terça-feira, 14 de outubro de 2025

Massa e Poder - Malta e História: Os Judeus

Elias Canetti

MALTA E HISTÓRIA

     Os Judeus

      Nenhum povo é mais difícil de se compreender do que os judeus. Eles se encontram espalhados por toda a superfície habitada da terra; sua terra de origem, eles a perderam. Sua capacidade de adaptação é famosa e mal-afamada, mas seu grau de adaptação varia imensamente. Entre os judeus, havia espanhóis, indianos e chineses. Eles carregam consigo línguas e culturas de um país a outro, destas cuidando com maior obstinação do que de suas posses. Loucos podem fabular à vontade sua homogeneidade, mas, quem os conhece, tenderá antes a julgar que entre eles há uma variedade de tipos muito maior do que em qualquer outro povo. A amplitude dessa variedade dos judeus em sua essência e aparência é das coisas mais espantosas com que se pode deparar. Exprime-o de maneira ingênua a lenda popular de que entre eles se encontram tanto os melhores quanto os piores homens. Eles são diferentes dos outros. Mas, na realidade, são — se assim fosse possível afirmar — mais diferentes ainda entre si.
     Os judeus provocaram admiração pelo simples fato de ainda existirem. Não são os únicos que se podem encontrar em toda parte; com certeza, os armênios espalharam-se em igual medida. Tampouco constituem eles o povo mais antigo; a história dos chineses remonta a um passado ainda mais remoto. Mas compõem o único dos povos antigos ainda, e há tanto tempo, em peregrinação. Aos judeus foi dado o mais amplo espaço de tempo para que desaparecessem sem deixar vestígios; e, no entanto, fazem-se presentes hoje mais do que nunca.
     Até poucos anos atrás, inexistia qualquer unidade territorial ou linguística entre eles. A maioria já não entendia hebraico; falavam centenas de idiomas. Sua antiga religião era um saco vazio para milhões deles; pouco a pouco, até mesmo o número de judeus cristãos aumentou consideravelmente entre seus intelectuais; e muito mais ainda o número de ateus. Contemplando-se superficialmente a questão, do ponto de vista da mera autopreservação, eles deveriam fazer de tudo para que esquecessem que são judeus, e para o esquecerem eles próprios. O que ocorre, porém, não é que não consigam esquecê-lo: em geral, eles não querem. Há que se perguntar em que, afinal, esses homens seguem sendo judeus, o que os torna judeus, qual o vínculo derradeiro, o mais derradeiro dos vínculos a uni-los, quando dizem a si próprios: sou judeu.
     Esse vínculo derradeiro encontra-se no princípio de sua história, e vem se repetindo com fatídica regularidade no curso dessa mesma história: trata-se do êxodo do Egito. Façamos presente o conteúdo dessa tradição. Um povo inteiro — em número limitado, é certo, mas em enormes multidões — peregrina ao longo de quarenta anos pelo deserto. A seu lendário patriarca anunciara-se uma descendência tão numerosa quanto a areia do mar. Agora, ela está ali, e caminha feito uma outra areia pela areia do deserto. O mar os deixa passar, fechando-se sobre seus inimigos. Sua meta é uma terra prometida, a qual conquistarão com a espada.
     A imagem dessa multidão a caminhar anos a o pelo deserto tornou se o símbolo de massa dos judeus. Ela permaneceu tão nítida e palpável quanto outrora. Antes ainda de assentar-se e espalhar-se, o povo vê-se reunido: vê-se em peregrinação. Nesse estado denso, recebe suas leis. Possui uma meta como nenhuma outra massa jamais possuiu. Possui aventuras e mais aventuras, um destino sempre conjunto. Trata-se de uma massa nua ; de toda a variedade de coisas que geralmente entrelaça os homens em vidas isoladas, quase nada há nesse ambiente. Em toda a sua volta há apenas areia, a mais nua de todas as massas; nada conseguiria intensificar mais o sentimento desse cortejo a caminhar de que ele está sozinho consigo mesmo do que a imagem da areia. Frequentemente, a meta desaparece, e a massa ameaça desintegrar-se; golpes da mais variada natureza despertam-na, apanham-na e a mantêm coesa. O número dos homens no cortejo — de 600 mil a 700 mil — é gigantesco, e não apenas para os padrões mais modestos daqueles tempos. Significado particular possui ainda a duração do cortejo. O que quer que, na massa, se alongue por quarenta anos pode, mais tarde, alongar-se pelo tempo que quiser. A imposição dessa duração como castigo equivale a todo o sofrimento de peregrinações futuras.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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