em busca do tempo perdido
volume IV
continuando...
Quanto aos grãos-senhores seus parentes, por ela outrora renegados e que por sua vez a tinham renegado, desculpava a marquesa a satisfação que teria em trazê-los para si própria com as recordações da infância que poderia evocar com eles. E, dizendo isto para dissimular o seu esnobismo, mentia talvez menos do que julgava. - Basin, é toda a minha juventude! dizia ela no dia em que o duque lhe voltara. E, de fato, era pouco verdadeiro. Porém, ela calculara mal ao escolhê-lo como amante. Todas as amigas da duquesa de Guermantes iam tomar partido por ela assim, a Sra. de Surgis desceria pela segunda vez àquele despenhadeiro que tanto lhe custara subir.
volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Segunda Parte
continuando...
Quanto aos grãos-senhores seus parentes, por ela outrora renegados e que por sua vez a tinham renegado, desculpava a marquesa a satisfação que teria em trazê-los para si própria com as recordações da infância que poderia evocar com eles. E, dizendo isto para dissimular o seu esnobismo, mentia talvez menos do que julgava. - Basin, é toda a minha juventude! dizia ela no dia em que o duque lhe voltara. E, de fato, era pouco verdadeiro. Porém, ela calculara mal ao escolhê-lo como amante. Todas as amigas da duquesa de Guermantes iam tomar partido por ela assim, a Sra. de Surgis desceria pela segunda vez àquele despenhadeiro que tanto lhe custara subir.
- Pois bem! - estava lhe dizendo o Sr. de Charlus que fazia questão de prolongar a
conversa. - Deponha as minhas homenagens ao pé do belo retrato. Como vai ele? Que é feito
dele?
- Mas - respondeu a Sra. de Surgis - o senhor sabe que já não o tenho: meu marido não
ficou satisfeito com ele.
- Não ficou satisfeito? Uma das obras-primas nossa época, igual à duquesa de
Châteauroux, de Nattier, e que aliás pretendia fixar uma não menos majestosa e assassina deusa!
Oh, a pequena gola azul! É de se dizer que Vermeer nunca pintou um tecido com tanta maestria,
não o digamos muito alto para que Swann não nos ataque com a intenção de vingar o seu pintor
predileto, o mestre de Delft. -
A marquesa, virando-se, dirigiu um sorriso e estendeu a mão a Swann, que se erguera
para cumprimentá-la. Mas quase sem dissimulação, ou porque uma vida já adiantada lhe tirasse a
vontade moral daquilo, pela indiferença à opinião, ou o vigor físico de o fazer, pela excitação do
desejo e o enfraquecimento da energia que ajuda a ocultá-lo, logo que Swann, ao apertar a mão
da marquesa, viu tão de perto e por cima o seu colo, mergulhou um olhar atento, sério, absorto,
quase preocupado, nas profundezas do corpinho, e suas narinas, que o perfume da mulher
inebriava, palpitaram como uma borboleta prestes a pousar na flor entrevista. Bruscamente, ele se
subtraiu à vertigem que sentira, e a própria Sra. de Surgis, embora constrangida, reprimiu um
hausto profundo, de tal modo o desejo é contagioso às vezes.
- O pintor ficou melindrado - disse ela ao Sr. de Charlus e o levou de volta. Disseram que
estava agora na casa de Diane de Saint-Euverte.
- Jamais acreditarei - replicou o barão - que uma obra-prima tenha tão mau gosto.
- Ele lhe fala do seu retrato. Quanto a mim, eu lhe falaria tão bem como Charlus desse
retrato - disse-me Swann, afetando um tom arrastado e vulgar e seguindo com os olhos o par que
se afastava. - E isto certamente me daria muito mais prazer do que a Charlus - acrescentou.
Perguntei-lhe se o que se dizia sobre o Sr. de Charlus era verdade, no que, aliás, mentia
duplamente, pois, se não sabia que alguma vez houvessem falado naquilo, em compensação
sabia muito bem, desde pouco tempo, que aquilo a que me referia era verdadeiro. Swann deu de
ombros como se eu tivesse proferido um absurdo.
- É um amigo delicioso. Mas preciso acrescentar que é puramente platônico? Ele é mais
sentimental que os outros, eis tudo; por outro lado, como nunca vai muito longe com as mulheres,
isto deu uma espécie de crédito aos rumores insensatos a que o senhor quer se referir. Talvez
Charlus ame muito os seus amigos, mas fique certo de que isso, aliás, nunca se passou a não ser
na sua cabeça e no seu coração. Enfim, talvez tenhamos dois segundos de tranquilidade.
Portanto, - o príncipe de Guermantes continuou: "Confessar-lhe-ei que semelhante ideia de uma
possível ilegalidade na condução do processo era-me extremamente penosa devido ao culto que
o senhor sabe que tenho pelo exército; voltei a falar no assunto com o general e, infelizmente, não
tive mais qualquer dúvida a respeito. Direi francamente que, em tudo isso, a ideia de que um
inocente poderia sofrer a mais infamante das penas nem sequer me ocorrera. Porém,
atormentado pela ideia da ilegalidade, pus-me a estudar o que não quisera ler, e eis que as
dúvidas, desta vez não só sobre a ilegalidade, mas também sobre a inocência, começaram a
assediar-me. Julguei preferível não nisso à princesa. Deus sabe como ela se tornou tão francesa
quanto. Apesar de tudo, desde o dia em que a desposei, tive tanta coqueteria a mostrar-lhe a
nossa França em toda a sua beleza, e aquilo que, para ela possui de mais esplêndido, o seu
exército, que me era cruel de dar-lhe parte das minhas suspeitas que, na verdade, só atingiam
aos oficiais. Mas pertenço a uma família de militares; não queria crer que alguns oficiais
pudessem estar enganados. Voltei a falar do assunto Beauserfeuil; ele me confessou que haviam
sido urdidas maquinações culposas, que o borderô talvez não fosse de Dreyfus, mas que existia
evidências de sua culpabilidade. Era o documento Henry. E, alguns meses depois, sabia-se que
se tratava de um documento falso. Desde então escondido da princesa, pus-me a ler todos os
dias Le Siecle, Vaurme; em breve não tive mais dúvida alguma, já não podia dormir. Externei
meus sofrimentos morais ao nosso amigo, o abade Poiré, no qual encontrei espanto a mesma
convicção, e por meio dele mandei rezar missas em intenção de Dreyfus, de sua desgraçada
mulher e de seus filhos. Nesse mesmo tempo, uma manhã em que ia ao quarto da princesa, vi a
sua camareira esconder alguma coisa na mão. Perguntei-lhe rindo o que era, mas ela enrubesceu
e não quis dizer-me de que se tratava. Eu tinha a maior confiança, mas esse incidente me deixou
muito perturbado (e, sem dúvida, também a princesa, a quem sua camareira o narrou decerto),
pois minha querida mal me falou durante o almoço que se seguiu. Naquele dia, perguntei ao
abade Poiré se poderia rezar no dia seguinte a minha missa por Dreyfus. Bom! - exclamou Swann
em voz baixa, interrompendo-se. Ergui a cabeça e vi o duque de Guermantes dirigindo-se a nós.
- Perdão por incomodá-los, meus filhos. Meu rapaz - disse ele para mim -, sou delegado da
parte de Oriane. Marie e Gilbert lhe pediram que fique para cear com eles na companhia de
apenas cinco ou seis pessoas: a princesa de Hesse, a Sra. de Ligne, a Sra. de Tarente, a Sra. de
Chevreuse e a duquesa d'Arenbe. Infelizmente não podemos ficar, pois temos de ir a uma espécie
de reunião dançante. -
Eu o escutava, porém cada vez que temos algo a fazer no momento determinado,
encarregamos, dentro de nós próprios, um certo personagem habituado a esse tipo de ocupação,
de vigiar a hora e de advertir a tempo. Esse servidor interno me lembrou, como eu lhe havia, dido
horas antes, que Albertine, naquele instante bem longe de meu pensamento, deveria ir à minha
casa logo após o teatro. Assim, recusei convite. Não é que não me agradasse estar na casa da
princesa de Guermantes. Desse modo, os homens podem desfrutar de diversos gêneros de
prazer verdadeiro é aquele pelo qual abandonam o outro. Mas esse último, se é aparente, ou
apenas só aparente, pode iludir quanto ao primeiro, sossega ou despista os ciumentos, faz
extraviar-se o julgamento da sociedade. E no entanto, bastaria, para que o sacrificássemos a
outro, um pouco de felicidade ou de sofrimento. Às vezes, uma terceira ordem de prazeres mais
graves, porém mais essenciais, ainda não existe para nós, e sua virtualidade só se expressa
despertando mágoas e desânimos. Entretanto, é a esses prazeres que nos entregamos mais
tarde. Para dar um exemplo inteiramente secundário, um militar em época de paz sacrificará a
vida mundana ao amor, mas, declarada a guerra (e mesmo sem que seja necessário fazer intervir
a idéia de um dever patriótico), o amor à paixão de se bater, mais forte que o amor. Por mais que
Swann dissesse que se sentia feliz em me contar sua história, eu bem percebia que sua
conversação comigo, devido ao adiantado da hora, e porque ele estava demasiado enfermo, era
um daqueles cansaços dos quais aqueles que sabem que se matam nas vigílias ou nos excessos
têm, ao voltar para casa, um remorso exasperado, semelhante ao que têm, da louca despesa que
mais uma vez acabam de fazer, os pródigos, que entretanto não conseguirão evitar, no dia
seguinte, jogar dinheiro pela janela. A partir de um certo grau de enfraquecimento, seja causado
pela doença, seja pela idade, todo prazer roubado ao sono, fora dos hábitos, todo desregramento,
torna-se tedioso. O conversador continua a falar por polidez, por excitação, porém sabe que já
passou a hora em que ainda poderia adormecer, e sabe também das censuras que dirigirá a si
mesmo durante a insônia e o cansaço que irão se seguir. Aliás, até mesmo o prazer momentâneo
já se acabou; o corpo e o espírito estão por demais destituídos de suas forças para acolher
agradavelmente o que parece uma diversão a seu interlocutor. Assemelham-se a um apartamento
num dia de partida ou de mudança, onde são verdadeiras maçadas as visitas que a gente recebe
sentado nas malas, os olhos fixos no relógio da sala.
- Enfim sós - disse-me ele; nem sei mais onde estava. Disse-lhe, não é mesmo?, que o
príncipe havia perguntado ao abade Poiré se este podia mandar rezar a sua missa por Dreyfus.
"Não", me respondeu o abade (digo-lhe - disse Swann, - porque é o príncipe que me fala,
compreende?), "pois tenho uma outra missa que, esta manhã, encarregaram-me igualmente por
ele. - Como disse-lhe existe outro católico além de mim que esteja convencido da sua inocência? -
Pode-se crer. - Mas a convicção desse outro partidário deve ser menos antiga do que a minha.
No entanto, esse partidário já me mandava rezar missas quando o senhor ainda julgava que
Dreyfus era culpado. - Ah, bem vejo que não é alguém do nosso meio. - Pelo contrário! - Na
verdade, há dreyfusistas entre nós? O senhor me intriga; se o conheço, gostaria de me lançar
sobre esse pássaro raro. - O senhor o conhece, ele se chama - A princesa de Guermantes.
Enquanto eu receava dar suas opiniões nacionalistas e a fé francesa da minha querida ela tivera
medo de alarmar minhas opiniões religiosas, meus sentimentos patrióticos. Mas, por seu lado,
pensava como eu, embora desde muito tempo antes de mim. E aquilo que sua camareira ocultava
ao entrar no quarto, o que ela ia lhe comprar todas as manhãs, era L'Aurore. Meu Swann, desde
esse momento pensei no prazer que lhe daria ao dizer todas as minhas ideias eram, a tal respeito,
aparentadas às suas; perdão não o ter dito antes. Se se recorda do silêncio que guardei diante da
cena, não se espantará que ter ideias iguais às suas me haveria então, respeitado ainda mais de
sua pessoa do que pensar diferentemente. Pois tais assuntos era-me infinitamente penoso de
abordar. Quanto mais creio qual erro, que até mesmo crimes foram cometidos, mais sangro no
meu afinco pelo exército. Teria imaginado que opiniões semelhantes às minhas levariam longe de
lhe inspirar a mesma dor, quando me disseram outro dia quanto o senhor reprovava com energia
as injúrias ao exército e que os dreyfusistas aceitassem aliar-se aos insultadores. Isto decidiu-me;
admitir que me foi cruel confessar o que penso acerca de certos oficiais, feliz ou poucos
numerosos, mas é um alívio não precisar mais manter-me longe do senhor e, principalmente, que
o senhor tenha compreendido que, se permiti alimentar outros sentimentos, é que não duvidava
quanto ao bem fundamentado da sentença. Desde que tive uma dúvida, só podia desejar uma
coisa: a reparação do erro." Confesso-lhe que estas palavras do príncipe de Guermantes me
deixaram profundamente comovido. Se o conhecesse como eu, se soubesse de onde ele teve de
vir para chegar a esse ponto sentiria admiração por ele, e ele a merece. Além disso, sua opinião
me espanta, é uma natureza tão direita! -
Swann esquecia que, de falara-me justo o contrário, que as opiniões naquele Caso Dreyfus
eram comandadas pelo atavismo. Quando muito, fizera exceção para a inteligência, porque em
Saint-Loup ela chegara a vencer o atavismo e a fazer ditar um dreyfusista. Ora, acabava de ver
que essa vitória fora de curta duração e que Saint-Loup passara para o campo adversário.
Portanto, essa retidão de coração que ele dava agora o papel atribuído há pouco à inteligência.
Na realidade, descobrimos sempre tarde demais que nossos adversários tinham um motivo para
pertencer ao partido em que estão, e que depende do que possa haver de justo nesse partido, e
que os que pensam como nós o fazem porque isto os obrigou a inteligência, caso sua natureza
moral for muito baixa para ser invocada, ou sua retidão, se for tão frágil a sua agudeza.
Swann agora julgava indistintamente inteligentes aqueles que eram de sua opinião, seu
velho amigo o príncipe de Guermantes e meu colega Bloch, a quem mantivera afastado até então,
e que ele convidava para almoçar. Swann interessou muito a Bloch ao lhe dizer que o príncipe de
Guermantes era dreyfusista.
- Precisamos pedir a ele que assine as nossas listas em defesa de Picquart; com um nome
como o seu, o efeito seria formidável. -
Porém Swann, aliando à sua ardente convicção de israelita a moderação diplomática do
mundano, de que sobre modo adquirira os hábitos para poder tão tardiamente desfazer-se deles,
recusou-se a autorizar Bloch a enviar ao príncipe, mesmo como que espontaneamente, uma
circular para que fosse assinada.
- Ele não pode fazer isso, não convém pedir-lhe o impossível - repetia Swann. - Eis um
homem encantador que percorreu milhares de léguas para chegar até nós. Ele pode nos ser muito
útil. Se assinasse a sua lista, ele simplesmente se comprometeria junto aos seus, seria
repreendido por nossa causa, talvez se arrependesse de suas confidências e não faria mais
nenhuma. -
Mais ainda, Swann recusou-se a assinar o próprio nome. Achava-o hebraico demais para
não causar um mau efeito. E depois, se aprovava tudo quanto dissesse respeito à revisão do
processo, não queria de modo algum ser envolvido na campanha antimilitarista. Usava, o que
jamais fizera até então, a condecoração que ganhara, como todo jovem mobilizado em 1870, e
acrescentou ao seu testamento um codicilo para solicitar que, contrariamente às disposições
precedentes, fossem dadas honras militares ao seu grau de cavaleiro da Legião de Honra. O que
reuniu em torno da igreja de Combray um verdadeiro batalhão desses cavaleiros, sobre cujo
futuro chorava Françoise antigamente, quando sentia a perspectiva de uma guerra. Numa palavra,
Swann recusou-se a assinar a circular, de modo que, se passava por um dreyfusista radical aos
olhos de muitos, meu colega considerou-o militarista e frouxo, infectado de nacionalismo.
Swann deixou-me sem me apertar a mão, para não ser obrigado a fazer despedidas
naquela sala onde possuía tantos amigos, porém me disse:
- O senhor deveria ir ver sua amiga Gilberte. Ela cresceu de fato e mudou muito; o senhor
não a reconheceria. Ela ficaria tão feliz! -
Eu já não amava Gilberte. Para mim, ela era como uma morta que se chorou por muito
tempo; depois veio o esquecimento e, se ela ressuscitasse, não mais poderia inserir-se numa vida
que já não era feita para ela. Não tinha mais vontade de vê-la, e nem mesmo aquela vontade de
lhe mostrar que não fazia questão de vê-la e que cada dia, no tempo em que a amava, prometia a
mim mesmo testemunhar-lhe quando a deixasse de amar. Assim, não mais procurando afetar,
diante de Gilberte, ter desejado de todo o meu coração voltar a encontrá-la, e de ter sido impedido
de fazê-lo, como se diz, devido a circunstâncias independentes da minha vontade, que só
ocorrem, de fato, ao menos com certa continuidade, quando a vontade não se lhes opõe, bem
longe de acolher com reservas o convite de Swann, não o deixei sem que me houvesse prometido
explicar em detalhes à sua filha os contratempos que me haviam privado, e ainda me privariam de
ir vê-la.
- Aliás, vou escrever-lhe daqui a pouco ao voltar para casa. - acrescentei. - Mas diga-lhe
que é uma carta de ameaça, pois dentro um ou dois meses estarei totalmente livre, e então, ela
que trema, estarei em sua casa com a mesma frequência de antigamente.
Antes de deixar Swann, disse-lhe uma palavra sobre sua saúde.
- Não, a coisa não está tão má assim - respondeu-me. - Além disso, como lhe dizia, ando
muito cansado e aceito antecipadamente, com resignação o que possa acontecer. Unicamente,
confesso que seria bem irritante morrer antes do fim do Caso Dreyfus. Todos esses canalhas têm
mais de mostrar o trunfo no bolso. Não duvido que finalmente sejam vencidos, mas afinal, são
muito poderosos, têm apoio em toda parte. No momento em que tudo parece correr bem, tudo se
arrebenta. Bem que desejaria viver bastante para ver Dreyfus reabilitado e Picquart coronel.
continua na página 52...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - Quanto aos grãos-senhores)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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