruzada”, diz Elliott em sua obra já citada, “aprofundava a
perpetuação da arcaica organização social de uma nação de
cruzados.” Os metais da América, delírio e ruína da
Espanha, proporcionavam meios para campanhas militares
contra as nascentes forças da economia moderna. Já Carlos
V tinha esmagado a burguesia castelhana na guerra dos
comuneros, que se transformara numa revolução social
contra a nobreza, suas propriedades e seus privilégios. O
levante foi sufocado após a traição da cidade de Burgos,
que quatro séculos mais tarde seria a capital do general
Francisco Franco; extintos os últimos redutos rebeldes,
Carlos V regressou à Espanha acompanhado de quatro mil
soldados alemães. Simultaneamente, também foi afogada
em sangue a excessivamente radical insurreição de
tecedores, fiandeiros e artesãos que tinham tomado o poder
na cidade de Valência, estendendo-o a toda a comarca.
A defesa da fé católica era a máscara da luta contra a
história. A expulsão dos judeus – espanhóis de origem judia–, ao tempo dos Reis Católicos, privara a Espanha de muitos
artesãos habilidosos e de capitais imprescindíveis. Não se
considera de igual importância a expulsão dos árabes – na
verdade espanhóis de religião muçulmana –, embora em
1609 nada menos do que 275 mil tenham sido empurrados
fronteira afora, com desastrosos efeitos na economia
valenciana e nos férteis campos ao sul do Ebro, em Aragão,
que ficaram arruinados. Anteriormente, Felipe II, por
motivos religiosos, havia expulsado milhares de artesãos
flamengos convictos ou suspeitos de protestantismo: a
Inglaterra os acolheu e ali deram importante impulso às
manufaturas britânicas.
Como se vê, as enormes distâncias e as difíceis
comunicações não eram os principais obstáculos que se
opunham ao progresso industrial da Espanha. Os
capitalistas espanhóis se transformaram em financistas,
através da compra de títulos da dívida da Coroa, e não
investiam seus capitais no desenvolvimento industrial. O
excedente econômico vertia para os canais improdutivos: os
velhos ricos, senhores da faca e do queijo, donos das terras
e de títulos de nobreza, levantavam palácios e acumulavam
joias;
os
novos ricos, especuladores e mercadores,
compravam terras e títulos de nobreza. Tanto estes quanto
aqueles praticamente não pagavam impostos e não podiam
ser presos por dívidas. Quem se dedicasse a uma atividade
industrial perdia automaticamente sua carta de fidalguia.
[6]
Sucessivos
tratados
comerciais,
firmados
em
consequência de derrotas militares dos espanhóis na
Europa, outorgavam concessões que estimulavam o tráfico
marítimo entre o porto de Cádiz, que substituiu Sevilha, e
portos franceses, ingleses, holandeses e hanseáticos. A
cada ano, entre 800 e 1.000 embarcações descarregavam
na Espanha os produtos industrializados dos outros. Eles
levavam a prata da América e a lã espanhola, que seguia
para os teares estrangeiros e de lá voltava já tecida pela
indústria europeia em expansão. Os monopolistas de Cádiz
se
limitavam a remarcar os produtos industriais
estrangeiros, expedindo-os para o Novo Mundo: se as
manufaturas espanholas não podiam sequer atender o
mercado interno, como haveriam de satisfazer as
necessidades das colônias?
As rendas de Lille e Arraz, os tecidos holandeses, os
tapetes de Bruxelas, as armas de Milão e os vinhos e panos
da França
[7] inundavam o mercado espanhol, às expensas
da produção local, para satisfazer os anseios de ostentação
e as exigências de consumo dos ricos parasitas, cada vez
mais numerosos e poderosos num país cada vez mais
pobre. A indústria morria no ovo, e os Habsburgo fizeram
todo o possível para acelerar sua extinção. Em meados do
século XVI se chegou ao absurdo de autorizar a importação
de tecidos estrangeiros ao mesmo tempo em que se proibia
a exportação de tecidos castelhanos, a não ser que fossem
para a América
[8]. Eram bem diferentes, como observou
Ramos, as orientações de Henrique VIII e Elizabeth I na
Inglaterra: proibiam nessa ascendente nação a saída de
ouro e prata, monopolizavam as letras de câmbio, impediam
a extração de lã e expulsaram dos portos britânicos os
mercadores da Liga Hanseática do Mar do Norte.
Entrementes, as repúblicas italianas protegiam seu
comércio exterior e sua indústria através de taxas,
privilégios e proibições rigorosas: os artífices, sob pena de
morte, não podiam deixar o país.
A ruína se apossava de tudo. Dos 16 mil teares de
Sevilha em 1558, por ocasião da morte de Carlos V,
restavam 400 quando morreu Felipe II, 40 anos depois. O
rebanho ovino andaluz, antes com 7 milhões de cabeças,
reduzira-se para 2 milhões. Cervantes retratou em Dom
Quixote de la Mancha – romance de grande circulação na
América – a sociedade de sua época. Um decreto de
meados do século XVI tornava impossível a importação de
livros estrangeiros e impedia os estudantes de estudar fora
do país; os estudantes de Salamanca, em poucas décadas,
reduziram-se à metade; havia 9 mil conventos e o clero se
multiplicava quase tão intensamente quanto a nobreza de
capa e espada; 160 mil estrangeiros monopolizavam o
comércio exterior, e o esbanjamento da aristocracia
condenava a Espanha à impotência econômica. Por volta de
1630, pouco mais de uma centena e meia de duques,
marqueses, condes e viscondes recolhia cinco milhões de
ducados de renda anual, que alimentavam copiosamente o
brilho de seus títulos retumbantes. O duque de Medinaceli
tinha 700 criados, e eram 300 os servidores do grão-duque
de Osuna, que os vestia com sobretudos de pele para
zombar do czar da Rússia.
[9]
O século XVII foi a época da patifaria, da fome e das
epidemias. Era infinita a quantidade de mendigos
espanhóis, mas isto não impedia que também os mendigos
estrangeiros afluíssem de todos os cantos da Europa. Por
volta de 1700, a Espanha contava já com 625 mil fidalgos,
senhores da guerra, embora o país se esvaziasse: sua
população se reduzira à metade em pouco mais de dois
séculos, e era equivalente à da Inglaterra, que no mesmo
período havia duplicado. O ano de 1700 marca o fim do
regime dos Habsburgo. A bancarrota era total. Desemprego
crônico, grandes latifúndios inúteis, moeda caótica,
indústria arruinada, guerras perdidas e tesouros vazios, a
autoridade central desconhecida nas províncias: a Espanha
com que se defrontou Felipe V estava “pouco menos
defunta que seu amo morto”.
[10]
Os Bourbon deram à nação uma aparência mais
moderna, mas em fins do século XVIII o clero espanhol tinha
nada menos do que 200 mil membros, e o resto da
população improdutiva não estancava seu esmagador
desenvolvimento, à custa do subdesenvolvimento do país.
Na época, havia ainda na Espanha mais de 10 mil cidades e
povoados sujeitos à jurisdição senhorial da nobreza e,
portanto, fora do controle direto do rei. Os latifúndios e a
instituição da primogenitura continuavam intatos. Também
continuavam de pé o obscurantismo e o fatalismo. Ainda
não fora superada a época de Felipe IV: em seu tempo, uma
junta de teólogos se reuniu para examinar o projeto de
construção de um canal entre o Manzanares e o Tejo e
acabou concluindo que, se Deus quisesse que os rios
fossem navegáveis, ele mesmo os teria criado assim.
continua na página...51
____________________
____________________
Primeira Parte: A Espanha tinha a vaca, mas outros tomavam o leite[5]
_________________
[1] HAMILTON, op. cit.
[2] Ibid
[3] Citado por OTERO, Gustavo Adolfo, op. cit.
[4] ELLIOTT, op. cit. e HAMILTON, op. cit.
[5] MOUSNIER, Roland. “Los siglos XVI y XVII”. In: CROUZET, Maurice. Historia
general de las civilizaciones. Barcelona, 1967.
[6] VIVES, J. Vicens, director. Historia social y económica de España y América.
Barcelona, 1957. v. II e III.
[7] RAMOS, Jorge Abelardo. Historia de la nación latinoamericana. Buenos Aires,
1968.
[8] ELLIOTT, op. cit.
[9] A espécie não está extinta. Abro uma revista madrilena de fins de 1969 e
leio: morreu dona Teresa Bertrán de Lis y Pidal Gorouski y Chico de Guzmán,
duquesa de Albuquerque e marquesa dos Alcañices e dos Balbases, e a chora o
viúvo duque de Albuquerque, dom Beltrán Alonso Osorio y Díez de Rivera Martos
y Figueroa, marquês dos Alcañices, dos Balbases, de Cadreita, de Cuéllar, de
Cullera, de Montaos, conde de Fuensaldaña, de Grajal, de Huelma, de Ledesma,
de la Torre, de Villanueva de Cañedo, de Villahumbrosa, três vezes Grande de
Espanha.
[10] LYNCH, John. Administración colonial española. Buenos Aires, 1962.
Nenhum comentário:
Postar um comentário