quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Eduardo Galeano: As veias abertas da América Latina - Primeira Parte: A Espanha tinha a vaca, mas outros tomavam o leite[5]

A Pobreza do Homem como resultado da riqueza da terra

PRIMEIRA PARTE 

Febre do ouro, febre da prata

     5. A Espanha tinha a vaca, mas outros tomavam o leite

          Entre 1545 e 1558, descobriram-se as férteis minas de Potosí, na atual Bolívia, e as de Zacatecas e Guanajuato no México; o processo de amálgama com mercúrio, que tornou possível a exploração de prata de menor pureza, começou a ser aplicado no mesmo período. O rush da prata eclipsou rapidamente a mineração do ouro. Em meados do século XVII a prata alcançava mais de 99 por cento das exportações minerais da América Hispânica. [1]
     A América era então uma vasta boca de mina centralizada, sobretudo, em Potosí. Alguns escritores bolivianos, inflamados de excessivo entusiasmo, afirmam que em três séculos a Espanha recebeu metal suficiente como para estender uma ponte de prata desde a grimpa da montanha à porta do palácio real no outro lado do oceano. A imagem, por certo, é obra da fantasia, mas sempre alude a uma realidade que, de fato, parece inventada: o fluxo da prata alcançou gigantescas proporções. A farta exportação clandestina da prata americana, que de contrabando seguia para as Filipinas, para a China e para a própria Espanha, não figura nos cálculos de Earl J. Hamilton [2], que no entanto, a partir de dados obtidos na Casa de Contratação, oferece, em sua conhecida obra sobre o tema, cifras assombrosas. Entre 1503 e 1660, desembarcaram no porto de Sevilha 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. A prata levada para a Espanha em pouco mais de um século e meio excedia três vezes o total das reservas europeias. E essas cifras não incluem o contrabando.
     Os metais arrebatados aos novos domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e até se pode dizer que o tornaram possível. Nem sequer os efeitos da conquista dos tesouros persas que Alexandre Magno derramou sobre o mundo helênico poderiam ser comparados com a magnitude dessa formidável contribuição da América para o progresso alheio. Mas não para o progresso da Espanha, ainda que lhe pertencessem as fontes da prata americana. Como se dizia no século XVII, “a Espanha é como a boca que recebe os alimentos, mastiga-os e os tritura para logo enviá-los aos demais órgãos, e deles não retém senão um gosto furtivo ou as partículas que casualmente aderem aos seus dentes” [3]. Os espanhóis tinham a vaca, mas quem bebia o leite eram os outros. Os credores do reino, estrangeiros em sua maioria, sistematicamente esvaziavam as arcas da Casa de Contratação de Sevilha, encarregada de guardar sob três chaves, em três diferentes mãos, os tesouros da América.
     A Coroa estava hipotecada. Quase todos os carregamentos de prata eram antecipadamente cedidos a banqueiros alemães, genoveses, flamengos e espanhóis [4]. Também grande parte dos impostos tinha a mesma sorte: em 1543, 65 por cento do total das rendas reais se destinava ao pagamento das anuidades dos títulos da dívida. Tão só em mínima proporção a prata americana era aplicada na economia espanhola: embora fosse formalmente registrada em Sevilha, ia parar nas mãos dos Függer, poderosos banqueiros que tinham adiantado para o Papa os fundos necessários para a conclusão da catedral de São Pedro, e de outros grandes prestamistas da época, no estilo dos Welser, dos Shetz ou dos Grimaldi. A prata também se destinava ao pagamento das exportações de mercadorias não espanholas para o Novo Mundo.
     Aquele império rico tinha uma metrópole pobre, ainda que nela a ilusão de prosperidade levantasse bolhas cada vez mais inchadas: a Coroa abria frentes de guerra por todos os lados, enquanto a aristocracia se dedicava ao esbanjamento e se multiplicavam em solo espanhol os padres e os guerreiros, os nobres e os mendigos, ao mesmo e frenético tempo em que aumentavam os preços e as taxas de juro do dinheiro. A indústria morria ao nascer naquele reino de vastos latifúndios estéreis, e a enferma economia espanhola não podia resistir ao brusco impacto da alta demanda de alimentos e mercadorias, a inevitável consequência da expansão colonial. O grande aumento dos gastos públicos e a asfixiante pressão das necessidades de consumo nas possessões de ultramar agravavam o déficit comercial e desencadeavam, a galope, a inflação. Colbert escrevia: “Quanto mais comércio um estado tem com os espanhóis, mais prata tem”. Havia uma dura luta europeia pela conquista do mercado espanhol, que implicava o mercado e a prata da América. Um memorial francês de fins do século XVII nos permite saber que a Espanha, então, só predominava em 5 por cento do comércio com “suas” possessões coloniais do outro lado do oceano, apesar da ilusão jurídica do monopólio: cerca de uma terça parte do total estava na mão de holandeses e flamengos, uma quarta parte pertencia aos franceses, os genoveses controlavam mais de 20 por cento, os ingleses dez e os demais um pouco menos [5]. A América era um negócio europeu.
     Carlos V, herdeiro dos Césares no Sacro Império em eleição comprada, só passou na Espanha dezesseis dos 40 anos de seu reinado. Aquele monarca de queixo proeminente e olhar idiota, que subiu ao trono sem conhecer uma só palavra do idioma castelhano, governava rodeado por um séquito de flamengos rapaces, aos quais entregava salvo-condutos para tirar da Espanha mulas e cavalos carregados de ouro e joias, a par de recompensá-los com a outorga de bispados e arcebispados, títulos burocráticos e até a primeira licença para conduzir escravos negros às colônias americanas. Dedicando-se à perseguição do demônio por toda a Europa, Carlos V exauria o tesouro da América em suas guerras religiosas. A dinastia dos Habsburgo não desapareceu com sua morte; a Espanha ainda padeceria o reinado dos austríacos durante quase dois séculos. O grande paladino da Contra-Reforma foi seu f ilho Felipe II. De seu gigantesco palácio-mosteiro, o Escorial, na encosta do Guadarrama, Felipe II pôs em funcionamento, em escala universal, a terrível máquina da Inquisição, e empurrou seus exércitos para os centros da heresia. O calvinismo se apossara da Holanda, Inglaterra e França, e os turcos encarnavam o perigo de um retorno da religião de Alá. O salvacionismo custava caro: os poucos objetos de ouro e prata que não chegavam do México e do Peru já fundidos eram rapidamente retirados da Casa de Contratação de Sevilha e lançados às bocas dos fornos.
     Ardiam também os hereges ou os suspeitos de heresia, assados pelas chamas purificadoras da Inquisição. Torquemada incendiava os livros e o rabo do diabo reaparecia em todos os cantos: a guerra contra o protestantismo era, sobretudo, a guerra contra o capitalismo ascendente na Europa. “A perpetuação da cruzada”, diz Elliott em sua obra já citada, “aprofundava a perpetuação da arcaica organização social de uma nação de cruzados.” Os metais da América, delírio e ruína da Espanha, proporcionavam meios para campanhas militares contra as nascentes forças da economia moderna. Já Carlos V tinha esmagado a burguesia castelhana na guerra dos comuneros, que se transformara numa revolução social contra a nobreza, suas propriedades e seus privilégios. O levante foi sufocado após a traição da cidade de Burgos, que quatro séculos mais tarde seria a capital do general Francisco Franco; extintos os últimos redutos rebeldes, Carlos V regressou à Espanha acompanhado de quatro mil soldados alemães. Simultaneamente, também foi afogada em sangue a excessivamente radical insurreição de tecedores, fiandeiros e artesãos que tinham tomado o poder na cidade de Valência, estendendo-o a toda a comarca.
     A defesa da fé católica era a máscara da luta contra a história. A expulsão dos judeus – espanhóis de origem judia–, ao tempo dos Reis Católicos, privara a Espanha de muitos artesãos habilidosos e de capitais imprescindíveis. Não se considera de igual importância a expulsão dos árabes – na verdade espanhóis de religião muçulmana –, embora em 1609 nada menos do que 275 mil tenham sido empurrados fronteira afora, com desastrosos efeitos na economia valenciana e nos férteis campos ao sul do Ebro, em Aragão, que ficaram arruinados. Anteriormente, Felipe II, por motivos religiosos, havia expulsado milhares de artesãos flamengos convictos ou suspeitos de protestantismo: a Inglaterra os acolheu e ali deram importante impulso às manufaturas britânicas.
     Como se vê, as enormes distâncias e as difíceis comunicações não eram os principais obstáculos que se opunham ao progresso industrial da Espanha. Os capitalistas espanhóis se transformaram em financistas, através da compra de títulos da dívida da Coroa, e não investiam seus capitais no desenvolvimento industrial. O excedente econômico vertia para os canais improdutivos: os velhos ricos, senhores da faca e do queijo, donos das terras e de títulos de nobreza, levantavam palácios e acumulavam joias; os novos ricos, especuladores e mercadores, compravam terras e títulos de nobreza. Tanto estes quanto aqueles praticamente não pagavam impostos e não podiam ser presos por dívidas. Quem se dedicasse a uma atividade industrial perdia automaticamente sua carta de fidalguia. [6]
     Sucessivos tratados comerciais, firmados em consequência de derrotas militares dos espanhóis na Europa, outorgavam concessões que estimulavam o tráfico marítimo entre o porto de Cádiz, que substituiu Sevilha, e portos franceses, ingleses, holandeses e hanseáticos. A cada ano, entre 800 e 1.000 embarcações descarregavam na Espanha os produtos industrializados dos outros. Eles levavam a prata da América e a lã espanhola, que seguia para os teares estrangeiros e de lá voltava já tecida pela indústria europeia em expansão. Os monopolistas de Cádiz se limitavam a remarcar os produtos industriais estrangeiros, expedindo-os para o Novo Mundo: se as manufaturas espanholas não podiam sequer atender o mercado interno, como haveriam de satisfazer as necessidades das colônias?
     As rendas de Lille e Arraz, os tecidos holandeses, os tapetes de Bruxelas, as armas de Milão e os vinhos e panos da França [7] inundavam o mercado espanhol, às expensas da produção local, para satisfazer os anseios de ostentação e as exigências de consumo dos ricos parasitas, cada vez mais numerosos e poderosos num país cada vez mais pobre. A indústria morria no ovo, e os Habsburgo fizeram todo o possível para acelerar sua extinção. Em meados do século XVI se chegou ao absurdo de autorizar a importação de tecidos estrangeiros ao mesmo tempo em que se proibia a exportação de tecidos castelhanos, a não ser que fossem para a América [8]. Eram bem diferentes, como observou Ramos, as orientações de Henrique VIII e Elizabeth I na Inglaterra: proibiam nessa ascendente nação a saída de ouro e prata, monopolizavam as letras de câmbio, impediam a extração de lã e expulsaram dos portos britânicos os mercadores da Liga Hanseática do Mar do Norte. Entrementes, as repúblicas italianas protegiam seu comércio exterior e sua indústria através de taxas, privilégios e proibições rigorosas: os artífices, sob pena de morte, não podiam deixar o país.
     A ruína se apossava de tudo. Dos 16 mil teares de Sevilha em 1558, por ocasião da morte de Carlos V, restavam 400 quando morreu Felipe II, 40 anos depois. O rebanho ovino andaluz, antes com 7 milhões de cabeças, reduzira-se para 2 milhões. Cervantes retratou em Dom Quixote de la Mancha – romance de grande circulação na América – a sociedade de sua época. Um decreto de meados do século XVI tornava impossível a importação de livros estrangeiros e impedia os estudantes de estudar fora do país; os estudantes de Salamanca, em poucas décadas, reduziram-se à metade; havia 9 mil conventos e o clero se multiplicava quase tão intensamente quanto a nobreza de capa e espada; 160 mil estrangeiros monopolizavam o comércio exterior, e o esbanjamento da aristocracia condenava a Espanha à impotência econômica. Por volta de 1630, pouco mais de uma centena e meia de duques, marqueses, condes e viscondes recolhia cinco milhões de ducados de renda anual, que alimentavam copiosamente o brilho de seus títulos retumbantes. O duque de Medinaceli tinha 700 criados, e eram 300 os servidores do grão-duque de Osuna, que os vestia com sobretudos de pele para zombar do czar da Rússia. [9]
     O século XVII foi a época da patifaria, da fome e das epidemias. Era infinita a quantidade de mendigos espanhóis, mas isto não impedia que também os mendigos estrangeiros afluíssem de todos os cantos da Europa. Por volta de 1700, a Espanha contava já com 625 mil fidalgos, senhores da guerra, embora o país se esvaziasse: sua população se reduzira à metade em pouco mais de dois séculos, e era equivalente à da Inglaterra, que no mesmo período havia duplicado. O ano de 1700 marca o fim do regime dos Habsburgo. A bancarrota era total. Desemprego crônico, grandes latifúndios inúteis, moeda caótica, indústria arruinada, guerras perdidas e tesouros vazios, a autoridade central desconhecida nas províncias: a Espanha com que se defrontou Felipe V estava “pouco menos defunta que seu amo morto”. [10]
     Os Bourbon deram à nação uma aparência mais moderna, mas em fins do século XVIII o clero espanhol tinha nada menos do que 200 mil membros, e o resto da população improdutiva não estancava seu esmagador desenvolvimento, à custa do subdesenvolvimento do país. Na época, havia ainda na Espanha mais de 10 mil cidades e povoados sujeitos à jurisdição senhorial da nobreza e, portanto, fora do controle direto do rei. Os latifúndios e a instituição da primogenitura continuavam intatos. Também continuavam de pé o obscurantismo e o fatalismo. Ainda não fora superada a época de Felipe IV: em seu tempo, uma junta de teólogos se reuniu para examinar o projeto de construção de um canal entre o Manzanares e o Tejo e acabou concluindo que, se Deus quisesse que os rios fossem navegáveis, ele mesmo os teria criado assim.

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[1] HAMILTON, op. cit.
[2] Ibid
[3] Citado por OTERO, Gustavo Adolfo, op. cit.
[4] ELLIOTT, op. cit. e HAMILTON, op. cit.
[5] MOUSNIER, Roland. “Los siglos XVI y XVII”. In: CROUZET, Maurice. Historia general de las civilizaciones. Barcelona, 1967.
[6] VIVES, J. Vicens, director. Historia social y económica de España y América. Barcelona, 1957. v. II e III.
[7] RAMOS, Jorge Abelardo. Historia de la nación latinoamericana. Buenos Aires, 1968.
[8] ELLIOTT, op. cit.
[9] A espécie não está extinta. Abro uma revista madrilena de fins de 1969 e leio: morreu dona Teresa Bertrán de Lis y Pidal Gorouski y Chico de Guzmán, duquesa de Albuquerque e marquesa dos Alcañices e dos Balbases, e a chora o viúvo duque de Albuquerque, dom Beltrán Alonso Osorio y Díez de Rivera Martos y Figueroa, marquês dos Alcañices, dos Balbases, de Cadreita, de Cuéllar, de Cullera, de Montaos, conde de Fuensaldaña, de Grajal, de Huelma, de Ledesma, de la Torre, de Villanueva de Cañedo, de Villahumbrosa, três vezes Grande de Espanha.
[10] LYNCH, John. Administración colonial española. Buenos Aires, 1962.

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