quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Ensaio sobre o entendimento humano: Seção II

Ensaio sobre o entendimento humano

David Hume

Seção II

DA ORIGEM DAS IDEIAS

     Cada um admitirá prontamente que há uma diferença considerável entre as percepções[1]  do espírito, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado, e quando depois recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de sua imaginação. Estas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, porém nunca podem alcançar integralmente a força e a vivacidade da sensação original. O máximo que podemos dizer delas, mesmo quando atuam com seu maior vigor, é que representam seu objeto de um modo tão vivo que quase podemos dizer que o vemos ou que o sentimos. Mas, a menos que o espírito esteja perturbado por doença ou loucura, nunca chegam a tal grau de vivacidade que não seja possível discernir as percepções dos objetos. Todas as cores da poesia, apesar de esplêndidas, nunca podem pintar os objetos naturais de tal modo que se tome a descrição pela paisagem real. O pensamento mais vivo é sempre inferior à sensação mais embaçada. 
     Podemos observar uma distinção semelhante em todas as outras percepções do espírito. Um homem à mercê dum ataque de cólera é estimulado de maneira muito diferente da de um outro que apenas pensa nessa emoção. Se vós me dizeis que certa pessoa está amando, compreendo facilmente o que quereis dizer-me e formo uma concepção precisa de sua situação, porém nunca posso confundir esta ideia com as desordens e as agitações reais da paixão. Quando refletimos sobre nossas sensações e impressões passadas, nosso pensamento é um reflexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porém as cores que emprega são fracas e embaçadas em comparação com aquelas que revestiam nossas percepções originais. Não é necessário possuir discernimento sutil nem predisposição metafísica para assinalar a diferença que há entre elas. Podemos, por conseguinte, dividir todas as percepções do espírito em duas classes ou espécies, que se distinguem por seus diferentes graus de força e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente denominadas pensamentos ou ideias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosóficos era necessário compreendê-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-nos, portanto, usar um pouco de liberdade e denominá-las impressões, empregando esta palavra num sentido de algum modo diferente do usual. Pelo termo impressão entendo, pois, todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impressões diferenciam-se das ideias, que são as percepções menos vivas, das quais temos consciência, quando refletimos sobre quaisquer das sensações ou dos movimentos acima mencionados.[2]  
     A primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento humano, que não apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas também nem sempre é reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar formas e aparências incongruentes não causam à imaginação mais embaraço do que conceber os objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num só planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num instante às regiões mais distantes do Universo, ou mesmo, além do Universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a Natureza se encontra em total confusão. Pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradição.
     Entretanto, embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas ideias compatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois o sentimento que temos de nós mesmos nos permite conceber a virtude e podemos uni-la à figura e forma de um cavalo, que é um animal bem conhecido. Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagem filosófica: todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões ou percepções mais vivas.
     Para prová-lo, espero que serão suficientes os dois argumentos seguintes. Primeiro, se analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais compostos ou sublimes que sejam, sempre verificamos que se reduzem a ideias tão simples como eram as cópias de sensações precedentes. Mesmo as ideias que, à primeira vista, parecem mais distantes desta origem mostram-se, sob um escrutínio minucioso, derivadas dela. A ideia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria. Podemos continuar esta investigação até a extensão que quisermos, e acharemos sempre que cada ideia que examinamos é cópia de uma impressão semelhante. Aqueles que dizem que esta afirmação não é universalmente verdadeira, nem sem exceção, têm apenas um método, e em verdade fácil, para refutá-la: mostrar uma ideia que, em sua opinião, não deriva desta fonte. Incumbir-nos-ia então, se quiséssemos preservar nossa doutrina, de mostrar a impressão ou percepção mais viva que lhe corresponde.
     Segundo, se ocorre que o defeito de um órgão prive uma pessoa de uma classe de sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar ideias correspondentes. Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um surdo dos sons. Restaurai a um deles um dos sentidos de que carecem: ao abrirdes as portas às sensações, possibilitais também a entrada das ideias, e a pessoa não terá mais dificuldade para conceber aqueles objetos. O mesmo fenômeno ocorre quando o objeto apropriado para estimular qualquer sensação nunca foi aplicado ao órgão do sentido. Um lapão ou um negro, por exemplo, não têm nenhuma noção do sabor do vinho. Apesar de haver poucos ou nenhum caso de semelhante deficiência no espírito, em que uma pessoa nunca sentiu ou que é completamente incapaz de um sentimento ou paixão próprios de sua espécie, constatamos, todavia, que a mesma observação ocorre em menor grau. Um homem de modos brandos não pode formar uma ideia de vingança ou de crueldade obstinada, nem um coração egoísta pode conceber facilmente os ápices da amizade e da generosidade. Em verdade, admitimos que outros seres podem possuir muitos sentidos dos quais não temos noção, porque as ideias destes sentidos nunca nos foram apresentadas pela única maneira por que uma ideia pode ter acesso ao espírito, isto é, mediante o sentimento e a sensação reais.
     Há, no entanto, um fenômeno contraditório que pode provar que não é absolutamente impossível que as ideias nasçam independentes de suas impressões correspondentes. Acredito que se concordaria facilmente que as várias ideias de cores diferentes que penetram pelos olhos, ou aquelas de sons conduzidas pelo ouvido, são realmente diferentes umas das outras, embora, ao mesmo tempo, parecidas. Ora, se isto é verdadeiro a respeito das diferentes cores, deve sê-lo igualmente para os diversos matizes da mesma cor; e cada matiz produz uma ideia diversa, independente das outras. Pois, se se negasse isto, seria possível, por contínua gradação dos matizes, passar insensivelmente de uma cor a outra completamente distante de série; se vós não admitis a distinção entre os intermediários, não podeis, sem absurdo, negar a identidade dos extremos. Suponde, então, uma pessoa que gozou do uso de sua visão durante trinta anos e se tornou perfeitamente familiarizada com cores de todos os gêneros, exceto com um matiz particular do azul, por exemplo, que nunca teve a sorte de ver. Colocai todos os diferentes matizes daquela cor, exceto aquele único, defronte daquela pessoa, decrescendo gradualmente do mais escuro ao mais claro. Certamente, ela perceberá um vazio onde falta este matiz, terá o sentimento de que há uma grande distância naquele lugar, entre as cores contíguas, mais do que em qualquer outro. Ora, pergunto se lhe seria possível, através de sua imaginação, preencher este vazio e dar nascimento à ideia deste matiz particular que, todavia, seus sentidos nunca lhe forneceram? Poucos leitores, creio eu, serão de opinião que ela não pode; e isto pode servir de prova que as ideias simples nem sempre derivam das impressões correspondentes, mas esse caso tão singular é apenas digno de observação e não merece que, unicamente por ele, modifiquemos nossa máxima geral.
     Eis, portanto, uma proposição que não apenas parece simples e inteligível em si mesma, mas que, se se fizer dela o uso apropriado, pode tornar toda discussão igualmente inteligível e eliminar todo jargão, que há muito tempo se apossou dos raciocínios metafísicos e os desacreditou. Todas as ideias, especialmente as abstratas, são naturalmente fracas e obscuras; o espírito tem sobre elas um escasso controle; elas são apropriadas para serem confundidas com outras ideias semelhantes, e somos levados a imaginar que uma ideia determinada está aí anexada se, o que ocorre com frequência, empregamos qualquer termo sem lhe dar significado exato. Pelo contrário, todas as impressões, isto é, todas as sensações, externas ou internas, são fortes e vivas; seus limites são determinados com mais exatidão e não é tão fácil confundi-las e equivocar-nos. Portanto, quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo empregado sem nenhum significado ou ideia — o que é muito frequente — devemos apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta ideia?[3] E, se for, impossível designar urna, isto servirá para confirmar nossa suspeita. E razoável, portanto, esperar que, ao trazer as ideias a uma luz tão clara, removeremos toda discussão que pode surgir sobre sua natureza e realidade.[4]

continua página 10...
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Ensaio sobre o entendimento humano: Seção III 
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Notas:
[1] O termo "percepções" é utilizado por Hume para designar a totalidade dos fatos mentais e das operações volitivas. Mais adiante, nesta seção (p. 70), ele escreve que as percepções constituem ‘todos os materiais do pensamento’. (vejam-se também: Tratado, I. ii, 6, p. 67 -II i, 1 p. 456.) Hume difere assim de Locke, que emprega o termo “ideia (veja-se nota 12 desta seção) com aquele sentido genérico. [N. do T.]
[2] As percepções originais, isto é, os elementos primitivos da experiência, são, escreve Hume, as “impressões”. As “ideias”, por seu turno, que afloram à consciência, quando pensamos ou raciocinamos, são fracas imagens das impressões. As ideias não são, portanto, como para os platônicos, os arquétipos de tudo que existe e nem, como para os cartesianos, inatas, pois unicamente as impressões são inatas (veja-se O. Brunet, Philosophie et esthétique chez David Hume, Nizet, Paris, 1965, pp. 292-295.). Como as idéias são fracas imagens de impressões correspondentes, podemos dizer que as percepções do espírito, assumindo dupla forma, como impressões e como idéias, distinguem-se em grau e não em natureza. Ou melhor, as duas facetas de uma única percepção discriminam-se entre si do mesmo modo como um modelo se diferencia de sua cópia. [N. do T.]
[3] O método filosófico adequado é aquele que permite a contínua reforma de nossas ideias acerca das operações do entendimento humano. E as ideias são reformadas por estarem relacionadas com suas impressões correspondentes. Esta relação é dupla: a) as ideias são similares às impressões, ou melhor, são cópias ou imagens das impressões (em concordância com o método baseado no exemplo), e b) as ideias estão necessariamente unidas às impressões, ou melhor, as ideias não são descobertas sem impressões correspondentes (do mesmo modo que a filosofia difícil admite que a conclusão não pode ser levada a cabo sem as premissas adequadas). (Sternfeld, artigo citado, pp. 173-174.) [N. do T]
[4] É provável que todos aqueles que negaram as ideias inatas queriam apenas dizer que todas as nossas idéia s eram cópias de nossas impressões, embora seja preciso confessar que os termos por eles empregados nem sempre foram escolhidos com precaução nem definidos com exatidão, a fim de evitar equívocos sobre suas doutrinas. O que se entende por inato? Se inato é equivalente a natural, então se deve conceder que todas as percepções e ideias do espírito são inatas ou naturais, em qualquer sentido que tomemos este último termo, seja em oposição ao que é insólito, artificial ou miraculoso. Se inato significa contemporâneo ao nosso nascimento, a discussão parece frívola, pois não vale a pena averiguar em que momento se começa a pensar: se antes, no, ou depois de nosso nascimento. Demais, parece me que Locke e outros tomam o termo ideia em sentido muito vago, tanto indicando nossas percepções, sensações e paixões, como nossos pensamentos. Ora, neste sentido eu gostaria de saber o que é que se quer dizer quando se afirma que o amor-próprio ou ressentimento por injúrias sofridas ou a paixão entre os sexos não é inata?
   Mas admitindo-se os termos impressões e ideias no sentido exposto acima e entendendo por inato o que é primitivo ou não copiado de nenhuma percepção precedente, podemos então afirmar que todas as nossas impressões são inatas e que nossas ideias não o são.
   Para ser franco, devo confessar que em minha opinião Locke foi enganado sobre esta questão pelos escolásticos, que, utilizando termos definidos sem rigor, prolongavam cansativamente as discussões sem jamais atingir o núcleo da questão. Semelhante ambiguidade e circunlocução parecem estar presentes nos raciocínios deste filósofo acerca deste tema como também da maioria de outras questões (Hume).

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