em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
continuando...
Entretanto, o duque não cessara de encarar fixamente a mulher:
- Oriane, precisaria pelo menos contar a verdade e não engolir metade dela. É preciso
dizer - retificou, dirigindo-se a Swann que a embaixatriz da Inglaterra naquela ocasião, uma boa
mulher, mas que, um pouco no mundo da lua e era useira e vezeira nesse tipo de indecência,
tivera a ideia bem extravagante de convidar-nos junto com o doente e sua esposa. Ficamos, até
Oriane e eu, bastante surpresos, tanto mais que a embaixatriz conhecia as mesmas pessoas que
nós para não nos convidar justamente para uma reunião tão estranha. Havia um ministro que orou
mas enfim passo uma esponja sobre isso, nós não tínhamos sido avisados, caímos na armadilha;
mas é preciso reconhecer, aliás, que toda essa gente era muito polida. Só que aquilo já era
demais. A Sra. de Guermantes, nem sempre me dá a honra de me consultar, julgou dever deixar
seu castelo no Élysées. Gilbert talvez tenha ido um pouco longe, ao ver nisso uma é espécie de
mancha sobre o nosso nome. Mas não convém esquecer que, à parte, o Sr. Carnot, que de resto
ocupava muito convenientemente seu posto, era neto de um membro do tribunal revolucionário
que mandava matar num só dia onze dos nossos.
- Pois então, Basin, por que é que você ia jantar todas as noites em Chantilly? O duque de
Aumale não era menos neto de um membro do tribunal revolucionário, com a diferença de que
Carnot era um homem correto e Philippe-Égalité um tremendo canalha.
- Desculpe-me interrompê-los para dizer que mandei a fotografia. - disse Swann. - Não
compreendo como não tenha sido entregue.
- Isso me deixa só meio espantada - observou a duquesa. Meus criados dizem-me apenas
o que julgam necessário. Provavelmente não apreciam a Ordem de São João. - E tocou a
campainha.
- Você sabe, Oriane, que, quando eu ia jantar em Chantilly, era sem entusiasmo.
- Sem entusiasmo, mas com camisola de dormir para o caso de príncipe convidá-lo para
passar a noite, o que aliás raramente fazia; um perfeito grosseirão que era, feito todos os
Orléans... Sabe com quem jantaremos na casa da Sra. de Saint-Euverte? - perguntou a Sra. de
Guermantes ao marido. - Fora os convidados que você já sabe, estará, convidado à última hora, o
irmão do rei Teodósio.
A essa notícia, os traços da duquesa respiraram satisfação, e as palavras de tédio:
- Ah, meu Deus; mais príncipes.
- Mas este é gentil e inteligente - disse Swann.
- Mas, mesmo assim, não completamente -respondeu a duquesa, dando a impressão de
escolher as palavras para conferir mais novidade a seu pensamento. - Já repararam que, entre os
príncipes, os mais inteligentes não o são inteiramente? Claro que sim, asseguro-lhes! É preciso
ter sempre uma opinião sobre tudo. Então, como não possuem nenhuma, passam a primeira parte
de suas vidas perguntando as nossas, e a segunda a nos tornar a servi-las. É absolutamente
necessário que digam que isto foi bem representado, que aquilo não foi representado tão bem.
Não há qualquer diferença. Vejam, este jovem Teodósio Caçula (não me recordo de seu nome)
me perguntou como se chamava um motivo de orquestra. Respondi -disse a duquesa, de olhos
brilhantes e desatando a rir com os lindos lábios vermelhos que se chamava um "motivo de
orquestra". Pois bem; no fundo ele não ficou satisfeito. Ah, meu querido Charles - prosseguiu a
Sra. de Guermantes com ar lânguido -, como pode ser aborrecido jantar fora! Há noites em que
seria preferível morrer! É verdade que morrer talvez também seja tão tedioso, pois não se sabe de
que se trata.
Surgiu um lacaio. Era o jovem noivo que tivera desavenças com o porteiro até que a
duquesa, na sua bondade, estabelecera uma paz aparente entre ambos.
- Deverei ir esta noite pedir notícias do Sr. marquês d'Osmond? - indagou ele.
- De jeito nenhum, nada disso antes de amanhã de manhã! Nem quero que você
permaneça na sua casa esta noite. O lacaio do marquês, que você conhece, não teria mais que
vir lhe dar as notícias e dizer que fosse nos procurar. Saia, vá para onde quiser, caia na esbórnia,
durma fora, não quero saber de você antes de amanhã cedo.
Uma alegria imensa transbordou do rosto do lacaio. Enfim ia poder passar longas horas
com sua prometida, a quem quase não via mais desde que, após uma nova cena com o porteiro,
a duquesa gentilmente lhe explicara que era melhor não sair para evitar novos conflitos. À ideia de
que por fim teria uma noite livre, o lacaio nadava em felicidade. A duquesa o percebeu e
compreendeu. Sentiu um aperto no coração e uma alegria em todos os membros à vista daquela
felicidade que sentiam sem o seu consentimento, escondendo-se dela, e que a irritava e
enciumava.
- Não, Basin, pelo contrário, que ele permaneça aqui, que não se mexa da casa.
- Mas Oriane, isto é um absurdo; todos os seus criados estão aqui; e, além disso, você terá
à meia-noite a camareira e o roupeiro para o baile à fantasia. Ele não vai servir para coisa
nenhuma, e, como só ele é amigo do lacaio de Mamá, prefiro mil vezes mandá-lo para longe
daqui.
- Escute, Basin deixe-me; terei justamente de lhe mandar dizer algo esta noite, não sei
bem a que horas. Não saia daqui um só minuto - disse ela ao lacaio desesperado.
Se sempre havia discussões e se os criados ficavam pouco na casa da duquesa, a pessoa
a quem se devia atribuir essa guerra contínua era bastante inenarrável, mas não se tratava do
porteiro. Sem dúvida para barulhos mais rudes, para os martírios mais cansativos a infligir, para
os quais terminavam em pancadaria, a duquesa lhe confiava os instrumentos; além do mais, ele
desempenhava seu papel sem imaginar que o haviam confiado. Como os criados, admirava a
bondade da duquesa; os lacaios pouco esclarecidos vinham, depois de ser despedidos, muitas
vezes com Françoise, afirmando que a casa do duque teria sido o lugar de Paris se não fosse a
portaria. A duquesa manobrava a portaria se manobrou por muito tempo o clericalismo, a franco
maçonaria, o povo judeu, etc.. Um lacaio entrou.
- Por que não mandaram subir o pacote que o Sr. Swann trouxe? Mas a propósito (você
sabe que Mamá está muito doente, Charlus), quem foi buscar notícias do Sr. marquês d'Osmond
já voltou?
- Acabou de chegar, senhor duque. Espera-se que o senhor marquês faleça de um
momento para o outro.
- Ah, ele está vivo! - exclamou o duque com um suspiro de alívio. - Espera-se, espera-se!
Grande agoureiro é você! Enquanto há vida, há esperança - disse-nos o duque com ar satisfeito. -
Pintavam-no como já morto e enterrado. Dentro de oito dias estará mais galhardo que eu.
- Os médicos é que disseram que ele não passaria desta noite eles queriam voltar durante
a madrugada. O chefe disse que era inútil, pois o senhor marquês já deveria estar morto. Só
sobreviveu graças às lavagens de óleo canforado
- Cale-se, pedaço de asno - gritou o duque no auge da cólera. - Quem lhe está perguntando
tudo isso? Você não compreendeu nada do que lhe disseram.
- Não foi a mim, foi a Jules.
- Vai calar ou não? - o duque; e, voltando-se para Swann - Que felicidade que esteja
vivo! Vai readquirir as forças pouco a pouco. Estar vivo depois de semelhante crise. Já é uma
coisa excelente. Não se pode pedir tudo ao mesmo tempo. Uma pequena lavagem a óleo
canforado não deve ser desagradável - disse o duque esfregando as mãos. - Ele está vivo, que
mais querem? Depois de ter passado pelo que passou, já é muito bom. É mesmo de dar inveja
uma compleição destas. Ah, os doentes! Tem-se por eles, uns cuidados que não têm para
conosco. Hoje de manhã, o diabo do cozinheiro me fez uma perna de carneiro assada, com molho
bearnês, reconheço que foi caprichado, mas justamente por isso comi tanto que ainda me pesa no
estômago. O que não impede que venham pedir notícias minhas, como as vão pedir ao meu caro
Amanien. Pedem até demais. Isto cansa. É preciso deixá-lo respirar. Matam-no, indo saber a todo
instante notícias suas.
- Muito bem! - disse a duquesa ao lacaio que se retirava. - Eu havia dito que me subissem
a fotografia envelopada que o Sr. Swann me mandou.
- Senhora duquesa, é tão grande que não sei se passaria pela porta. Deixamo-la no
vestíbulo. A senhora duquesa quer que a traga?
- Bem, neste caso não; deveriam ter-me dito; mas, se é tão grande, eu a verei daqui a
pouco ao descer.
- Também esqueci de dizer à senhora que a senhora condessa Molé deixara hoje de
manhã um cartão de visitas para a senhora duquesa.
- Como, hoje de manhã? - exclamou a duquesa com ar descontente e achando que uma
senhora tão jovem não podia se permitir deixar cartões de visita pela manhã.
- Cerca das dez horas, senhora duquesa.
- Mostre-me os cartões.
- Em todo caso, Oriane, quando você diz que Marie teve uma ideia esquisita em se casar
com Gilbert - prosseguiu o duque, voltando à sua primeira conversa -, é você mesma quem tem
um modo singular de escrever a história. Se alguém foi idiota nesse casamento, foi Gilbert, por ter
desposado justamente uma parenta tão próxima do rei dos belgas, que usurpou o nome de
Brabante, que nos pertence. Numa palavra, somos do mesmo sangue dos Hesse, e do ramo mais
antigo. É sempre cabotino falar de si mesmo - disse ele dirigindo-se a mim. - Mas, afinal, quando
estivemos não só no Darmstadt, mas até no Cassei e em todo o Hesse eleitoral, todos os
landgraves sempre fizeram notar amavelmente que nos cediam o passo e o primeiro lugar, visto
sermos nós do ramo mais antigo.
- Mas afinal, Basin, não me venha contar que aquela pessoa que era major em todos os
regimentos de seu país, que noivou com o rei da Suécia...
- Oh, Oriane, esta é forte demais! Dir-se-ia que você não sabe que o avô do rei da Suécia
cultivava a terra em Pau, quando fazia novecentos anos que já pertencíamos à mais alta estirpe
da Europa.
- Isto não impede que quando se dizia na rua: "Vejam, eis o rei da Suécia", todo mundo
corresse para vê-lo até a Praça da Concórdia, e, se disserem: "Eis o Sr. de Guermantes",
ninguém saiba quem seja.
- Eis já uma razão!
- Aliás, não posso compreender como, desde o momento em que o título de duque de
Brabante passou para a família real da Bélgica, você possa ter pretensões a ele.
O lacaio voltou com o cartão de visitas da condessa Molé, ou antes, com o que ela deixara
como cartão. Alegando não ter nenhum consigo, tirara do bolso uma carta que havia recebido e,
guardado o conteúdo, dobrara o canto do envelope que trazia o nome: "A condessa Molé". Como
o envelope era muito grande, de acordo com o formato do papel para que estava em moda
naquele ano, esse "cartão", manuscrito, tinha quase o dobro do tamanho de um cartão de visitas
comum.
- É o que se chama a simplicidade da Sra. Molé - disse a duquesa com ironia. - Quer nos
fazer acreditar que não tinha cartão de visitas para mostrar a sua originalidade. Mas nós
conhecemos tudo isso (não é mesmo, meu caro, Charlus?); somos nós próprios bastante velhos e
originais, para aprender com o espírito de uma damazinha que estreou há quatro anos; é
encantadora, mas ainda assim não me parece possuir lastro suficiente, imaginar que possa
espantar a alta sociedade com coisa tão trivial como deixar um envelope feito fosse um cartão de
visitas, e deixá-lo às dez da manhã. A rata velha da sua mãe lhe mostrará que sabe tanto quanto
ela sobre esse capítulo.
Swann não pôde se abster de sorrir pensando que a duquesa, aliás era um tanto ciumenta
do sucesso da Sra. Molé, julgaria bem definido "espírito dos Guermantes" alguma resposta
impertinente a propósito da visitante.
- Quanto ao título de duque de Brabant, já lhe disse cem vez, Oriane...- continuou o duque,
a quem a duquesa cortou a palavra
- Mas meu caro Charlus, incomodo-me com a sua fotografia.
- Ah! extinctor draconis latrator Anúbis - disse Swann. [Matador do dragão, ladrador Anúbis]
- Sim, é tão bonito o que você me disse sobre isso em comparação com o São Jorge de
Veneza. Mas não entendo por que Anúbis.
- Como é aquele que é antepassado de Babal? - indagou o Sr. de Guermantes.
- Você queria ver a sua baballe - disse a Sra. de Guermantes no tom seco, para mostrar
que ela própria desprezava esse trocadilho. - Queria vê-los a todos - acrescentou.
- Escute, Charlus, desçamos para esperar que o carro fique pronto - disse o duque -; você
nos fará sua visita no vestíbulo, pois minha mulher não nos deixará em paz enquanto não tiver
visto a sua fotografia. Para falar a verdade, estou menos impaciente - acrescentou com ar de
satisfação.
- Sou um homem calmo, mas ela é bem capaz de nos fazer morrer se não o vir. - Sou inteiramente de sua opinião, Basin - disse a duquesa -; vamos para o vestíbulo e
pelo menos ficamos sabendo por que é que viemos do seu gabinete, ao passo que jamais
saberemos por que viemos dos condes de Brabant.
- Já lhe repeti cem vezes de que modo o título entrou na casa de Hesse - disse o duque
(enquanto íamos ver a fotografia e eu pensava naquelas que Swann me trazia em Combray) -;
pelo casamento de um Brabant, em 1241, com a filha do último landgrave da Turíngia e de Hesse,
de forma que foi antes o título de príncipe de Hesse que entrou na casa de Brabant do que o de
duque de Brabant na casa de Hesse. De resto, você se lembra que o nosso grito de guerra era o
dos duques de Brabant: "Limburgo a quem o conquistou", até que trocamos as armas dos
Brabants pelas dos Guermantes, no que aliás creio que fizemos mal, e o exemplo dos Gramonts
não contribuiu para me fazer mudar de opinião.
- Mas - respondeu a Sra. de Guermantes - como foi o rei dos belgas que o conquistou...
Além disso, o herdeiro da Bélgica chama-se duque de Brabant.
- Mas, minha filha, o que você diz não tem pé nem cabeça e peca pela base. Sabe tão bem
quanto eu que existem títulos de pretensão que subsistem perfeitamente se o território é ocupado
por um usurpador. Por exemplo, o rei da Espanha se intitula precisamente duque de Brabant,
invocando desse modo uma possessão menos antiga que a nossa, porém mais antiga que a do
rei dos belgas. Ele também se diz duque de Borgonha, rei das Índias Ocidentais e Orientais, e
duque de Milão. Ora, ele não possui mais a Borgonha, as Índias ou o Brabant do que eu próprio
possuo este último, como igualmente o não possui o príncipe de Hesse. Da mesma forma, o rei da
Espanha nem por isso deixa de proclamar-se rei de Jerusalém, o mesmo fazendo o imperador da
Áustria, e nem um nem outro possuem Jerusalém.
Parou por um instante, no constrangimento de que o nome de Jerusalém pudesse deixar
Swann embaraçado, devido aos "casos em andamento", mas prosseguiu tanto mais rápido:
- O que você está dizendo, pode dizer de tudo. Fomos duque de Aumale, ducado que
passou tão regularmente para a casa da França como Joinville e Chevreuse para a casa de
Alberto. Não erguemos mais reivindicações sobre esses títulos do que sobre o de marquês de
Noirmoutiers, que foi nosso e se tornou bem regularmente apanágio da casa de La Trémoille,
mas, pelo fato de que certas cessões sejam válidas, não se conclui que todas o sejam. Por
exemplo - disse ele voltando-se para mim -, o filho da minha cunhada ostenta o título de príncipe
de Agrigento, que nos vem de Joana a Louca, como aos de La Trémoille o de príncipe de Tarento.
Napoleão deu esse título de Tarento a um soldado, que aliás podia ser excelente veterano, mas
nisso o imperador dispôs do que ainda menos pertencia do que Napoleão III, ao fazer um duque
de Montmorency, Périgord tinha ao menos por mãe uma Montmorency, ao passo que o Tarento
de Napoleão I só possuía de Tarento a vontade do imperador de que ele fosse. Isto não impediu
Chaix d'Est-Ange, fazendo alusão ao nosso tio Cote de perguntar ao procurador imperial se ele
fora pegar o título de duque, Montmorency nos fossos de Vincennes.
- Escute, Basin, não peço nada melhor que segui-lo aos fossos de Vincennes e até a
Tarento. E a propósito, meu caro Charlus, é justamente o que eu queria lhe dizer enquanto me
falava do seu São Jorge de Veneza que eu e Basin temos a intenção de passar a primavera
próxima na Itátiê e na Sicília. Se viesse conosco, veja como seria diferente! Não falo apenas da
alegria de vê-lo, mas imagine, com tudo o que me contou muitas vezes sobre os vestígios da
conquista normanda e os vestígios da antiguidade; imagine o que seria uma viagem como essa,
feita em sua companhia, quer dizer que até Basin que digo! Até Gilbert tirariam proveito dela, pois
sinto que mesmo as pretensões à coroa de Nápoles e todas essas imaginações me interessariam,
caso fossem explicadas por você nas velhas igrejas romanas ou em pequenas aldeias
empoleiradas como nos quadros dos primitivos. Mas vamos olhar a sua fotografia. Desfaça o
embrulho - disse a duquesa a um lacaio.
- Mas, Oriane, esta noite não! Você poderá vê-la amanhã - o duque, que já me fizera sinais
de terror ao ver o tamanho da fotografia.
- Mas agrada-me ver isto na companhia de Charlus - retorquiu a duquesa com um sorriso a
um tempo fingidamente sensual e finamente psicológico, pois, em seu desejo de ser amável para
com Swann, falava do prazer que sentiria em contemplar essa fotografia como do prazer que um
enfermo teria em chupar uma laranja, ou como se, ao mesmo tempo, combinasse uma escapada
com amigos ou informasse a um biógrafo sobre os gostos lisonjeiros para ela.
- Pois bem, ele virá visitá-la expressamente para isso - declarou o duque, a quem a mulher
teve de ceder. - Vocês vão passar três horas juntos diante da fotografia, se lhes agrada - disse ele
ironicamente. - Mas onde vai pôr um troço desse tamanho?
- Mas no meu quarto; quero tê-lo diante dos olhos.
- Ah, como quiser; se ficar no seu quarto, terei chances de não vê-lo nunca mais - disse o
duque, sem pensar na revelação que fazia tão estouvadamente sobre a natureza negativa de
suas relações conjugais.
- Pois bem, você vai desembrulhar isto com todo o cuidado - ordenou a Sra. de
Guermantes ao criado (ela multiplicava as recomendações para ser amável com Swann).
- Não estrague também o envelope!
- Precisaremos respeitar até o envelope! - disse-me baixinho o duque, erguendo as mãos
para o céu.
- Mas, Swann. - acrescentou - eu, que não passo de um pobre marido bem prosaico, o que
me admira nisso tudo é que você tenha podido achar um envelope dessas dimensões. Onde
desencravou isso?
- É a casa de fotogravuras que frequentemente faz esse tipo de remessas. Mas o dono é
um grosseirão, pois vejo que sobrescritou "Duquesa de Guermantes", sem "Senhora".
- Perdoo-lhe - disse distraidamente a duquesa, que, parecendo subitamente invadida por
uma ideia que a alegrava, reprimiu um leve sorriso, mas voltando logo a Swann:
- E então, não diz se vai conosco à Itália?
- Senhora, acho que não será possível.
- Então a Sra. de Montmorency tem mais sorte. O senhor esteve com ela em Veneza e
Vicenza. Ela me disse que, na sua companhia, viam-se coisas que a gente jamais veria sozinha,
de que ninguém nunca havia falado, que o senhor lhe mostrou coisas espantosas e, mesmo nas
coisas conhecidas, disse que pôde compreender detalhes diante dos quais, sem o senhor, teria
passado vinte vezes sem nunca notá-los. Decididamente, foi mais beneficiada que nós... Tome o
imenso envelope de fotografias do Sr. Swann - disse ela ao criado - vá pô-lo, dobrado num canto,
de minha parte, às dez e meia da noite, na casa da Sra. condessa de Molé.
Swann deu uma gargalhada.
- Mesmo assim gostaria de saber - disse-lhe a Sra. de Guermantes - como, com dez
meses de antecipação, o senhor pode saber que será impossível?
- Minha cara duquesa, eu lhe direi, se faz muita questão; mas, antes de tudo, pode ver
como estou doente.
- Sim, meu caro Charlus, acho que está com uma cara nada boa, não estou contente com
sua cor; mas não lhe peço isso para daqui a oito dias, peço-lhe para daqui a dez meses. Em dez
meses a gente tem tempo de se curar, você sabe.
Nesse momento, um lacaio veio anunciar que o carro já estava parado.
- Vamos, Oriane, a cavalo - disse o duque, que já batia os pés de impaciência há alguns
instantes, como se ele próprio fosse um dos cavalos que esperavam.
- Pois bem, numa palavra, qual o motivo que o impedirá de ir à Itália? - indagou a duquesa,
levantando-se para se despedir de nós.
- Mas, minha cara amiga, é que já estarei morto há vários meses. Segundo os médicos
que consultei, no fim do ano o mal de que sofro e aliás, pode me levar de repente, em todo caso
não me deixará mais de três, ou quatro meses de vida. E isto ainda é um grande maximum - respondeu Swann sorrindo, enquanto um lacaio abria a porta envidraçada do vestíbulo, para
deixar passar a duquesa.
- Que é que está me dizendo? - exclamou a duquesa, deteve-se por um segundo em seu
caminho para o carro, e erguendo os olhos azuis e melancólicos, mas cheios de incerteza.
Colocada pela primeira vez na vida entre dois deveres tão diversos como subir para o carro a fim
de ir jantar fora, e manifestar piedade por um homem que vai morrer, ela não via nada no código
das conveniências que indicasse a jurisprudência a seguir e, não sabendo a que dar a primazia,
julgou dever fazer cara de não acreditar que a segunda alternativa ocorresse, de modo a
obedecer à primeira, que naquele momento exigia menos esforço; e pensou que a melhor maneira
de resolver o conflito era negá-lo:
- Está gracejando? - perguntou à Swann.
- Seria um gracejo de gosto encantador - respondeu ironicamente Swann. - Não sei por
que lhe digo isto, até hoje não lhe havia falado da minha doença. Mas, como me perguntou e que
agora posso morrer de um dia para o outro... Mas sobretudo não desejo que se atrase, vai jantar -
acrescentou ele, porque sabia que, para os outros, seus próprios compromissos mundanos têm
prioridade sobre a morte de um amigo, e que ele se punha no lugar deles graças à sua polidez.
Porém a da duquesa permitia a esta perceber também, confusamente, que o jantar ao qual
compareceria devia contar menos para Swann que a sua própria morte. Assim, continuando o seu
caminho na direção do carro, deu de ombros dizendo:
- Não se preocupe com esse jantar. Não tem nenhuma importância. -
Mas essas palavras puseram de mau humor o duque, que gritou:
- Vamos, Oriane, não fique aí tagarelando e trocando as suas lamentações com Swann,
você sabe muito bem que a Sra. de Saint-Euverte faz questão de que a gente esteja na mesa às
oito em ponto. É necessário saber o que você quer; já faz cinco minutos que os cavalos estão
esperando. Peço-lhe perdão, Charles - disse ele voltando-se para Swann -, mas já são dez para
as oito. Oriane está sempre atrasada; vamos levar mais de cinco minutos para chegar à casa da
velha Saint-Euverte.
A Sra. de Guermantes avançou decididamente na direção do carro e deu um último adeus
a Swann:
- O senhor sabe, voltaremos a falar disso; não creio numa só palavra do que me diz, mas
precisamos ter uma conversa a respeito juntos. Deixaram-no impressionado; venha almoçar o dia
que quiser (para a Sra. de Guermantes, tudo se resolvia sempre em almoços), o senhor me dirá o
dia e a hora e, erguendo a saia vermelha, pousou o pé no estribo. Ia entrar no carro quando,
vendo aquele pé, o duque exclamou com voz terrível:
- Oriane, que é que você vai fazer, infeliz! Está de sapatos pretos! Com um vestido
vermelho! Suba para o quarto depressa e ponha sapatos vermelhos, ou então dirigiu-se ao lacaio
avise imediatamente a camareira da Sra. duquesa para mandar descer os sapatos vermelhos.
- Mas, meu amigo - respondeu docemente a duquesa, constrangida por ver que Swann,
que saía comigo mas quisera deixar passar o carro a nossa frente, ouvira tudo -, visto que
estamos atrasados...
- Não, não; temos todo o tempo. Faltam apenas dez para as oito, não gastaremos dez
minutos para ir ao parque Monceau. E depois, afinal, o que é que deseja? Mesmo que fossem oito
e meia eles esperariam; mas você não pode ir com um vestido vermelho e sapatos pretos. Além
disso, não seremos os últimos, ande, há os Sassenage, você sabe que eles nunca chegam antes
de vinte para as nove.
A duquesa tornou a subir para o quarto.
- Os pobres maridos, hem! - disse o Sr. de Guermantes -; zomba-se muito deles, mas
ainda têm algo de bom. Não fosse eu, Oriane ia jantar de sapatos pretos.
- Não fica feio - observou Swann -; eu já havia reparado nos sapatos pretos e
absolutamente não me chocaram.
- Não digo que não - respondeu o duque -; mas é mais elegante que sejam da mesma cor
do vestido. E depois, fique tranquilo, logo ao chegar, ela teria notado, e eu é que seria obrigado a
vir buscá-los. Teria jantado às nove horas. Adeus, meus meninos - disse ele afastando-nos
suavemente -, vão tratando de ir antes que Oriane desça. Não é que ela não goste de ver os dois.
Ao contrário, gosta muito de vê-los. Se ainda os encontra aqui, vai voltar a tagarelar, já está bem
cansada, chegará morta ao jantar. E depois, confesso francamente que estou morrendo de fome.
Almocei muito mal esta manhã ao descer do trem. É verdade que havia um tal molho bearnês,
mas, apesar disso, não me incomodaria nada, de jeito nenhum, em sentar-me de novo à mesa.
Cinco para as oito! Ah, as mulheres! Ela vai fazer mal ao estômago de nós dois, pois é bem
menos forte do pensam.
O duque absolutamente não se vexava de falar das indisposições da mulher e de suas
próprias a um agonizante, já que os primeiros o interessavam mais, parecendo-lhe, assim, mais
importantes. Desse modo, apenas por boa educação e galhardia que, depois de nos ter
gentilmente despedido, gritou da porta com voz ostentatória a Swann, que já se achava no pátio:
- E além disso, não se deixe impressionar pelas asneiras dos médicos, que diabo! São uns
burros! Você está firme como o Pont-Neuf. Acaba enterrando a todos nós!
Fim
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Acaba enterrando a todos nós!)
Volume 7
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