quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap I - Quanto aos grãos-senhores)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra

Capítulo Primeiro
Segunda Parte

continuando...

     Quanto aos grãos-senhores seus parentes, por ela outrora renegados e que por sua vez a tinham renegado, desculpava a marquesa a satisfação que teria em trazê-los para si própria com as recordações da infância que poderia evocar com eles. E, dizendo isto para dissimular o seu esnobismo, mentia talvez menos do que julgava. - Basin, é toda a minha juventude! dizia ela no dia em que o duque lhe voltara. E, de fato, era pouco verdadeiro. Porém, ela calculara mal ao escolhê-lo como amante. Todas as amigas da duquesa de Guermantes iam tomar partido por ela assim, a Sra. de Surgis desceria pela segunda vez àquele despenhadeiro que tanto lhe custara subir.

 - Pois bem! - estava lhe dizendo o Sr. de Charlus que fazia questão de prolongar a conversa. - Deponha as minhas homenagens ao pé do belo retrato. Como vai ele? Que é feito dele? 
- Mas - respondeu a Sra. de Surgis - o senhor sabe que já não o tenho: meu marido não ficou satisfeito com ele. 
- Não ficou satisfeito? Uma das obras-primas nossa época, igual à duquesa de Châteauroux, de Nattier, e que aliás pretendia fixar uma não menos majestosa e assassina deusa! Oh, a pequena gola azul! É de se dizer que Vermeer nunca pintou um tecido com tanta maestria, não o digamos muito alto para que Swann não nos ataque com a intenção de vingar o seu pintor predileto, o mestre de Delft. -  

     A marquesa, virando-se, dirigiu um sorriso e estendeu a mão a Swann, que se erguera para cumprimentá-la. Mas quase sem dissimulação, ou porque uma vida já adiantada lhe tirasse a vontade moral daquilo, pela indiferença à opinião, ou o vigor físico de o fazer, pela excitação do desejo e o enfraquecimento da energia que ajuda a ocultá-lo, logo que Swann, ao apertar a mão da marquesa, viu tão de perto e por cima o seu colo, mergulhou um olhar atento, sério, absorto, quase preocupado, nas profundezas do corpinho, e suas narinas, que o perfume da mulher inebriava, palpitaram como uma borboleta prestes a pousar na flor entrevista. Bruscamente, ele se subtraiu à vertigem que sentira, e a própria Sra. de Surgis, embora constrangida, reprimiu um hausto profundo, de tal modo o desejo é contagioso às vezes. 

- O pintor ficou melindrado - disse ela ao Sr. de Charlus e o levou de volta. Disseram que estava agora na casa de Diane de Saint-Euverte. 
- Jamais acreditarei - replicou o barão - que uma obra-prima tenha tão mau gosto. 
- Ele lhe fala do seu retrato. Quanto a mim, eu lhe falaria tão bem como Charlus desse retrato - disse-me Swann, afetando um tom arrastado e vulgar e seguindo com os olhos o par que se afastava. - E isto certamente me daria muito mais prazer do que a Charlus - acrescentou. Perguntei-lhe se o que se dizia sobre o Sr. de Charlus era verdade, no que, aliás, mentia duplamente, pois, se não sabia que alguma vez houvessem falado naquilo, em compensação sabia muito bem, desde pouco tempo, que aquilo a que me referia era verdadeiro. Swann deu de ombros como se eu tivesse proferido um absurdo. 
- É um amigo delicioso. Mas preciso acrescentar que é puramente platônico? Ele é mais sentimental que os outros, eis tudo; por outro lado, como nunca vai muito longe com as mulheres, isto deu uma espécie de crédito aos rumores insensatos a que o senhor quer se referir. Talvez Charlus ame muito os seus amigos, mas fique certo de que isso, aliás, nunca se passou a não ser na sua cabeça e no seu coração. Enfim, talvez tenhamos dois segundos de tranquilidade. Portanto, - o príncipe de Guermantes continuou: "Confessar-lhe-ei que semelhante ideia de uma possível ilegalidade na condução do processo era-me extremamente penosa devido ao culto que o senhor sabe que tenho pelo exército; voltei a falar no assunto com o general e, infelizmente, não tive mais qualquer dúvida a respeito. Direi francamente que, em tudo isso, a ideia de que um inocente poderia sofrer a mais infamante das penas nem sequer me ocorrera. Porém, atormentado pela ideia da ilegalidade, pus-me a estudar o que não quisera ler, e eis que as dúvidas, desta vez não só sobre a ilegalidade, mas também sobre a inocência, começaram a assediar-me. Julguei preferível não nisso à princesa. Deus sabe como ela se tornou tão francesa quanto. Apesar de tudo, desde o dia em que a desposei, tive tanta coqueteria a mostrar-lhe a nossa França em toda a sua beleza, e aquilo que, para ela possui de mais esplêndido, o seu exército, que me era cruel de dar-lhe parte das minhas suspeitas que, na verdade, só atingiam aos oficiais. Mas pertenço a uma família de militares; não queria crer que alguns oficiais pudessem estar enganados. Voltei a falar do assunto Beauserfeuil; ele me confessou que haviam sido urdidas maquinações culposas, que o borderô talvez não fosse de Dreyfus, mas que existia evidências de sua culpabilidade. Era o documento Henry. E, alguns meses depois, sabia-se que se tratava de um documento falso. Desde então escondido da princesa, pus-me a ler todos os dias Le Siecle, Vaurme; em breve não tive mais dúvida alguma, já não podia dormir. Externei meus sofrimentos morais ao nosso amigo, o abade Poiré, no qual encontrei espanto a mesma convicção, e por meio dele mandei rezar missas em intenção de Dreyfus, de sua desgraçada mulher e de seus filhos. Nesse mesmo tempo, uma manhã em que ia ao quarto da princesa, vi a sua camareira esconder alguma coisa na mão. Perguntei-lhe rindo o que era, mas ela enrubesceu e não quis dizer-me de que se tratava. Eu tinha a maior confiança, mas esse incidente me deixou muito perturbado (e, sem dúvida, também a princesa, a quem sua camareira o narrou decerto), pois minha querida mal me falou durante o almoço que se seguiu. Naquele dia, perguntei ao abade Poiré se poderia rezar no dia seguinte a minha missa por Dreyfus. Bom! - exclamou Swann em voz baixa, interrompendo-se. Ergui a cabeça e vi o duque de Guermantes dirigindo-se a nós. 
- Perdão por incomodá-los, meus filhos. Meu rapaz - disse ele para mim -, sou delegado da parte de Oriane. Marie e Gilbert lhe pediram que fique para cear com eles na companhia de apenas cinco ou seis pessoas: a princesa de Hesse, a Sra. de Ligne, a Sra. de Tarente, a Sra. de Chevreuse e a duquesa d'Arenbe. Infelizmente não podemos ficar, pois temos de ir a uma espécie de reunião dançante. -

     Eu o escutava, porém cada vez que temos algo a fazer no momento determinado, encarregamos, dentro de nós próprios, um certo personagem habituado a esse tipo de ocupação, de vigiar a hora e de advertir a tempo. Esse servidor interno me lembrou, como eu lhe havia, dido horas antes, que Albertine, naquele instante bem longe de meu pensamento, deveria ir à minha casa logo após o teatro. Assim, recusei convite. Não é que não me agradasse estar na casa da princesa de Guermantes. Desse modo, os homens podem desfrutar de diversos gêneros de prazer verdadeiro é aquele pelo qual abandonam o outro. Mas esse último, se é aparente, ou apenas só aparente, pode iludir quanto ao primeiro, sossega ou despista os ciumentos, faz extraviar-se o julgamento da sociedade. E no entanto, bastaria, para que o sacrificássemos a outro, um pouco de felicidade ou de sofrimento. Às vezes, uma terceira ordem de prazeres mais graves, porém mais essenciais, ainda não existe para nós, e sua virtualidade só se expressa despertando mágoas e desânimos. Entretanto, é a esses prazeres que nos entregamos mais tarde. Para dar um exemplo inteiramente secundário, um militar em época de paz sacrificará a vida mundana ao amor, mas, declarada a guerra (e mesmo sem que seja necessário fazer intervir a idéia de um dever patriótico), o amor à paixão de se bater, mais forte que o amor. Por mais que Swann dissesse que se sentia feliz em me contar sua história, eu bem percebia que sua conversação comigo, devido ao adiantado da hora, e porque ele estava demasiado enfermo, era um daqueles cansaços dos quais aqueles que sabem que se matam nas vigílias ou nos excessos têm, ao voltar para casa, um remorso exasperado, semelhante ao que têm, da louca despesa que mais uma vez acabam de fazer, os pródigos, que entretanto não conseguirão evitar, no dia seguinte, jogar dinheiro pela janela. A partir de um certo grau de enfraquecimento, seja causado pela doença, seja pela idade, todo prazer roubado ao sono, fora dos hábitos, todo desregramento, torna-se tedioso. O conversador continua a falar por polidez, por excitação, porém sabe que já passou a hora em que ainda poderia adormecer, e sabe também das censuras que dirigirá a si mesmo durante a insônia e o cansaço que irão se seguir. Aliás, até mesmo o prazer momentâneo já se acabou; o corpo e o espírito estão por demais destituídos de suas forças para acolher agradavelmente o que parece uma diversão a seu interlocutor. Assemelham-se a um apartamento num dia de partida ou de mudança, onde são verdadeiras maçadas as visitas que a gente recebe sentado nas malas, os olhos fixos no relógio da sala.

- Enfim sós - disse-me ele; nem sei mais onde estava. Disse-lhe, não é mesmo?, que o príncipe havia perguntado ao abade Poiré se este podia mandar rezar a sua missa por Dreyfus. "Não", me respondeu o abade (digo-lhe - disse Swann, - porque é o príncipe que me fala, compreende?), "pois tenho uma outra missa que, esta manhã, encarregaram-me igualmente por ele. - Como disse-lhe existe outro católico além de mim que esteja convencido da sua inocência? - Pode-se crer. - Mas a convicção desse outro partidário deve ser menos antiga do que a minha. No entanto, esse partidário já me mandava rezar missas quando o senhor ainda julgava que Dreyfus era culpado. - Ah, bem vejo que não é alguém do nosso meio. - Pelo contrário! - Na verdade, há dreyfusistas entre nós? O senhor me intriga; se o conheço, gostaria de me lançar sobre esse pássaro raro. - O senhor o conhece, ele se chama - A princesa de Guermantes. Enquanto eu receava dar suas opiniões nacionalistas e a fé francesa da minha querida ela tivera medo de alarmar minhas opiniões religiosas, meus sentimentos patrióticos. Mas, por seu lado, pensava como eu, embora desde muito tempo antes de mim. E aquilo que sua camareira ocultava ao entrar no quarto, o que ela ia lhe comprar todas as manhãs, era L'Aurore. Meu Swann, desde esse momento pensei no prazer que lhe daria ao dizer todas as minhas ideias eram, a tal respeito, aparentadas às suas; perdão não o ter dito antes. Se se recorda do silêncio que guardei diante da cena, não se espantará que ter ideias iguais às suas me haveria então, respeitado ainda mais de sua pessoa do que pensar diferentemente. Pois tais assuntos era-me infinitamente penoso de abordar. Quanto mais creio qual erro, que até mesmo crimes foram cometidos, mais sangro no meu afinco pelo exército. Teria imaginado que opiniões semelhantes às minhas levariam longe de lhe inspirar a mesma dor, quando me disseram outro dia quanto o senhor reprovava com energia as injúrias ao exército e que os dreyfusistas aceitassem aliar-se aos insultadores. Isto decidiu-me; admitir que me foi cruel confessar o que penso acerca de certos oficiais, feliz ou poucos numerosos, mas é um alívio não precisar mais manter-me longe do senhor e, principalmente, que o senhor tenha compreendido que, se permiti alimentar outros sentimentos, é que não duvidava quanto ao bem fundamentado da sentença. Desde que tive uma dúvida, só podia desejar uma coisa: a reparação do erro." Confesso-lhe que estas palavras do príncipe de Guermantes me deixaram profundamente comovido. Se o conhecesse como eu, se soubesse de onde ele teve de vir para chegar a esse ponto sentiria admiração por ele, e ele a merece. Além disso, sua opinião me espanta, é uma natureza tão direita! - 

     Swann esquecia que, de falara-me justo o contrário, que as opiniões naquele Caso Dreyfus eram comandadas pelo atavismo. Quando muito, fizera exceção para a inteligência, porque em Saint-Loup ela chegara a vencer o atavismo e a fazer ditar um dreyfusista. Ora, acabava de ver que essa vitória fora de curta duração e que Saint-Loup passara para o campo adversário. Portanto, essa retidão de coração que ele dava agora o papel atribuído há pouco à inteligência. Na realidade, descobrimos sempre tarde demais que nossos adversários tinham um motivo para pertencer ao partido em que estão, e que depende do que possa haver de justo nesse partido, e que os que pensam como nós o fazem porque isto os obrigou a inteligência, caso sua natureza moral for muito baixa para ser invocada, ou sua retidão, se for tão frágil a sua agudeza.
     Swann agora julgava indistintamente inteligentes aqueles que eram de sua opinião, seu velho amigo o príncipe de Guermantes e meu colega Bloch, a quem mantivera afastado até então, e que ele convidava para almoçar. Swann interessou muito a Bloch ao lhe dizer que o príncipe de Guermantes era dreyfusista. 

- Precisamos pedir a ele que assine as nossas listas em defesa de Picquart; com um nome como o seu, o efeito seria formidável. -

     Porém Swann, aliando à sua ardente convicção de israelita a moderação diplomática do mundano, de que sobre modo adquirira os hábitos para poder tão tardiamente desfazer-se deles, recusou-se a autorizar Bloch a enviar ao príncipe, mesmo como que espontaneamente, uma circular para que fosse assinada. 

- Ele não pode fazer isso, não convém pedir-lhe o impossível - repetia Swann. - Eis um homem encantador que percorreu milhares de léguas para chegar até nós. Ele pode nos ser muito útil. Se assinasse a sua lista, ele simplesmente se comprometeria junto aos seus, seria repreendido por nossa causa, talvez se arrependesse de suas confidências e não faria mais nenhuma. -

     Mais ainda, Swann recusou-se a assinar o próprio nome. Achava-o hebraico demais para não causar um mau efeito. E depois, se aprovava tudo quanto dissesse respeito à revisão do processo, não queria de modo algum ser envolvido na campanha antimilitarista. Usava, o que jamais fizera até então, a condecoração que ganhara, como todo jovem mobilizado em 1870, e acrescentou ao seu testamento um codicilo para solicitar que, contrariamente às disposições precedentes, fossem dadas honras militares ao seu grau de cavaleiro da Legião de Honra. O que reuniu em torno da igreja de Combray um verdadeiro batalhão desses cavaleiros, sobre cujo futuro chorava Françoise antigamente, quando sentia a perspectiva de uma guerra. Numa palavra, Swann recusou-se a assinar a circular, de modo que, se passava por um dreyfusista radical aos olhos de muitos, meu colega considerou-o militarista e frouxo, infectado de nacionalismo.
     Swann deixou-me sem me apertar a mão, para não ser obrigado a fazer despedidas naquela sala onde possuía tantos amigos, porém me disse: 

- O senhor deveria ir ver sua amiga Gilberte. Ela cresceu de fato e mudou muito; o senhor não a reconheceria. Ela ficaria tão feliz! -

     Eu já não amava Gilberte. Para mim, ela era como uma morta que se chorou por muito tempo; depois veio o esquecimento e, se ela ressuscitasse, não mais poderia inserir-se numa vida que já não era feita para ela. Não tinha mais vontade de vê-la, e nem mesmo aquela vontade de lhe mostrar que não fazia questão de vê-la e que cada dia, no tempo em que a amava, prometia a mim mesmo testemunhar-lhe quando a deixasse de amar. Assim, não mais procurando afetar, diante de Gilberte, ter desejado de todo o meu coração voltar a encontrá-la, e de ter sido impedido de fazê-lo, como se diz, devido a circunstâncias independentes da minha vontade, que só ocorrem, de fato, ao menos com certa continuidade, quando a vontade não se lhes opõe, bem longe de acolher com reservas o convite de Swann, não o deixei sem que me houvesse prometido explicar em detalhes à sua filha os contratempos que me haviam privado, e ainda me privariam de ir vê-la. 

- Aliás, vou escrever-lhe daqui a pouco ao voltar para casa. - acrescentei. - Mas diga-lhe que é uma carta de ameaça, pois dentro um ou dois meses estarei totalmente livre, e então, ela que trema, estarei em sua casa com a mesma frequência de antigamente.

     Antes de deixar Swann, disse-lhe uma palavra sobre sua saúde. 

- Não, a coisa não está tão má assim - respondeu-me. - Além disso, como lhe dizia, ando muito cansado e aceito antecipadamente, com resignação o que possa acontecer. Unicamente, confesso que seria bem irritante morrer antes do fim do Caso Dreyfus. Todos esses canalhas têm mais de mostrar o trunfo no bolso. Não duvido que finalmente sejam vencidos, mas afinal, são muito poderosos, têm apoio em toda parte. No momento em que tudo parece correr bem, tudo se arrebenta. Bem que desejaria viver bastante para ver Dreyfus reabilitado e Picquart coronel.

continua na página 52...
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