volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Segunda Parte
continuando...
Depois que Swann foi embora, voltei para o grande salão onde, encontrava essa princesa de Guermantes à qual eu não sabia então que dia haveria de estar tão ligado. A paixão que ela teve pelo Sr. de Charlus, não se revelou a princípio para mim. Notei apenas que o barão, a partir de certa época e sem tomar pela princesa nenhuma dessas inimizades que nele não causavam espécie, mesmo continuando a dedicar-lhe tanta má afeição talvez, parecia descontente e irritado cada vez que lhe falavam dela. Jamais incluía o seu nome na lista de pessoas com quem desejava jantar. É verdade que, antes disso, eu ouvira um homem da sociedade muito maldoso, dizer que a princesa estava completamente mudada, ela estava apaixonada pelo Sr. de Charlus, mas essa maledicência me parecia absurda e me havia indignado. Bem que eu notara, com espanto, que quando contava algo que me dizia respeito, se no meio da narrativa aparecia o Sr. de Charlus, a atenção da princesa punha-se logo nesse grau mais próximo que é o de um doente, o qual, ao ouvir-nos falar de nós mesmos, consequentemente de modo distraído e despreocupado, reconhece de chofre numa palavra, o nome do mal de que está sofrendo, o que, ao mesmo tempo, o alegra e desperta-lhe o interesse. Assim, se lhe dizia: "Justamente Sr. de Charlus me contava...", a princesa retomava nas mãos as rédeas frouxas de sua atenção. E certa vez, tendo eu dito diante dela que o Sr. Charlus sentia uma afeição bastante viva por determinada pessoa, vi o espanto surgir nos olhos da princesa aquela expressão diversa e momentânea que traça nas pupilas como que o sulco de uma rachadura, e que provém de um pensamento que nossas palavras, sem querer, despertaram na criatura a quem falamos, pensamento secreto que não se há de traduzir por palavras, mas que subirá das profundezas por nós remexidas à superfície um instante alterada do olhar. Mas, se minhas palavras tinham emocionado a princesa, eu não adivinhara de que modo. Aliás, pouco depois ela começou a me falar do Sr. de Charlus e quase sem rodeios. Se aludia aos rumores que raras pessoas faziam correr acerca do barão, era apenas como as absurdas e infames invenções. Mas, por outro lado, dizia:
- Acho que uma mulher que se apaixona por um homem de valor imenso como Palamede
também deveria ter bastante largueza de visão, bastante devotamento, para aceitá-lo e
compreendê-lo como um todo, tal como é, para respeitar sua liberdade, suas fantasias, procurar
unicamente amenizar-lhe as dificuldades e consolá-lo de suas mágoas. -
Ora, com essas frases no entanto de tal modo vagas, a princesa de Guermantes revelava
aquilo que buscava exaltar, da mesma forma como fazia às vezes o próprio Sr. de Charlus. Pois
não ouvi tantas vezes este último dizer a pessoas até então incertas se ele era ou não caluniado:
"Eu, que tive tantos altos e baixos na minha vida, que conheci toda espécie de gente, tanto reis
como ladrões, e até, devo dizer, com uma leve preferência pelos ladrões, que tenho perseguido a
beleza sob todas as suas formas, etc." e por essas palavras que ele julgava hábeis, e
desmentindo rumores de cuja existência não suspeitavam (ou para conceder à verdade, por
gosto, por cautela, por preocupação com a verossimilhança, uma parte que somente ele
considerava mínima), tirava a uns as últimas dúvidas a seu respeito e inspirava as primeiras aos
que ainda não as tinham alimentado. Pois o mais perigoso dos encobrimentos é o da própria falta
no espírito do culpado. O conhecimento permanente que tem dela o impede de supor o quanto é
geralmente ignorada, o quanto uma mentira completa seria facilmente aceita e, em compensação,
de perceber a que grau de verdade principia a confissão, para os outros, nas palavras que
acredita inocentes. E, por outro lado, agiria muito mal se tentasse abafá-la, pois não há vícios que
não encontrem apoios complacentes na alta sociedade, e já se viu modificar todo o arranjo de um
castelo para que dormisse uma irmã junto de sua irmã, logo que se soube que ela não a amava
apenas como irmã. Mas o que me revelou de súbito o amor da princesa foi um fato particular,
sobre o qual não insistirei aqui, pois faz parte da narrativa bem diversa em que o Sr. de Charlus
deixou morrer uma rainha para não perder o cabeleireiro que devia frisá-lo, em proveito de um
cobrador de ônibus diante do qual sentiu-se prodigiosamente intimidado. Entretanto, para terminar
a respeito do amor da princesa, digamos qual foi o nada que me abriu os olhos. Naquilo eu estava
sozinho no carro com ela. No momento em que passávamos diante de uma caixa postal, ela
mandou parar. Não havia trazido lacaio, a meio uma carta do regalo e iniciou o movimento de
descer a fim de ir à caixa. Eu quis detê-la, a princesa debateu-se um pouco, e já nos demos conta,
um e outro, de que o nosso primeiro gesto fora, o seu comprometedor, por parecer que ocultava
um segredo, o meu indiscreto, ao perceber essa ocultação. Foi ela quem se recobrou mais
depressa. Fazendo-se muito vermelha subitamente, deu-me a carta, não mais tive coragem de
recusá-la; porém, ao colocá-la na caixa, vi sem querer que era endereçada ao Sr. de Charlus.
Voltando para trás e àquela primeira recepção na casa da princesa de Guermantes, fui
fazer-lhe minhas despedidas, pois seus primos iam levar-me e tinham muita pressa. No entanto, o
Sr. de Guermantes quis despedir-se do irmão. Tendo a Sra. de Surgis tido tempo, numa porta de
dizer ao duque que o Sr. de Charlus fora encantador com ela e com seus filhos, essa grande
amabilidade do irmão, a primeira que tivera em tal exposição de ideias, tocou profundamente
Basin e despertou-lhe sentimentos; e na família que jamais adormeciam por muito tempo. No
momento em que nos despedíamos da princesa, ele, sem agradecer expressamente ao Sr. de
Charlus, fez questão de lhe exprimir o seu afeto, ou porque de fato tivesse dificuldades em contê-lo, ou porque o barão se lembrou de que o tipo de atitudes que tivera aquela noite não passaria
despercebido aos olhos do irmão, do mesmo modo como, para lhe criar no futuro associações
saudáveis, a gente dá açúcar a um cachorro que se pôs nas patas traseiras.
- Ora bem, irmãozinho - disse o duque detendo o Sr. de Charlus e pegando-o docemente
pelo braço -, é assim que se passa pelo irmão mais velho ser nem sequer dar boa-noite? Não te
vejo mais, Mémé, e nem sabes como isto me faz falta. Procurando cartas antigas, encontrei
justamente as da pobre mamãe, todas tão carinhosas contigo.
- Obrigado, Basin - respondeu o Sr. de Charlus com voz alterada, pois nunca podia falar da
mãe sem emoção.
- Deverias te decidir a me deixar instalar um pavilhão para ti em Guermantes - prosseguiu
o duque.
- É lindo ver dois irmãos tão carinhosos um com o outro - disse a princesa a Oriane. - Ah,
duvido que possam existir muitos irmãos como estes. Eu o convidarei com o barão - prometeu-me
a duquesa. - Vocês não estão de mal?... Mas o que é que eles podem ter para se falar?
acrescentou em tom inquieto, pois ouviu indistintamente as palavras deles. Sempre tivera um
certo ciúme do prazer que o Sr. de Guermantes experimentava em conversar com o irmão sobre
um passado de que mantinha um tanto afastada a esposa. Esta sentia quando os dois estavam
felizes por se acharem assim juntos e ela, não podendo mais conter sua impaciente curiosidade,
ia para perto deles, sua chegada lhes causava desagrado. Mas, naquela noite, a esse habitual
ciúme acrescentava-se outro. Pois, se a Sra. de Surgis contara ao Sr. de Guermantes as atenções
de seu irmão, a fim de que fosse agradecê-las, ao mesmo tempo algumas amigas devotadas do
casal Guermantes julgaram dever avisar a duquesa de que a amante de seu marido fora vista
conversando com o irmão deste. E a Sra. de Guermantes se atormentava com isso.
- Lembra-te como éramos felizes outrora em Guermantes - continuou o duque, dirigindo-se
ao Sr. de Charlus. - Se aparecesses por lá algumas vezes no verão, poderíamos recomeçar a
nossa boa vida. Lembras-te do velho Courveau: "por que é que Pascal é troublant?
- Porque é trou... trou..." - pronunciou o Sr. de Charlus como se respondesse ainda ao
professor. - "E por que é que Pascal é troublé? Porque é trou... trou...
- Muito bem, o senhor será aprovado, certamente receberá uma menção, e a senhora
duquesa lhe dará um dicionário de chinês."
- Pois tu te lembras, Basin, naquela época eu tinha uma paixão pela China.
- Se me lembro, meu querido Mémé! E creio ver ainda o velho jarrão que te trouxera
Hervey de Saint-Denis. Ameaçavas ir passar definitivamente a tua vida na China, de tão
apaixonado que estavas por aquele país; já gostavas de fazer longas vagabundagens. Ah, foste
um tipo especial, pois pode-se dizer que nunca, em coisa alguma, tiveste os mesmos gostos de
todo mundo... -
Mas apenas dissera tais palavras, o duque enrubesceu, pois conhecia, se não os
costumes, ao menos a reputação do irmão. Como jamais lhe falara naquilo, estava tanto mais
constrangido por ter dito algo que podia parecer relacionar-se com o caso, e mais ainda por ter se
mostrado constrangido. Após um segundo de silêncio:
- Quem sabe - disse ele para desfazer suas últimas palavras - se não estavas apaixonado
por uma chinesa, antes de amar a tantas brancas, e lhes agradares, a julgar por uma certa dama
a quem deste muita satisfação esta noite ao conversar com ela. Ela ficou encantada contigo.
O duque havia prometido a si próprio não falar da Sra. de Surgis, mas, em meio à
confusão que a gafe que acabara de cometer lançara nas suas idéias, apegara-se à mais
próxima, que era justamente aquela que não devia aparecer na conversa, embora a tivesse
motivado. Mas o Sr. de Charlus notara o rubor do irmão. E como os culpados que não desejam
parecer embaraçados quando se fala diante deles do crime que pretendem não ter cometido, e
julgam dever prolongar uma conversação perigosa:
- Estou encantado - respondeu-lhe -; mas faço questão de reportar-me à tua frase anterior,
que me parece profundamente verdadeira. Tu dizias que nunca tive as mesmas ideias de todo
mundo, não dizias ideias, dizias gostos. Como é exato! Nunca tive em coisa alguma os gostos
mundo; como é exato! Tu dizias que eu tinha gostos especiais.
- Absolutamente não - protestou o Sr. de Guermantes, que de fato não disse palavras e
talvez não acreditasse na realidade, no caso do irmão, só elas designam. E, além disso, julgar-se
ia por acaso no direito de comentá-lo devido à singularidades que, de qualquer maneira, tinham
percebido bastante duvidosas ou bastante secretas para não prejudicar a excepcional posição de
Charlus? Mais ainda, sentindo que essa posição do irmão ia colocar-se a serviço de suas
amantes, o duque dizia consigo que aquilo bem valia algumas complacências em troca; se
tivesse, no momento, conhecido alguma ligação "especial" do irmão, ele, na esperança do apoio
que o irmão lhe daria, esperança unida à piedosa lembrança do tempo passado, teria passado por
cima, fechando os olhos a tudo, caso necessário, até estenderia a mão.
- Vamos, Basin; boa-noite, Pamede. - disse a duquesa, roída de raiva e de curiosidade; -se
resolveram passar a noite aqui, é melhor que fiquemos para a ceia. Faz meia hora que nos
deixam de pé, a Marie e a mim. -
O duque deixou o irmão a um abraço significativo; e nós três descemos a escadaria
imensa do palácio da princesa. Dos dois lados, nos degraus mais altos, espalhavam-se casais
que esperavam que seu carro aparecesse. Ereta, isolada, ladeada por mim e pelo marido, a
duquesa mantinha-se à esquerda da escadaria, já envolta em seu manto à Tiepolo, o broche de
rubis fechando-lhe a garganta, devorada pelos olhos das mulheres e dos homens, que
procuravam surpreender o segredo da sua beleza e da sua elegância. Esperando o seu carro no
mesmo degrau da escada da Sra. de Guermantes, mas na extremidade oposta, a Srt. de
Gallardon, que desde muito perdera toda a esperança de ser um dia visitada por sua prima, virava
as costas para não parecer vê-la, e sobretudo para não oferecer a prova de que esta não a
cumprimentava. A Sra. de Gallardon estava de muito mau humor, pois os senhores que a
acompanhavam tinham julgado dever falar-lhe de Oriane:
- Absolutamente, não faço questão nenhuma de vê-la - respondera-lhes; aliás, avistei-a há
pouco, ela principia a envelhecer; parece que não consegue se acostumar. O próprio Basin foi
quem disse. E bem o compreendo, pois, como não possui inteligência, é malvada e tem maus
modos, percebe que, quando lhe faltar a beleza, não terá mais absolutamente nada.
Eu pusera meu sobretudo, o que o Sr. de Guermantes, que receava gripes, censurou ao
descer comigo, por causa do calor que fazia. E a geração de nobres, que mais ou menos havia
passado por monsenhor Saint-Loup, fala um francês tão ruim (à exceção dos Castellane), que o
duque assim exprimiu seu pensamento:
- É preferível não estar coberto antes de ir para fora, pelo menos em tese geral.
Revejo toda esta saída, revejo, se não é por engano que coloco esta cena na escadaria,
retrato destacado de seu quadro, o príncipe de Sagan, para quem seria essa a última recepção
mundana, descobrir-se para render suas homenagens à duquesa, com uma revolução tão ampla
do chapéu alto na mão de branco enluvada, combinando com a gardênia da botoeira, que a gente
se espantava de que não fosse um chapéu de feltro, ornado de plumas, do Antigo Regime, do
qual várias figuras ancestrais estavam perfeitamente reproduzidas na daquele grão-senhor.
Pouco se deteve junto dela, porém mesmo as suas atitudes de um momento bastavam
para compor todo um quadro vivo e como que uma cena histórica. Por outro lado, como está
morto desde então e eu mal o avistara quando vivo, de tal modo tornou-se para mim um
personagem histórico, ao menos da história mundana, que ocorre espantar-me ao pensar que
uma mulher e um homem de meu conhecimento sejam sua irmã e seu sobrinho.
Enquanto descíamos as escadas, ia subindo, com um ar de fadiga que bem lhe assentava,
uma mulher aparentando quarenta anos, mas que deveria ter mais. Era a princesa d'Orvillers, filha
natural, conforme diziam, do duque de Parma, e cuja voz suave se escondia num vago acento
austríaco. Ela avançava, alta, inclinada, num vestido de seda branco e florido, deixando ofegar o
colo delicioso, palpitante e exausto através de um colar de diamantes e de safiras. Sempre
sacudindo a cabeça como uma potranca real que se embaraçasse com seu cabresto de pérolas,
de valor inestimável e de peso incômodo, pousava aqui e ali os olhares doces e encantadores, de
um azul que, à medida que principiava a desgastar-se, tornava-se ainda mais acariciante e fazia à
maioria dos convidados que se retiravam um aceno amigável de cabeça.
- Que bela hora arranjou para chegar, Paulette! - disse a duquesa.
- Ah, lamento muito! Mas na verdade não houve possibilidade material - respondeu a
princesa d'Orvillers, que tomara emprestado à duquesa de Guermantes esse gênero de frases,
mas acrescentava-lhe a sua doçura natural e o ar de sinceridade conferido pela energia de um
acento vagamente doce numa voz tão suave. Ela dava a impressão de aludir a contratempos de
vida muito longos para narrar, e não vulgarmente às recepções, embora naquele momento
regressasse de várias delas. Mas não eram estas que a forçavam a vir tão tarde. Como o príncipe
de Guermantes houvesse impedido sua mulher, durante longos anos, de receber a Sra.
d'Orvillers, esta, quando foi levantada a proibição, contentara-se em responder aos convites, para
não dar a entender que estava sequiosa por eles, com simples cartões de visitas deixados no
palácio. Ao fim de dois ou três anos de utilização desse método, ela própria comparecia, mais
tarde, como se estivesse voltando do teatro. Dessa forma, dava a impressão de não ligar a
mínima para a recepção, nem de ser vista ali, simplesmente fazendo uma visita ao príncipe e à
princesa somente por simpatia, no momento em que, tendo já ido embora três quartos dos
convidados, ela "gozaria mais a presença deles".
- Oriane, de fato, - ao último degrau resmungou a Sra. de Gallardon. - Não compreendo
como Basin a deixa falar à Sra. d'Orvillers. Não é o Sr. de Gallardon que me permitiria fazer isto. -
Quanto a mim, reconhecera na Sra. d'Orvillers mulher que, perto do palácio Guermantes,
lançara-me longos olfatos, langorosos, virava-se, parava diante das vitrines das lojas. A Sra. de.
Guermantes me apresentou; a Sra. d'Orvillers foi encantadora, nem muito amável nem
constrangida. Olhou-me como a todo mundo com seus olhos verdes... Porém nunca mais, quando
a encontrasse, eu deveria receber parte de um só daqueles avanços em que ela parecia oferecer
se. Existem olhares especiais que parecem nos reconhecer, e que um rapaz só recebe de certas
mulheres e de certos homens até o dia em que nos conhecem e ficam sabendo que somos
amigos de pessoas a que também estão ligados.
Anunciaram que o carro já avançara. A Sra. de Guermantes puxou a saia vermelha, como
para descer a escada e subir ao carro, mas, animada talvez pelo remorso, ou pelo desejo de
agradar e, sobretudo, de aproveitar a brevidade que o impedimento material de prolongá-lo
impunha um ato tão tedioso, olhou para a Sra. de Gallardon; depois, como se somente então a
tivesse avistado, atravessou todo o comprimento do degrau até descer e, tendo chegado à prima
deslumbrada, estendeu-lhe a mão.
- Há quanto tempo! - disse-lhe a duquesa que, para não ser obrigada a desenvolver tudo o
que se continha de pesar e de desculpas legítimas nessa fórmula, voltou-se com ar assustado
para o duque, o qual, de fato, tinha descido comigo em direção ao carro, esbravejava ao ver que a
mulher seguira em direção à Sra. de Gallardon e interrompia a circulação dos outro carros.
- Oriane ainda está mesmo muito bonita! - disse a Sra. do Gallardon. - Fazem-me rir as
pessoas quando dizem que não nos damos bem; por motivos em que não precisamos meter os
outros, podemos ficar anos e anos sem nos vermos; mas temos bastantes recordações comuns
para que possamos algum dia ficar afastadas, e, no fundo, ela bem sabe que a estimo ainda mais
que muitas pessoas a quem vê todos os dias e que nos são do seu sangue. -
A Sra. de Gallardon era na verdade como esposos amorosos desdenhados que a todo
transe querem fazer acreditar que e mais amados do que aqueles escolhidos por sua bela. E
pelos elos que, sem se preocupar com a contradição com o que havia dito pouco antes, ela
prodigalizava ao falar da duquesa de Guermantes provava indiretamente que esta possuía a
fundo as normas que devem orientar em sua carreira a uma rainha da elegância, a qual, na
ocasião mesma em que seu vestido mais maravilhoso excita, além da admiração, a inveja, deve
saber atravessar uma escadaria inteira para desarmá-la.
- Pelo menos, presta atenção para não molhar os sapatos - (pois havia caído uma breve
pancada de chuva) - disse o duque, que ainda estava furioso por ter esperado.
Durante a volta, devido à exiguidade do cupê, os sapatos vermelhos se achavam
forçosamente pouco afastados dos meus; e a Sra. de Guermantes, receando até que me
houvessem tocado, disse ao duque:
- Este rapaz vai ser obrigado a dizer-me, como em não sei mais qual caricatura: "Senhora,
diga logo que me ama, mas não pise meus pés desse jeito." -
Aliás, meus pensamentos andavam bem longe da Sra. de Guermantes. Desde que Saint
Loup me falara de uma moça de alta linhagem que frequentava um bordel e da camareira da
baronesa Putbus, era nessas duas pessoas que, em bloco, se resumiam os desejos que me
inspiravam diariamente tantas beldades de ambas as classes; de uma parte, as vulgares e
magníficas, as majestosas camareiras de casa nobre, cheias de orgulho, e que dizem "nós" ao
falar das duquesas; de outra parte, aquelas moças de que às vezes me bastava, mesmo sem as
ter visto passar de carro ou a pé, ter lido o nome num noticiário de baile para me enamorar delas
e, depois de procurar conscienciosamente no anuário dos castelos o lugar onde passavam o
verão (muitas vezes deixando-me iludir por um nome parecido), sonhar, alternativamente, ir
habitar as planícies do Oeste, as dunas do Norte e os bosques de pinheirais do Sul. Mas, por mais
que fundisse inteira toda a matéria carnal mais requintada para compor, conforme o ideal que me
traçara Saint-Loup, a jovem leviana e a camareira da Sra. Putbus, faltava às minhas duas
beldades possíveis aquilo que eu ignoraria enquanto as não tivesse visto: o caráter individual. Em
vão eu devia esgotar-me para tentar imaginar, durante os meses em que o meu desejo se dirigia
de preferência às moças, como era feita e quem seria aquela de quem Saint-Loup me havia
falado; e, durante os meses em que teria preferido uma camareira, a da Sra. Putbus. Mas que
tranquilidade, depois de ter sido perpetuamente perturbado por meus desejos inquietos, por tantas
criaturas fugitivas de quem muitas vezes nem mesmo sabia os nomes, que de todo jeito eram tão
difíceis de encontrar, e mais ainda de conhecer, impossíveis talvez de conquistar, o haver
reservado, de toda essa beleza esparsa, fugidia, anônima, dois espécimes de elite, munidos de
sua ficha identificadora, e que eu pelo menos tinha certeza de conseguir quando quisesse! Adiava
a hora de entregar-me a esse duplo prazer, como adiava a do trabalho, mas a certeza de quando
quisesse quase me dispensava de agarrá-lo, como esses compridos soporíferos que é bastante
ter ao alcance da mão para não precisar deles e adormecer. No universo inteiro eu não desejava
mais que, mulheres das quais, é verdade, não conseguia imaginar o rosto, mas quem Saint-Loup
me ensinara os nomes e garantira a complacência modo que, se por suas palavras de há pouco
havia fornecido um trabalho à minha imaginação, em compensação proporcionara um aprazível
descanso, um repouso duradouro à minha vontade.
- Pois bem - disse-me a duquesa. - Fora os bailes, não poder lhe ser útil de algum modo?
Encontrou algum salão onde deseja quem apresente? -
Respondi-lhe que temia que o único que desejava conhecer não fosse suficientemente
distinto para ela.
- Qual é? - indagou ela com voz rouca e ameaçadora, sem quase abrir a boca.
- A baronesa Putbus -
Desta vez, ela fingiu verdadeira cólera.
- Ah, não! Isso é que não. Está zombando de mim. Nem sei mesmo por qual acaso sei o
nome desse camelo. Pois ela é o lodo da sociedade. É como se o senhor me dissesse que o
apresentasse à minha caixeira. E, mesmo assim, não; a minha caixeira é encantadora. Você é
meio doido, meu pobre rapaz. Em todo caso peço-lhe por favor, seja polido para com as pessoas
a quem o apresento deixe-lhes cartões, vá visitá-las e não lhes fale da baronesa Putbus, que é
desconhecida. -
Perguntei-lhe se a Sra. d'Orvillers não era um tanto leviana.
- Oh, de jeito nenhum, o senhor está confundindo, ela seria antes presunçosa. Não é
mesmo, Basin?
- Sim; de qualquer modo, creio que nunca houve o que dizer a seu respeito - disse o
duque. - Não quer ir conosco ao baile à fantasia? - perguntou-me - Eu lhe emprestaria um manto
veneziano e sei de alguém que terá enorme satisfação com isso; primeiro a Oriane, é escusado
dizer, mas estou me referindo à princesa de Parma. Todo o tempo ela entoa os seus louvores, só
jura pelo senhor. O amigo tem a sorte visto ser a princesa um tanto madura de que ela seja de
uma pudicícia absoluta. Não fosse isso, certamente o tomaria como chichisbéu, como se dizia na
minha juventude, uma espécie de cavaleiro servidor.
Eu não fiz questão do baile à fantasia, mas do encontro com Albertine. Portanto, recusei. O
carro havia parado, o lacaio bateu no portão principal, os cavalos escarvaram até que ele fosse
escancarado, e o carril penetrou no pátio. - Até mais ver - disse o duque.
- Às vezes, tenho lastimado morar assim tão perto de Marie - disse a duquesa porque;
gosto muito dela, gosto um pouquinho menos de vê-la. Mas nunca lastimo essa proximidade tanto
como esta noite, pois isto me faz ficar tão pouco tempo em sua companhia.
- Vamos, Oriane, nada de discursos. -
A duquesa desejaria que eu entrasse por um momento em sua casa. Riu muito, bem como
o duque, quando eu disse que não podia porque uma moça devia me fazer uma visita
precisamente àquela hora.
- O senhor tem uma hora muito divertida para receber suas visitas - disse a duquesa.
- Vamos, minha querida, despachemo-nos - disse o Sr. de Guermantes à mulher. - Faltam
quinze para a meia-noite e é hora de a gente se fantasiar... -
continua na página 57...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - Depois que Swann foi embora)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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