Elias Canetti
MALTA E HISTÓRIA
Os Judeus
Nenhum povo é mais difícil de se compreender do que os judeus.
Eles se encontram espalhados por toda a superfície habitada da terra;
sua terra de origem, eles a perderam. Sua capacidade de adaptação é
famosa e mal-afamada, mas seu grau de adaptação varia imensamente.
Entre os judeus, havia espanhóis, indianos e chineses. Eles carregam
consigo línguas e culturas de um país a outro, destas cuidando com
maior obstinação do que de suas posses. Loucos podem fabular à
vontade sua homogeneidade, mas, quem os conhece, tenderá antes a
julgar que entre eles há uma variedade de tipos muito maior do que em
qualquer outro povo. A amplitude dessa variedade dos judeus em sua
essência e aparência é das coisas mais espantosas com que se pode
deparar. Exprime-o de maneira ingênua a lenda popular de que entre
eles se encontram tanto os melhores quanto os piores homens. Eles são
diferentes dos outros. Mas, na realidade, são — se assim fosse possível
afirmar — mais diferentes ainda entre si.
Os judeus provocaram admiração pelo simples fato de ainda
existirem. Não são os únicos que se podem encontrar em toda parte;
com certeza, os armênios espalharam-se em igual medida. Tampouco
constituem eles o povo mais antigo; a história dos chineses remonta a
um passado ainda mais remoto. Mas compõem o único dos povos
antigos ainda, e há tanto tempo, em peregrinação. Aos judeus foi dado o
mais amplo espaço de tempo para que desaparecessem sem deixar
vestígios; e, no entanto, fazem-se presentes hoje mais do que nunca.
Até poucos anos atrás, inexistia qualquer unidade territorial ou
linguística entre eles. A maioria já não entendia hebraico; falavam
centenas de idiomas. Sua antiga religião era um saco vazio para milhões
deles; pouco a pouco, até mesmo o número de judeus cristãos aumentou
consideravelmente entre seus intelectuais; e muito mais ainda o número
de ateus. Contemplando-se superficialmente a questão, do ponto de
vista da mera autopreservação, eles deveriam fazer de tudo para que
esquecessem que são judeus, e para o esquecerem eles próprios. O que
ocorre, porém, não é que não consigam esquecê-lo: em geral, eles não
querem. Há que se perguntar em que, afinal, esses homens seguem
sendo judeus, o que os torna judeus, qual o vínculo derradeiro, o mais
derradeiro dos vínculos a uni-los, quando dizem a si próprios: sou
judeu.
Esse vínculo derradeiro encontra-se no princípio de sua história, e
vem se repetindo com fatídica regularidade no curso dessa mesma
história: trata-se do êxodo do Egito. Façamos presente o conteúdo dessa
tradição. Um povo inteiro — em número limitado, é certo, mas em
enormes multidões — peregrina ao longo de quarenta anos pelo
deserto. A seu lendário patriarca anunciara-se uma descendência tão
numerosa quanto a areia do mar. Agora, ela está ali, e caminha feito
uma outra areia pela areia do deserto. O mar os deixa passar, fechando-se sobre seus inimigos. Sua meta é uma terra prometida, a qual
conquistarão com a espada.
A imagem dessa multidão a caminhar anos a o pelo deserto tornou
se o símbolo de massa dos judeus. Ela permaneceu tão nítida e palpável
quanto outrora. Antes ainda de assentar-se e espalhar-se, o povo vê-se
reunido: vê-se em peregrinação. Nesse estado denso, recebe suas leis.
Possui uma meta como nenhuma outra massa jamais possuiu. Possui
aventuras e mais aventuras, um destino sempre conjunto. Trata-se de
uma massa nua
;
de toda a variedade de coisas que geralmente entrelaça
os homens em vidas isoladas, quase nada há nesse ambiente. Em toda a
sua volta há apenas areia, a mais nua de todas as massas; nada
conseguiria intensificar mais o sentimento desse cortejo a caminhar de
que ele está sozinho consigo mesmo do que a imagem da areia.
Frequentemente, a meta desaparece, e a massa ameaça desintegrar-se;
golpes da mais variada natureza despertam-na, apanham-na e a mantêm
coesa. O número dos homens no cortejo — de 600 mil a 700 mil — é
gigantesco, e não apenas para os padrões mais modestos daqueles
tempos. Significado particular possui ainda a duração do cortejo. O que
quer que, na massa, se alongue por quarenta anos pode, mais tarde,
alongar-se pelo tempo que quiser. A imposição dessa duração como
castigo equivale a todo o sofrimento de peregrinações futuras.
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Leia também:
Massa e Poder - Malta e História: Os Judeus
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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