segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap I - Depois que Swann foi embora)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Primeiro
Segunda Parte

continuando...

     Depois que Swann foi embora, voltei para o grande salão onde, encontrava essa princesa de Guermantes à qual eu não sabia então que dia haveria de estar tão ligado. A paixão que ela teve pelo Sr. de Charlus, não se revelou a princípio para mim. Notei apenas que o barão, a partir de certa época e sem tomar pela princesa nenhuma dessas inimizades que nele não causavam espécie, mesmo continuando a dedicar-lhe tanta má afeição talvez, parecia descontente e irritado cada vez que lhe falavam dela. Jamais incluía o seu nome na lista de pessoas com quem desejava jantar. É verdade que, antes disso, eu ouvira um homem da sociedade muito maldoso, dizer que a princesa estava completamente mudada, ela estava apaixonada pelo Sr. de Charlus, mas essa maledicência me parecia absurda e me havia indignado. Bem que eu notara, com espanto, que quando contava algo que me dizia respeito, se no meio da narrativa aparecia o Sr. de Charlus, a atenção da princesa punha-se logo nesse grau mais próximo que é o de um doente, o qual, ao ouvir-nos falar de nós mesmos, consequentemente de modo distraído e despreocupado, reconhece de chofre numa palavra, o nome do mal de que está sofrendo, o que, ao mesmo tempo, o alegra e desperta-lhe o interesse. Assim, se lhe dizia: "Justamente Sr. de Charlus me contava...", a princesa retomava nas mãos as rédeas frouxas de sua atenção. E certa vez, tendo eu dito diante dela que o Sr. Charlus sentia uma afeição bastante viva por determinada pessoa, vi o espanto surgir nos olhos da princesa aquela expressão diversa e momentânea que traça nas pupilas como que o sulco de uma rachadura, e que provém de um pensamento que nossas palavras, sem querer, despertaram na criatura a quem falamos, pensamento secreto que não se há de traduzir por palavras, mas que subirá das profundezas por nós remexidas à superfície um instante alterada do olhar. Mas, se minhas palavras tinham emocionado a princesa, eu não adivinhara de que modo. Aliás, pouco depois ela começou a me falar do Sr. de Charlus e quase sem rodeios. Se aludia aos rumores que raras pessoas faziam correr acerca do barão, era apenas como as absurdas e infames invenções. Mas, por outro lado, dizia: 

- Acho que uma mulher que se apaixona por um homem de valor imenso como Palamede também deveria ter bastante largueza de visão, bastante devotamento, para aceitá-lo e compreendê-lo como um todo, tal como é, para respeitar sua liberdade, suas fantasias, procurar unicamente amenizar-lhe as dificuldades e consolá-lo de suas mágoas. -

     Ora, com essas frases no entanto de tal modo vagas, a princesa de Guermantes revelava aquilo que buscava exaltar, da mesma forma como fazia às vezes o próprio Sr. de Charlus. Pois não ouvi tantas vezes este último dizer a pessoas até então incertas se ele era ou não caluniado: "Eu, que tive tantos altos e baixos na minha vida, que conheci toda espécie de gente, tanto reis como ladrões, e até, devo dizer, com uma leve preferência pelos ladrões, que tenho perseguido a beleza sob todas as suas formas, etc." e por essas palavras que ele julgava hábeis, e desmentindo rumores de cuja existência não suspeitavam (ou para conceder à verdade, por gosto, por cautela, por preocupação com a verossimilhança, uma parte que somente ele considerava mínima), tirava a uns as últimas dúvidas a seu respeito e inspirava as primeiras aos que ainda não as tinham alimentado. Pois o mais perigoso dos encobrimentos é o da própria falta no espírito do culpado. O conhecimento permanente que tem dela o impede de supor o quanto é geralmente ignorada, o quanto uma mentira completa seria facilmente aceita e, em compensação, de perceber a que grau de verdade principia a confissão, para os outros, nas palavras que acredita inocentes. E, por outro lado, agiria muito mal se tentasse abafá-la, pois não há vícios que não encontrem apoios complacentes na alta sociedade, e já se viu modificar todo o arranjo de um castelo para que dormisse uma irmã junto de sua irmã, logo que se soube que ela não a amava apenas como irmã. Mas o que me revelou de súbito o amor da princesa foi um fato particular, sobre o qual não insistirei aqui, pois faz parte da narrativa bem diversa em que o Sr. de Charlus deixou morrer uma rainha para não perder o cabeleireiro que devia frisá-lo, em proveito de um cobrador de ônibus diante do qual sentiu-se prodigiosamente intimidado. Entretanto, para terminar a respeito do amor da princesa, digamos qual foi o nada que me abriu os olhos. Naquilo eu estava sozinho no carro com ela. No momento em que passávamos diante de uma caixa postal, ela mandou parar. Não havia trazido lacaio, a meio uma carta do regalo e iniciou o movimento de descer a fim de ir à caixa. Eu quis detê-la, a princesa debateu-se um pouco, e já nos demos conta, um e outro, de que o nosso primeiro gesto fora, o seu comprometedor, por parecer que ocultava um segredo, o meu indiscreto, ao perceber essa ocultação. Foi ela quem se recobrou mais depressa. Fazendo-se muito vermelha subitamente, deu-me a carta, não mais tive coragem de recusá-la; porém, ao colocá-la na caixa, vi sem querer que era endereçada ao Sr. de Charlus. 
     Voltando para trás e àquela primeira recepção na casa da princesa de Guermantes, fui fazer-lhe minhas despedidas, pois seus primos iam levar-me e tinham muita pressa. No entanto, o Sr. de Guermantes quis despedir-se do irmão. Tendo a Sra. de Surgis tido tempo, numa porta de dizer ao duque que o Sr. de Charlus fora encantador com ela e com seus filhos, essa grande amabilidade do irmão, a primeira que tivera em tal exposição de ideias, tocou profundamente Basin e despertou-lhe sentimentos; e na família que jamais adormeciam por muito tempo. No momento em que nos despedíamos da princesa, ele, sem agradecer expressamente ao Sr. de Charlus, fez questão de lhe exprimir o seu afeto, ou porque de fato tivesse dificuldades em contê-lo, ou porque o barão se lembrou de que o tipo de atitudes que tivera aquela noite não passaria despercebido aos olhos do irmão, do mesmo modo como, para lhe criar no futuro associações saudáveis, a gente dá açúcar a um cachorro que se pôs nas patas traseiras. 

- Ora bem, irmãozinho - disse o duque detendo o Sr. de Charlus e pegando-o docemente pelo braço -, é assim que se passa pelo irmão mais velho ser nem sequer dar boa-noite? Não te vejo mais, Mémé, e nem sabes como isto me faz falta. Procurando cartas antigas, encontrei justamente as da pobre mamãe, todas tão carinhosas contigo. 
- Obrigado, Basin - respondeu o Sr. de Charlus com voz alterada, pois nunca podia falar da mãe sem emoção. 
- Deverias te decidir a me deixar instalar um pavilhão para ti em Guermantes - prosseguiu o duque. 
- É lindo ver dois irmãos tão carinhosos um com o outro - disse a princesa a Oriane. - Ah, duvido que possam existir muitos irmãos como estes. Eu o convidarei com o barão - prometeu-me a duquesa. - Vocês não estão de mal?... Mas o que é que eles podem ter para se falar? acrescentou em tom inquieto, pois ouviu indistintamente as palavras deles. Sempre tivera um certo ciúme do prazer que o Sr. de Guermantes experimentava em conversar com o irmão sobre um passado de que mantinha um tanto afastada a esposa. Esta sentia quando os dois estavam felizes por se acharem assim juntos e ela, não podendo mais conter sua impaciente curiosidade, ia para perto deles, sua chegada lhes causava desagrado. Mas, naquela noite, a esse habitual ciúme acrescentava-se outro. Pois, se a Sra. de Surgis contara ao Sr. de Guermantes as atenções de seu irmão, a fim de que fosse agradecê-las, ao mesmo tempo algumas amigas devotadas do casal Guermantes julgaram dever avisar a duquesa de que a amante de seu marido fora vista conversando com o irmão deste. E a Sra. de Guermantes se atormentava com isso. 
- Lembra-te como éramos felizes outrora em Guermantes - continuou o duque, dirigindo-se ao Sr. de Charlus. - Se aparecesses por lá algumas vezes no verão, poderíamos recomeçar a nossa boa vida. Lembras-te do velho Courveau: "por que é que Pascal é troublant? 
- Porque é trou... trou..." - pronunciou o Sr. de Charlus como se respondesse ainda ao professor. - "E por que é que Pascal é troublé? Porque é trou... trou... 
- Muito bem, o senhor será aprovado, certamente receberá uma menção, e a senhora duquesa lhe dará um dicionário de chinês." 
- Pois tu te lembras, Basin, naquela época eu tinha uma paixão pela China. 
- Se me lembro, meu querido Mémé! E creio ver ainda o velho jarrão que te trouxera Hervey de Saint-Denis. Ameaçavas ir passar definitivamente a tua vida na China, de tão apaixonado que estavas por aquele país; já gostavas de fazer longas vagabundagens. Ah, foste um tipo especial, pois pode-se dizer que nunca, em coisa alguma, tiveste os mesmos gostos de todo mundo... -

     Mas apenas dissera tais palavras, o duque enrubesceu, pois conhecia, se não os costumes, ao menos a reputação do irmão. Como jamais lhe falara naquilo, estava tanto mais constrangido por ter dito algo que podia parecer relacionar-se com o caso, e mais ainda por ter se mostrado constrangido. Após um segundo de silêncio: 

- Quem sabe - disse ele para desfazer suas últimas palavras - se não estavas apaixonado por uma chinesa, antes de amar a tantas brancas, e lhes agradares, a julgar por uma certa dama a quem deste muita satisfação esta noite ao conversar com ela. Ela ficou encantada contigo.  

     O duque havia prometido a si próprio não falar da Sra. de Surgis, mas, em meio à confusão que a gafe que acabara de cometer lançara nas suas idéias, apegara-se à mais próxima, que era justamente aquela que não devia aparecer na conversa, embora a tivesse motivado. Mas o Sr. de Charlus notara o rubor do irmão. E como os culpados que não desejam parecer embaraçados quando se fala diante deles do crime que pretendem não ter cometido, e julgam dever prolongar uma conversação perigosa: 

- Estou encantado - respondeu-lhe -; mas faço questão de reportar-me à tua frase anterior, que me parece profundamente verdadeira. Tu dizias que nunca tive as mesmas ideias de todo mundo, não dizias ideias, dizias gostos. Como é exato! Nunca tive em coisa alguma os gostos mundo; como é exato! Tu dizias que eu tinha gostos especiais. 
- Absolutamente não - protestou o Sr. de Guermantes, que de fato não disse palavras e talvez não acreditasse na realidade, no caso do irmão, só elas designam. E, além disso, julgar-se ia por acaso no direito de comentá-lo devido à singularidades que, de qualquer maneira, tinham percebido bastante duvidosas ou bastante secretas para não prejudicar a excepcional posição de Charlus? Mais ainda, sentindo que essa posição do irmão ia colocar-se a serviço de suas amantes, o duque dizia consigo que aquilo bem valia algumas complacências em troca; se tivesse, no momento, conhecido alguma ligação "especial" do irmão, ele, na esperança do apoio que o irmão lhe daria, esperança unida à piedosa lembrança do tempo passado, teria passado por cima, fechando os olhos a tudo, caso necessário, até estenderia a mão. 
- Vamos, Basin; boa-noite, Pamede. - disse a duquesa, roída de raiva e de curiosidade; -se resolveram passar a noite aqui, é melhor que fiquemos para a ceia. Faz meia hora que nos deixam de pé, a Marie e a mim. -  

     O duque deixou o irmão a um abraço significativo; e nós três descemos a escadaria imensa do palácio da princesa. Dos dois lados, nos degraus mais altos, espalhavam-se casais que esperavam que seu carro aparecesse. Ereta, isolada, ladeada por mim e pelo marido, a duquesa mantinha-se à esquerda da escadaria, já envolta em seu manto à Tiepolo, o broche de rubis fechando-lhe a garganta, devorada pelos olhos das mulheres e dos homens, que procuravam surpreender o segredo da sua beleza e da sua elegância. Esperando o seu carro no mesmo degrau da escada da Sra. de Guermantes, mas na extremidade oposta, a Srt. de Gallardon, que desde muito perdera toda a esperança de ser um dia visitada por sua prima, virava as costas para não parecer vê-la, e sobretudo para não oferecer a prova de que esta não a cumprimentava. A Sra. de Gallardon estava de muito mau humor, pois os senhores que a acompanhavam tinham julgado dever falar-lhe de Oriane: 

- Absolutamente, não faço questão nenhuma de vê-la - respondera-lhes; aliás, avistei-a há pouco, ela principia a envelhecer; parece que não consegue se acostumar. O próprio Basin foi quem disse. E bem o compreendo, pois, como não possui inteligência, é malvada e tem maus modos, percebe que, quando lhe faltar a beleza, não terá mais absolutamente nada.

     Eu pusera meu sobretudo, o que o Sr. de Guermantes, que receava gripes, censurou ao descer comigo, por causa do calor que fazia. E a geração de nobres, que mais ou menos havia passado por monsenhor Saint-Loup, fala um francês tão ruim (à exceção dos Castellane), que o duque assim exprimiu seu pensamento: 

- É preferível não estar coberto antes de ir para fora, pelo menos em tese geral.

     Revejo toda esta saída, revejo, se não é por engano que coloco esta cena na escadaria, retrato destacado de seu quadro, o príncipe de Sagan, para quem seria essa a última recepção mundana, descobrir-se para render suas homenagens à duquesa, com uma revolução tão ampla do chapéu alto na mão de branco enluvada, combinando com a gardênia da botoeira, que a gente se espantava de que não fosse um chapéu de feltro, ornado de plumas, do Antigo Regime, do qual várias figuras ancestrais estavam perfeitamente reproduzidas na daquele grão-senhor.
     Pouco se deteve junto dela, porém mesmo as suas atitudes de um momento bastavam para compor todo um quadro vivo e como que uma cena histórica. Por outro lado, como está morto desde então e eu mal o avistara quando vivo, de tal modo tornou-se para mim um personagem histórico, ao menos da história mundana, que ocorre espantar-me ao pensar que uma mulher e um homem de meu conhecimento sejam sua irmã e seu sobrinho.
     Enquanto descíamos as escadas, ia subindo, com um ar de fadiga que bem lhe assentava, uma mulher aparentando quarenta anos, mas que deveria ter mais. Era a princesa d'Orvillers, filha natural, conforme diziam, do duque de Parma, e cuja voz suave se escondia num vago acento austríaco. Ela avançava, alta, inclinada, num vestido de seda branco e florido, deixando ofegar o colo delicioso, palpitante e exausto através de um colar de diamantes e de safiras. Sempre sacudindo a cabeça como uma potranca real que se embaraçasse com seu cabresto de pérolas, de valor inestimável e de peso incômodo, pousava aqui e ali os olhares doces e encantadores, de um azul que, à medida que principiava a desgastar-se, tornava-se ainda mais acariciante e fazia à maioria dos convidados que se retiravam um aceno amigável de cabeça. 

- Que bela hora arranjou para chegar, Paulette! - disse a duquesa. 
- Ah, lamento muito! Mas na verdade não houve possibilidade material - respondeu a princesa d'Orvillers, que tomara emprestado à duquesa de Guermantes esse gênero de frases, mas acrescentava-lhe a sua doçura natural e o ar de sinceridade conferido pela energia de um acento vagamente doce numa voz tão suave. Ela dava a impressão de aludir a contratempos de vida muito longos para narrar, e não vulgarmente às recepções, embora naquele momento regressasse de várias delas. Mas não eram estas que a forçavam a vir tão tarde. Como o príncipe de Guermantes houvesse impedido sua mulher, durante longos anos, de receber a Sra. d'Orvillers, esta, quando foi levantada a proibição, contentara-se em responder aos convites, para não dar a entender que estava sequiosa por eles, com simples cartões de visitas deixados no palácio. Ao fim de dois ou três anos de utilização desse método, ela própria comparecia, mais tarde, como se estivesse voltando do teatro. Dessa forma, dava a impressão de não ligar a mínima para a recepção, nem de ser vista ali, simplesmente fazendo uma visita ao príncipe e à princesa somente por simpatia, no momento em que, tendo já ido embora três quartos dos convidados, ela "gozaria mais a presença deles". 
- Oriane, de fato, - ao último degrau resmungou a Sra. de Gallardon. - Não compreendo como Basin a deixa falar à Sra. d'Orvillers. Não é o Sr. de Gallardon que me permitiria fazer isto. -

     Quanto a mim, reconhecera na Sra. d'Orvillers mulher que, perto do palácio Guermantes, lançara-me longos olfatos, langorosos, virava-se, parava diante das vitrines das lojas. A Sra. de. Guermantes me apresentou; a Sra. d'Orvillers foi encantadora, nem muito amável nem constrangida. Olhou-me como a todo mundo com seus olhos verdes... Porém nunca mais, quando a encontrasse, eu deveria receber parte de um só daqueles avanços em que ela parecia oferecer se. Existem olhares especiais que parecem nos reconhecer, e que um rapaz só recebe de certas mulheres e de certos homens até o dia em que nos conhecem e ficam sabendo que somos amigos de pessoas a que também estão ligados.
     Anunciaram que o carro já avançara. A Sra. de Guermantes puxou a saia vermelha, como para descer a escada e subir ao carro, mas, animada talvez pelo remorso, ou pelo desejo de agradar e, sobretudo, de aproveitar a brevidade que o impedimento material de prolongá-lo impunha um ato tão tedioso, olhou para a Sra. de Gallardon; depois, como se somente então a tivesse avistado, atravessou todo o comprimento do degrau até descer e, tendo chegado à prima deslumbrada, estendeu-lhe a mão. 

- Há quanto tempo! - disse-lhe a duquesa que, para não ser obrigada a desenvolver tudo o que se continha de pesar e de desculpas legítimas nessa fórmula, voltou-se com ar assustado para o duque, o qual, de fato, tinha descido comigo em direção ao carro, esbravejava ao ver que a mulher seguira em direção à Sra. de Gallardon e interrompia a circulação dos outro carros. 
- Oriane ainda está mesmo muito bonita! - disse a Sra. do Gallardon. - Fazem-me rir as pessoas quando dizem que não nos damos bem; por motivos em que não precisamos meter os outros, podemos ficar anos e anos sem nos vermos; mas temos bastantes recordações comuns para que possamos algum dia ficar afastadas, e, no fundo, ela bem sabe que a estimo ainda mais que muitas pessoas a quem vê todos os dias e que nos são do seu sangue. -

     A Sra. de Gallardon era na verdade como esposos amorosos desdenhados que a todo transe querem fazer acreditar que e mais amados do que aqueles escolhidos por sua bela. E pelos elos que, sem se preocupar com a contradição com o que havia dito pouco antes, ela prodigalizava ao falar da duquesa de Guermantes provava indiretamente que esta possuía a fundo as normas que devem orientar em sua carreira a uma rainha da elegância, a qual, na ocasião mesma em que seu vestido mais maravilhoso excita, além da admiração, a inveja, deve saber atravessar uma escadaria inteira para desarmá-la. 

- Pelo menos, presta atenção para não molhar os sapatos - (pois havia caído uma breve pancada de chuva) - disse o duque, que ainda estava furioso por ter esperado.

     Durante a volta, devido à exiguidade do cupê, os sapatos vermelhos se achavam forçosamente pouco afastados dos meus; e a Sra. de Guermantes, receando até que me houvessem tocado, disse ao duque: 

- Este rapaz vai ser obrigado a dizer-me, como em não sei mais qual caricatura: "Senhora, diga logo que me ama, mas não pise meus pés desse jeito." -

     Aliás, meus pensamentos andavam bem longe da Sra. de Guermantes. Desde que Saint Loup me falara de uma moça de alta linhagem que frequentava um bordel e da camareira da baronesa Putbus, era nessas duas pessoas que, em bloco, se resumiam os desejos que me inspiravam diariamente tantas beldades de ambas as classes; de uma parte, as vulgares e magníficas, as majestosas camareiras de casa nobre, cheias de orgulho, e que dizem "nós" ao falar das duquesas; de outra parte, aquelas moças de que às vezes me bastava, mesmo sem as ter visto passar de carro ou a pé, ter lido o nome num noticiário de baile para me enamorar delas e, depois de procurar conscienciosamente no anuário dos castelos o lugar onde passavam o verão (muitas vezes deixando-me iludir por um nome parecido), sonhar, alternativamente, ir habitar as planícies do Oeste, as dunas do Norte e os bosques de pinheirais do Sul. Mas, por mais que fundisse inteira toda a matéria carnal mais requintada para compor, conforme o ideal que me traçara Saint-Loup, a jovem leviana e a camareira da Sra. Putbus, faltava às minhas duas beldades possíveis aquilo que eu ignoraria enquanto as não tivesse visto: o caráter individual. Em vão eu devia esgotar-me para tentar imaginar, durante os meses em que o meu desejo se dirigia de preferência às moças, como era feita e quem seria aquela de quem Saint-Loup me havia falado; e, durante os meses em que teria preferido uma camareira, a da Sra. Putbus. Mas que tranquilidade, depois de ter sido perpetuamente perturbado por meus desejos inquietos, por tantas criaturas fugitivas de quem muitas vezes nem mesmo sabia os nomes, que de todo jeito eram tão difíceis de encontrar, e mais ainda de conhecer, impossíveis talvez de conquistar, o haver reservado, de toda essa beleza esparsa, fugidia, anônima, dois espécimes de elite, munidos de sua ficha identificadora, e que eu pelo menos tinha certeza de conseguir quando quisesse! Adiava a hora de entregar-me a esse duplo prazer, como adiava a do trabalho, mas a certeza de quando quisesse quase me dispensava de agarrá-lo, como esses compridos soporíferos que é bastante ter ao alcance da mão para não precisar deles e adormecer. No universo inteiro eu não desejava mais que, mulheres das quais, é verdade, não conseguia imaginar o rosto, mas quem Saint-Loup me ensinara os nomes e garantira a complacência modo que, se por suas palavras de há pouco havia fornecido um trabalho à minha imaginação, em compensação proporcionara um aprazível descanso, um repouso duradouro à minha vontade. 

- Pois bem - disse-me a duquesa. - Fora os bailes, não poder lhe ser útil de algum modo? Encontrou algum salão onde deseja quem apresente? -

     Respondi-lhe que temia que o único que desejava conhecer não fosse suficientemente distinto para ela. 

- Qual é? - indagou ela com voz rouca e ameaçadora, sem quase abrir a boca. 
- A baronesa Putbus -

     Desta vez, ela fingiu verdadeira cólera. 

- Ah, não! Isso é que não. Está zombando de mim. Nem sei mesmo por qual acaso sei o nome desse camelo. Pois ela é o lodo da sociedade. É como se o senhor me dissesse que o apresentasse à minha caixeira. E, mesmo assim, não; a minha caixeira é encantadora. Você é meio doido, meu pobre rapaz. Em todo caso peço-lhe por favor, seja polido para com as pessoas a quem o apresento deixe-lhes cartões, vá visitá-las e não lhes fale da baronesa Putbus, que é desconhecida. -

     Perguntei-lhe se a Sra. d'Orvillers não era um tanto leviana. 

- Oh, de jeito nenhum, o senhor está confundindo, ela seria antes presunçosa. Não é mesmo, Basin? 
- Sim; de qualquer modo, creio que nunca houve o que dizer a seu respeito - disse o duque. - Não quer ir conosco ao baile à fantasia? - perguntou-me - Eu lhe emprestaria um manto veneziano e sei de alguém que terá enorme satisfação com isso; primeiro a Oriane, é escusado dizer, mas estou me referindo à princesa de Parma. Todo o tempo ela entoa os seus louvores, só jura pelo senhor. O amigo tem a sorte visto ser a princesa um tanto madura de que ela seja de uma pudicícia absoluta. Não fosse isso, certamente o tomaria como chichisbéu, como se dizia na minha juventude, uma espécie de cavaleiro servidor.

     Eu não fiz questão do baile à fantasia, mas do encontro com Albertine. Portanto, recusei. O carro havia parado, o lacaio bateu no portão principal, os cavalos escarvaram até que ele fosse escancarado, e o carril penetrou no pátio. - Até mais ver - disse o duque. 

- Às vezes, tenho lastimado morar assim tão perto de Marie - disse a duquesa porque; gosto muito dela, gosto um pouquinho menos de vê-la. Mas nunca lastimo essa proximidade tanto como esta noite, pois isto me faz ficar tão pouco tempo em sua companhia.
- Vamos, Oriane, nada de discursos. -

     A duquesa desejaria que eu entrasse por um momento em sua casa. Riu muito, bem como o duque, quando eu disse que não podia porque uma moça devia me fazer uma visita precisamente àquela hora. 

- O senhor tem uma hora muito divertida para receber suas visitas - disse a duquesa. 
- Vamos, minha querida, despachemo-nos - disse o Sr. de Guermantes à mulher. - Faltam quinze para a meia-noite e é hora de a gente se fantasiar... -  

continua na página 57...
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Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I -  Depois que Swann foi embora) 
Volume 6
Volume 7

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